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Mutola: não deixaram uma menina jogar futebol e ela virou campeã olímpica

Maria Mutola na Olimpíada de 2000 após vencer os 800 m - AFP PHOTO Patrick HERTZOG
Maria Mutola na Olimpíada de 2000 após vencer os 800 m Imagem: AFP PHOTO Patrick HERTZOG

Karla Torralba

Do UOL, em São Paulo

05/10/2018 04h00

No começo, Maria Mutola não corria para ser mais rápida que outros. Corria atrás de uma bola. Em um bairro carente de Maputo, em Moçambique, a campeã olímpica e tricampeã mundial dos 800 m queria jogar futebol. Fugia da escola pela bola e tirava o pai do sério. Jogava com meninos e era melhor que eles. Mas a presença de uma menina de 15 anos jogando e fazendo gols contra os rivais pegou mal e Maria foi proibida de fazer parte do time.

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"O futebol sempre foi minha primeira paixão. Um treinador me convidou para o time dele: o Aguiador. Comecei a jogar federada com os meninos. A federação aceitou que eu jogasse com os meninos. Éramos crianças e não tinha muita diferença. Mas durante o campeonato a gente enfrentou um time chamado Ferroviário, que era maior. Jogamos e eu fiz o gol da vitória. A equipe foi eliminada e eles foram protestar na federação. Tiraram pontos do meu time e falaram que eu não poderia mais jogar bola com os meninos. A história com o futebol em Moçambique termina aí", conta Maria Mutola, em entrevista ao UOL, em passagem por São Paulo para participar do Simpósio Internacional de Estudos sobre Futebol, evento organizado pelo Museu do Futebol.

A história, aí, chega a um ponto de transição. Aqueles que a tiraram de campo por preconceito, acabaram criando um fenômeno do esporte moçambicano. Foi o futebol que a fez ser descoberta para o atletismo - pelas mãos do maior poeta de Moçambique, José Craveirinha. "Ele tinha noção de atletismo e o filho dele foi meu primeiro treinador. Ele me viu jogando bola e me convenceu a praticar a modalidade em 1988. Eu treinei a primeira semana e desisti. Depois, ele me mostrou vídeos dos Jogos Olímpicos de Los Angeles (1984). Eu não sabia que atletismo era tão grande. Vi vídeos cassetes de Carl Lewis sendo muito aplaudido. Ele disse que, se eu continuasse, eu poderia ir para as Olimpíadas. Eu não acreditei, mas ele estava certo. Me classifiquei para os Jogos de Seul no mesmo ano".

Foi nos Jogos de Seul em 1988, quando conseguiu a 7ª colocação em uma eliminatória, que a atleta de 16 anos chamou a atenção do mundo. Tão logo acabou a Olimpíada, Maria recebeu convites de bolsas de estudos de vários países. Elegeu os Estados Unidos como destino.

A pior viagem da vida: mais de 24 horas rumo aos EUA

"Foi uma mudança muito difícil. A mais difícil da vida. Primeiro que a viagem não foi fácil. Eu fui sozinha: saí de Maputo para Paris; cheguei em Paris de manhã e depois para Chicago; Chicago para Washington; Washington para Oregon. Foram mais de 24 horas de viagem e quando cheguei foi um choque de cultura. É a capital do atletismo nos EUA".

Maria Mutola foi recebida como uma campeã no novo país. ?Quando cheguei ao aeroporto, todo o time da escola em que eu ia estudar estava no aeroporto, com bandeiras de boas-vindas. Tinha mais de 30 pessoas da escola que foram fazer festa. O único problema é que eu não falava inglês".

Maria Mutola  - Michael Steele/Getty Images - Michael Steele/Getty Images
Maria Mutola em 2004 com a bandeira de seu país
Imagem: Michael Steele/Getty Images
"Não mudei de nacionalidade pelo meu pai"

A técnica de Maria Mutola queria que uma mudança de nacionalidade de sua pupila. O objetivo era facilitar viagens, já que cidadãos dos EUA podem viajar para a maioria dos países sem a necessidade de visto. "Meu passaporte tinha que ter visto. Eu competia em dez países em um ano na Europa. Todos os países em que eu ia competir tinha que ter visto de entrada. Imagine: eu passava mais tempo nas embaixadas pedindo visto que na Europa".

Em 1994, a falta de visto para voltar para os Estados Unidos deixou Maria Mutola três dias a mais no Brasil. "Eu vim para São Paulo em 1994 em uma competição com meu treinador. Para voltar para os EUA foi um problema, porque tinha que ter visto para voltar. Ficamos 3 dias a mais aqui atrás do visto. O passaporte moçambicano era um problema. Eu via que era importante mudar".

Mas o pai de Maria a convenceu a não deixar seu país no passaporte. "Ele falou que se eu ganhasse uma medalha, seria só mais uma. Mas se ganhasse por Moçambique, seria a primeira. Também, se um dia eu quisesse voltar, seria difícil por ter outra nacionalidade. Hoje, eu voltei para Moçambique mesmo com o Green Card. Eu sabia que tinha que voltar, porque minha família está lá e é onde fico mais à vontade. Eu acho que me sentiria muito sozinha nos EUA se tivesse mudado".

A volta para o futebol com gol pela seleção de Moçambique

O futebol que havia abandonado por proibição voltou após a aposentadoria do atletismo. Maria Mutola até marcou um gol pela seleção feminina de seu país. "Futebol sempre esteve na minha cabeça, eu nunca abandonei. Sempre foi uma paixão. Champions  League ou Copa, sempre assisti. Sempre tive uma ligação. Fazer um gol pela seleção naquela altura foi algo fenomenal. O futebol feminino em Moçambique não é muito reconhecido, embora esteja mudando. A Fifa tem feito trabalhos. Hoje, temos campeonato nacional de futebol feminino, então para mim é muito importante ver o futebol feminino evoluindo".

Feminista e fã de Marta

Maria Mutola abre o sorriso quando é perguntada sobre feminismo. "Eu me considero feminista. Já vi muita mulher sofrer. Sou de um país em que a mulher não tem muita liberdade no esporte, mas temos uma organização de mulheres que é muito forte. As coisas estão mudando, tem ministras mulheres e isso é importante para meu país".

"Eu sou fã da Marta, porque aquilo que ela atingiu e acaba de atingir é um fenômeno. Ela venceu o prêmio da Fifa seis vezes e não tem nenhum homem que conseguiu. Ela é inspiração para todas as mulheres jogadoras no mundo".

A política mundial

Maria Mutola disse que acompanha a situação política no Brasil e se mostrou receosa quanto ao crescimento da extrema-direita no mundo todo. "É muito triste e talvez seja uma fase. Parece que isso é no mundo, não é só no Brasil, quando falamos da política americana, por exemplo. É preocupante. A política brasileira é preocupante. Eu espero que seja passageira e que o mundo volte ao normal. Essas pessoas aproveitam do momento para desestabilizar o mundo. Quero que tudo volte ao normal".