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Servílio de Oliveira diz que demência pugilística "é uma besteira"

Luís Augusto Simon

Em São Paulo

05/09/2014 06h00

Servílio de Oliveira foi o primeiro boxeador brasileiro a ganhar uma medalha olímpica. Bronze em 1968, no México. Havia a certeza que seria o segundo brasileiro campeão do mundo, mas o descolamento da retina do olho direito o impediu.

Aos 66 anos, ele tem corpo atlético ainda. Mede pouco mais de 1m60, pesa 64 quilos, quatro acima do que ostentava no auge. “Eu baixava para 51 quilos só para lutar. Tinha a mão forte”, lembra.

Educado e articulado, Servílio fala com sotaque paulistano. Aquele jeito cantado e um pouco alto. Só que a voz aumenta e mostra uma certa irritação quando eu pergunto se, no final, a perda da visão e o encerramento da carreira não evitaram um sofrimento como o de Maguila, Eder Jofre e Muhammad Ali, portadores de doenças como Alzheimer e Parkinson. Demência pugilística.

“Isso é uma besteira. Não existe. A mãe do Maguila lutou alguma vez? Nunca, né. E ela tem Alzheimer. Essa doença tem três fontes de risco: a hereditariedade, a idade, atinge maiores de 65 anos, e o analfabetismo, pessoa que não lê, que não exercita o cérebro”.

Ivan de Oliveira, filho de Servílio e dono de uma academia onde ensina boxe, aproxima-se. Fica ainda mais revoltado com o assunto. “Boxe é esporte de preto, de pobre, de f... Não tem coxinha e por isso querem acabar com ele. O Senna morre na curva e vira herói. O Maguila e o Eder estão doentes e viram vítimas? Automobilismo é muito pior que boxe. Quando um jogador de vôlei para, ele tem problema no joelho por causa do impacto de tantos saltos e quedas. É do jogo”.

A entrada em cena de Ivan faz Servílio voltar ao estilo calmo. E ele se transforma em professor ao falar sobre seu esporte, sobre o esporte de sua vida.

“O boxe é milenar. Há noticias do boxe em 770 ac. Em 668 ac já estava na Olimpíada. Depois, na história moderna dos Jogos Olímpicos, ele ficou fora em Atenas em 1896 e Paris em 1900. Era um esporte brutal, sem luvas, sem regras, sem ringue e limite de peso. Então, o marquês de Queensberry criou as regras do boxe moderno. É um esporte lindo, que merece ser respeitado”.

Mesmo com descolamento de retina?

Servílio olha para a parede. Um cartaz mostra um lutador jovem, negro, atlético encarando um ao outro, branco e mais alto.

“Olha lá, aquele sou eu. E o outro é o Toni Moreno, do Texas. A luta é de 3 de dezembro de 1971. Foi aí que o descolamento aconteceu, mas ele já vinha de antes. Eu fazia lutas com gente de 70 quilos, como Edmundo Leite e Expedito Alencar. Soltava a mão neles e recebia também. Acho que foi acumulando”.

A luta contra Moreno foi dura. “Não quero me gabar não, é só você procurar no Youtube. Quase matei ele no sétimo round e ganhei por pontos. O Carollo, meu técnico, disse para ficar de longe. Naquele tempo não tinha informação, não tinha internet e eu fui respeitando. Levei uma porrada e resolvi lutar dentro dele. O Carollo mandou eu sair, mas eu não saía. Bati muito e levei também. Ganhei a luta.”

Foi a 15ª luta e a 15ª vitória. O descolamento impediu que continuasse a lutar. Mudou-se para Santiago do Chile, para viver com a mulher, chilena.

“Fui trabalhar com restauração de móveis, com o pai dela, então conheci um cara muito forte e não é do boxe não”.

Servílio fala de Salvador Allende, com admiração incontida. “Em 11 de setembro, teve o golpe militar. Os milicos deram um avião para ele fugir e ele não aceitou. Ficou lá e morreu. Tinha culhão. Se ele fugisse, os milicos iam dizer que seria um covarde e ele foi um herói”.

Servílio voltou ao Brasil. “Ditadura por ditadura, melhor fica no meu país”. Voltou a lutar em 1976. Foram mais quatro lutas e quatro vitórias. E iria disputar o título sul-americano com Martin Vargas, no Chile.

“Eles sabiam que eu ia acabar com o Vargas, ele não era páreo não. Então, inventaram uma lei que pugilista com 25% de perda de visão em um olho não podia entrar no ringue. Foram covardes e eu parei de lutar”.

O olhar de Servílio velho se volta novamente para o Servílio jovem que encara Toni Moreno, ali na parede da academia do filho. “Que luta, viu. Olha no Youtube, uma grande luta. O boxe me deu tudo por isso é que não gosto dessa perseguição, desse negócio de demência. A vida é assim mesmo e o boxe é lindo. Nada se compara”.

Servílio convence. Fala com o coração. E a gente só lamenta não ter tido um campeão mundial como ele. Maldito descolamento de retina.