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Filho busca pai, boxeador preso, torturado e morto pela ditadura

Virgílio Gomes da Silva se tornaria o primeiro desaparecido político da ditadura - Reprodução/Arquivo de família
Virgílio Gomes da Silva se tornaria o primeiro desaparecido político da ditadura Imagem: Reprodução/Arquivo de família

Adriano Wilkson

do UOL, em São Paulo

06/06/2016 06h00

Virgílio Filho tinha seis anos quando os militares levaram seu pai e nunca mais o devolveram. Ele tem poucas lembranças claras da época. Uma delas é da figura esguia do pai lutando com a própria sombra, luvas de boxe em punho, socos no ar, pernas ágeis se cruzando no sítio onde a família se preparava para a revolução.

Virgílio Gomes da Silva, o pai, era um operário rígido que batia nos filhos para educá-los e criava orquídeas e passarinhos.

Os três meninos aprenderam a atirar antes dos oito anos. O pai os ensinou também a nadar, a fazer flexões e polichinelos e a brigar um com o outro só quando estivessem vestindo luvas de boxe.

Para se engajar na luta armada era preciso estar em forma, ele pensava. “Se não fosse o esporte meu pai não teria sido o revolucionário que foi”, decreta Virgílio Filho, 47 anos depois de tê-lo visto pela última vez.

Uma luta esquecida com um primo de Éder Jofre

O filho sabe apenas por alto sobre a curta carreira do pai no boxe amador. Um recorte de jornal encontrado anos depois de sua morte mostra o futuro guerrilheiro vestido de boxeador, com as mãos ao alto, como a comemorar uma vitória no ringue. A família nunca descobriu o contexto do retrato.

Uma edição do jornal “O Estado de S.Paulo” de 1958 anuncia uma luta de Virgílio pai, então um peso pena de 26 anos, contra Silvano Zumbano. O resultado e as circunstâncias dessa luta se perderam no tempo – o próprio Silvano, um primo menos conhecido de Éder Jofre, não lembra dela.

Virgilio Gomes da Silva, o 1º desaparecido político da ditadura, vestido como boxeador - Reprodução - Reprodução
Família encontrou recorte de jornal (sem detalhes) com foto do boxeador
Imagem: Reprodução

Mas Virgílio era tão fã de Éder que um dia abriu um bar na zona leste de São Paulo e o nomeou Galo de Ouro, o apelido do mais lendário boxeador brasileiro.

Em meados dos anos 60, após algumas lutas como amador, Virgílio deixaria o esporte para se engajar ativamente em greves sindicais, em assaltos a bancos e a joalherias, até se tornar um dos principais combatentes da luta armada contra o regime militar.

Rebatizou-se Jonas e, com esse nome, encaixou um golpe que os militares jamais esqueceriam.

O sequestro do embaixador americano

O filho lembra bem das ausências, do homem chegando em casa vestindo peruca ou bigode falso, disfarces que mais tarde a polícia da ditadura encontraria nos apartamentos que os guerrilheiros usavam como esconderijo.

Bigode e peruca ao lado de armas, munições e bananas de dinamite.

Anos depois, quando tivesse crescido ao ponto de poder entender as coisas, Virgílio Filho descobriria que durante uma daquelas saídas o pai havia comandado a ação mais ousada contra o regime militar: o sequestro do embaixador americano, solto apenas quando o governo aceitou libertar 15 presos políticos em troca.

Virgílio Gomes da Silva pula cordas como parte de seu treinamento físico - Acervo pessoal - Acervo pessoal
O guerrilheiro via o treino físico como fundamental para a luta armada
Imagem: Acervo pessoal

Por aquela ação e pelo que veio depois, Virgílio pai seria considerado para sempre um herói da resistência entre os esquerdistas com quem Virgílio Filho conviveria pelo resto da vida, seja em reuniões do Partido Comunista ou dos Trabalhadores, seja no Brasil, no Chile ou em Cuba, onde a família viveu depois de tudo que aconteceu com o pai.

O que aconteceu com o pai está descrito em linguagem científica no laudo do IML produzido dias depois de ele ter entrado em uma cela da Operação Bandeirantes, conduzido por militares que ficariam famosos pela crueldade que dispensavam aos “terroristas” de então.

As marcas da ditadura no corpo do boxeador, descritas pelo IML:

Escoriações em todo o rosto, braços, joelhos, punho direito.

Equimoses no tórax e abdômen, hematomas intensos na mão direita e na polpa escrotal.

Hematoma intenso e extenso na calota craniana, fratura completa com afundamento do osso frontal, hematomas em toda a superfície do encéfalo, hematoma intenso no tecido subcutâneo e muscular da sétima à décima-primeira costelas esquerdas, fratura completa da oitava, nona e décima costelas direitas.

Morte por traumatismo crânio-encefálico, causado por instrumento contundente.

***

Virgílio costumava dizer que, se um dia fosse preso e torturado, escolheria morrer a delatar seus companheiros. Alguns deles, presos também no dia 29 de setembro de 1969, lembram de seus gritos e das ameaças, dos chutes, socos e choques elétricos, e de como sua cabeça foi atirada diversas vezes contra o chão.

Os investigadores o mataram sem ter conseguido qualquer informação, mas depois mostraram o chão sujo com seu sangue e restos de massa encefálica para aterrorizar outros prisioneiros.

Quando uma pessoa é torturada sua família toda é torturada também

No dia seguinte, os militares interrogaram toda a família do morto em busca de informações que os pudessem levar a outros guerrilheiros. Virgílio Filho, então com seis anos, se lembra de ter dado um nome falso, conforme o pai orientara. Além disso, não disse nada.

A mãe acabou presa e torturada e passou dez meses na cadeia pelo crime de ser “mulher de terrorista”.

25.fev.2013 - Ilda Martins da Silva, viúva de Virgílio Gomes da Silva, e seus filhos Isabel Maria Gomes da Silva e Virgílio Gomes da Silva Filho participam de audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo sobre o caso do operário militante da ALN (Aliança Libertadora Nacional), que desapareceu dentro das dependências do DOI-Codi após ser preso por agentes da Operação Bandeirantes no dia 29 de setembro de 1969 - Marcelo Camargo/Agência Brasil - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Ilda Martins da Silva, viúva de Virgílio, e seus filhos Isabel e Virgílio Filho em 2013
Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

As crianças, dois meninos e uma bebê de colo, foram levados ao conselho tutelar e passaram a viver com medo de serem adotadas por outra família. Virgílio Filho dormia amarrado ao seu irmão e os dois ao berço de Isabel para que ninguém conseguisse os separar.

Quando a mãe foi libertada, eles partiram ao exílio.

O corpo do pai nunca foi encontrado.

Um deputado que exalta um torturador

No dia 17 de abril de 2016, Virgílio Filho, agora um engenheiro mecânico de 53 anos, estava no centro de São Paulo cercado por uma multidão vestida de vermelho. Atônito, ele viu um deputado federal subir em uma tribuna do Congresso e, para todo o Brasil, no meio da votação do impeachment dizer as seguintes palavras:

“Perderam em 64 e perderam agora em 2016.”

E logo depois exaltar a memória de um eminente torturador paulista.

Nesse momento, o filho do primeiro desaparecido político da ditadura, filho que nunca conseguiu saber onde seu pai está enterrado, chorou de raiva. E chorou de novo dias depois ao lembrar de tudo.

“Minha avó dizia que tudo que ela queria era saber onde o filho estava, mas ela morreu e não conseguiu”, disse Virgílio Filho. “Acho que minha mãe, que tem 80 anos, também não vai conseguir.” 

Homero Cesar Machado, acusado por Dilma de ser o torturador dela - Carlos Kilian/Agência AL - Carlos Kilian/Agência AL
Homero Cesar Machado, acusado de ter participado da tortura, morreu sem ser julgado
Imagem: Carlos Kilian/Agência AL

O capitão reformado Homero Cesar Machado, acusado pelo Ministério Público de ter participado da tortura a Virgílio, morreu no começo do mês passado, aos 75 anos.

Ele nunca foi julgado.