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Ninguém sabe o que fazer com o velódromo-fantasma da USP

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

09/10/2014 06h00

Victor Hugo Santos foi visto por seus amigos pela última vez numa madrugada de pop rock e hip hop que reuniu cerca de 5 mil estudantes no velódromo da Universidade de São Paulo. Eles estavam ali para se divertir e conhecer gente nova. Tinham pagado R$ 45 para poder beber o quanto quisessem durante a noite toda. Um amigo diria à polícia que por volta das 4h30 da manhã, Victor avisou que iria buscar bebida e se afastou.

Ninguém sabe o que aconteceu daí até o momento em que, três dias depois, o corpo de Victor foi encontrado na raia olímpica da universidade, a cerca de 100 metros de onde ele foi visto pela última vez. Ele não tinha sinais aparentes de afogamento, de acordo com os primeiros peritos que o analisaram.

A morte de Victor fez a universidade suspender todas as atividades marcadas para acontecer no velódromo, um gigante de concreto, aço e musgo, construído pela ditadura militar para receber um Pan-Americano que os generais decidiram de última hora não organizar. O velódromo, mesmo sendo um dos poucos de sua espécie no Brasil, não sedia um evento oficial de ciclismo ou de qualquer outro esporte há 20 anos.

Ninguém sabe direito o que fazer com ele. Arquitetos dizem que ele não cumpre normas de segurança. Estudantes dizem que só fazem festas lá porque não há outros espaços para elas no campus. Ciclistas, para quem o velódromo foi construído afinal, dizem que ele está defasado e fora dos padrões contemporâneos do esporte, mas que poderia ser usado para treinos. Reformá-lo é caro; destruí-lo pode ser mais caro ainda.

A universidade diz que não tem dinheiro para nenhuma das opções. Abandonado, sem manutenção há duas décadas, o velódromo viu duas árvores crescerem lentamente entre a pista e a arquibancada, o verde das folhas contrastando com o aspecto lunar do entorno. Ninguém cortou as árvores, nem impediu que entulhos fossem depositados ao pé, ao longo dos anos.

“É uma pena que esse equipamento enorme esteja sem uso há tanto tempo”, lamenta Emílio Miranda, o diretor do Centro de Práticas Esportivas da USP, que assumiu o cargo no começo deste ano e já trabalha na universidade desde os anos 70. “Mas a universidade não pode ser responsabilizada por um legado que ela recebeu de terceiros e não pediu. Hoje, temos algumas prioridades de investimento, e o velódromo não é uma delas.”

Sem a pista, atletas usam as ruas do campus para pedalar, às vezes em altíssima velocidade, o que provoca atritos com motoristas e pedestres, além do risco de acidentes. Há na USP uma briga antiga e eterna entre atletas e não-atletas, os primeiros sendo frequentemente acusados de desrespeitar os demais. Em 2011, uma jornalista da “Folha de S.Paulo” descobriu que motoristas estavam jogando tachinhas nas ruas do campus, numa tentativa de sabotar o treino e furar os pneus dos ciclistas.

A federação paulista de ciclismo, que até o começo dos anos 90 tinha uma sede no velódromo, afirma que saiu de lá porque a reitoria começou a restringir o acesso à pista, no que eles acreditam ter sido um reflexo dessa aversão acadêmica às magrelas. A universidade nega.

Era um tempo em que o esporte estava em alta no país, e o velódromo recebia milhares de pessoas para competições nacionais e internacionais. Era um tempo em que gente como Jair Braga, um dos grandes nomes da modalidade nos anos 80, estudava cada centímetro da pista e seus próprios batimentos cardíacos durante dias para tentar uma volta perfeita e uma quebra de recorde. Era um tempo em que bicicletas mexiam com a paixão das pessoas. Um tempo em que a rivalidade entre as equipes da Caloi e da Pirelli parecia quase um Corinthians e Palmeiras sobre rodas.

Hoje, o único esporte que o velódromo abriga são raros treinos de handebol na quadra improvisada na parte interna da pista. Quando a reportagem esteve lá, porém, ninguém soube dizer a última vez que isso havia acontecido.

Os poucos ciclistas de pista do Brasil se dividem entre os poucos velódromos espalhados em duas regiões do país. Em São Paulo, há dois no interior. O do Rio, construído para o Pan-Americano de 2007, foi descontruído e ninguém sabe o que fazer com as peças. A cidade erguerá outro, do zero, para a Olimpíada.

A seleção brasileira, que segundo a confederação do país tem tido resultados promissores para 2016, treina na Europa.

Velódromo e futebol

A história dos velódromos brasileiros é curiosa, assim como os usos que se deram a eles ao longo dos anos. No final do século 19, foi construído o Velódromo Paulista, na Rua da Consolação, centro da capital. Em seus primeiros anos, ele até recebia páreos de bicicletas, chamadas candidamente nos jornais da época de “machinas”. Mas logo isso iria mudar.

Em 1905, o local foi palco de shows de entretenimento como a decolagem do balão a gás do aeronauta português Magalhães Costa, que cruzou a Avenida Paulista pelo alto e aterrissou no bairro de Pinheiros para o espanto dos moradores.

Logo, percebeu-se que o espaço central do velódromo poderia ser usado para a prática de outro esporte também em ascensão na época, o futebol. No meio da pista, um gramado foi plantado, traves foram instaladas, o campo demarcado e os jogadores chamados para bater bola naquele que alguns historiadores consideram o primeiro estádio de futebol do país – conta-se que lá havia uma placa em que se lia: “É proibido vaiar”.

O futebol foi paulatinamente ganhando mais importância sobre o ciclismo e se tornou o esporte mais praticado no Velódromo Paulista, que manteve esse nome até ser demolido para dar lugar a uma avenida.

Durante a ditadura militar, São Paulo foi indicada para receber o Pan-Americano de 1975 – a cidade já sediara o evento em 1963. O Ministério do Esporte resolveu construir um novo velódromo no campus da USP.

Dois anos antes do Pan acontecer, o governo decidiu recusá-lo. A justificativa oficial era a de que o país estava ameaçado por um surto de meningite. Décadas depois, porém, funcionários disseram que o motivo real foi falta de dinheiro mesmo. Ainda assim, o velódromo na universidade foi erguido. E lá está ele até hoje.

A última gestão da reitoria, de João Grandino Rodas, encomendou um projeto para reaproveitar o espaço. O escritório de arquitetura Castro Mello, o mesmo que desenhou o novo Mané Garrincha, em Brasília, apresentou sua solução: demolir o velódromo e construir uma arena multiuso no lugar, a Arena USP.

Concorre para essa opção o fato de que a pista desse velódromo é de concreto, enquanto as melhores atualmente são de madeira. A pista da USP também está fora das dimensões oficiais que se usa hoje em dia.

A universidade assentiu. De acordo com a direção, há tão poucos ciclistas de pista, que não vale a pena reformar um velódromo que teria um uso muito restrito. A federação rebate, dizendo que existem poucos ciclistas de pista apenas porque, elementar, existem poucas pistas!

Pista do velódromo da USP, em São Paulo, abandonado há 20 anos - Adriano Wilkson/UOL - Adriano Wilkson/UOL
Imagem: Adriano Wilkson/UOL

“Sem dúvida se houvesse mais espaços para treinar, haveria mais gente interessada e disposta a praticar a modalidade”, afirma Gilson Avaristo, diretor técnico da federação. Ele argumenta que o Brasil anda na contramão do movimento olímpico porque as principais potências tendem a investir bastante no ciclismo, o esporte que mais distribui medalhas nos Jogos.

“No mundo todo, você começa pedalando no velódromo e depois vai para a estrada, é o caminho natural, mas aqui fazemos o contrário”, afirma Paulo Márcio Ferreira, o Melão, que compete por uma equipe de São Bernardo e treina em Caieiras, onde está o velódromo mais próximo da capital.

Para driblar a falta de uma pista própria, os ciclistas paulistas criaram um regulamento para adaptar as regras do esporte às ruas do Estado. Acostumaram-se, então, a pedalar suas bicicletas a cerca de 40km/h em estradas. Um detalhe: as bicicletas do ciclismo de pista, por padrão, não têm freios. “Se um cachorro, um buraco, ou qualquer coisa aparecer na sua frente, há muito pouco o que fazer”, diz Melão. O regulamento prevê uma área de escape para que os atletas desacelerem depois de um sprint.

As baladas e os motivos

Receber festas e outras atividades culturais, a princípio, não é um problema para velódromos, de acordo com as pessoas consultadas para esta reportagem. Em uma universidade, as atividades culturais e de lazer são essenciais para os estudantes confraternizarem. São também a única forma de eles levantarem fundos para manter a organização e o movimento estudantil.

No caso da pista da USP, o problema é que não há perspectivas no curto, médio e longo prazo para um uso esportivo do espaço, e o velódromo permanece abandonado. Cada um tem sua própria explicação sobre o atual estado das coisas.

Diz Emílio Miranda, diretor do Centro de Práticas Esportivas da USP: “O problema é que a federação simplesmente foi embora, perdeu o interesse no velódromo e foi buscar outros espaços no interior. A universidade nunca quis passar um cadeado e impedir o acesso, não faz sentido.”

Gilson Avaris, diretor da federação: “Tivemos o acesso cada vez mais dificultado pelas sucessivas reitorias e isso tem a ver com a aversão que a comunidade acadêmica tem a ciclistas. As desavenças foram ficando cada vez maiores. Como não havia mais como treinar lá, tivemos que buscar opções no interior.”

Gabriel Regensteiner, estudante de Ciência Sociais e diretor do Diretório Central dos Estudantes: “O problema é que a estrutura da USP é muito engessada e não há muito espaço para discussão com a comunidade. Deveria ser feito um debate amplo com todas as partes envolvidas para se definir qual é a função social do velódromo, mas isso não é feito e as decisões são quase sempre unilaterais. O velódromo não é o primeiro caso de uma obra faraônica que fica abandona, sem uso, na universidade.”

Eduardo de Castro Mello, autor do projeto da Arena USP: “É uma questão de estrutura. Universidades estrangeiras dão muita ênfase ao esporte, os equipamentos e instalações são sempre os melhores e é daí que saem os atletas de ponta. No Brasil não existe um direcionamento pra essa área, a universidade está mais voltada pro lado didático, e a parte esportiva é relegada a um segundo plano.”

Ao ser questionado sobre o futuro próximo do velódromo, o diretor Emílio Miranda dá de ombros e fala em um grupo de trabalho que vem discutindo uma forma de regulamentar as festas no local. Desde a morte de Victor Hugo, em meados de setembro, elas estão suspensas, por tempo indeterminado.

O projeto da Arena USP foi, aparentemente, engavatado logo depois de apresentado no final do ano passado. A direção argumenta que a greve de quatro meses, de professores e funcionários, atrasou todos os cronogramas.

Sem bicicletas, sem baladas, sem torcidas e sem razão de ser, o velódromo-fantasma, comparado pelo pai de Victor a um "mausoléu", permanece lá, imponente e decadente, um enorme ponto cinza no meio do campus verde da universidade.