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A pelada dos artistas moldou meu caráter

Chico Buarque durante pelada em 2004 - Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
Chico Buarque durante pelada em 2004 Imagem: Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
Leandro Ramos

11/12/2018 21h25

A família do meu pai é de Madureira, meu velho era amigo do João Nogueira e foi jogador do lendário time de pelada do João, tricampeão do campeonato anual do sítio do Chico Buarque. Depois de três títulos passeando em campo, o time de João e meu pai foi desfeito para privilegiar a competitividade do evento e todos os jogadores foram para as outras equipes. Meu pai foi parar no Politheama, o time do Chico Buarque, onde ganhou mais três títulos, sou filho de um vencedor.

Papai Evandro sempre foi um zagueiro de respeito e marcava craques e famosos como Afonsinho, Luis Melodia, Evandro Mesquita, Carlinhos Vergueiro, Ronaldo Golden Boy, entre outros. Eu adorava assistir às peladas e, vez ou outra, quando não era campeonato, os filhos dos peladeiros podiam completar os times a partir da terceira de fora. Passei a infância indo com ele aos sábados para o Recreio dos Bandeirantes, onde eu fazia a festa no bar do Severo, tomando altos Crush e Guaranás e vendo as "lendas" no gramado enquanto esperava minha oportunidade de entrar no campo e jogar com as "feras". Foi lá, nas manhãs ensolaradas, que meu caráter foi moldado por artistas e boleiros.

Nelsinho Rodrigues, filho do dramaturgo Nelson Rodrigues, jogava só de chuteira e sunga, sem camisa, com uma barba que ia até o umbigo e eu admirava demais seu estilo de futebol-vida, prezando a liberdade de movimentos e o fair play; Evandro Mesquita jogava de bandaninha, tinha um estilo meio Renato Gaúcho; Chico Buarque era lateral esforçado e elegante, Carlinhos Vergueiro era um ponta reclamão, eu morria de medo de marcá-lo porque se ele caía no chão gritava de dor, rolava no gramado e ver um adulto de mais de quarenta anos de idade rolar no gramado urrando era assustador para um garoto de quatorze anos; Luis Melodia era atacante, jogava na banheira e era muito gente boa, mas foi ele quem me ensinou a maior lição do jovem púbere que quer jogar com os experientes.

Era minha primeira oportunidade de jogar com os adultos e me colocaram na zaga pra correr atrás dos atacantes. Eu dava tudo em todas as bolas e na minha primeira disputa com Melodia, dividimos a bola e ele caiu. Muito elegante e malandro, ele olhou para mim de forma muito doce e pacientemente me disse "garotão, não divide com artista não que pode complicar para a gente." Ali eu entendi tudo, muitos deles fariam show no mesmo dia e não podiam se machucar, então jogar na zaga era muito chato porque entre tomar um gol ou dividir a gente tinha que tirar o pé, tomar gol pra não correr o risco de machucar ninguém, e Luiz, sacana como ele só, quando fazia gol ainda passava tripudiando dos adversários, tudo na brincadeira, claro, mas o adolescente de quatorze anos ainda não sabe brincar. Frustrado, cavei uma vaguinha no ataque porque no ataque eu podia jogar sério porque eu que seria marcado, e a coroada marcava mesmo, pra marcar falta na garotada tinha que ser muito falta mesmo, e no ataque aprendi a segunda maior lição da juventude futebolística: em pelada de coroa, moleque não pode correr.

Toda vez que eu, meu irmão, Diogo Nogueira, Rocco Pitanga, ou outro filho de um dos peladeiros entrava com muita vontade imprimindo correria e metia um, dois gols, era sacado por alguém do time adversário sem a menor cerimônia:

- Evandro, teu filho tá correndo demais, pode tirar que a pelada aqui é cadenciada.

E a gente tinha que sair, frustrado por estar jogando bem. Para se manter no gramado, não podia correr muito, não podia marcar sério, só podia dar passe e se errássemos uma bola era esporro. Como é difícil ser jovem nos campos do Brasil, mas isso me tornou um homem melhor. Obrigado, pai. 

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