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Agora vai?

Ugo Soares/UOL

Última chance

Jean Chera chega à 4ª divisão e se aposenta se não emplacar

Adriano Wilkson Enviado especial a Santos
Ugo Soares/UOL

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Um pouco depois das 9h da manhã de uma quinta-feira chuvosa em Santos (SP), um homem de cara fechada entra no vestiário onde cerca de 25 jogadores acabaram de rezar de mãos dadas um pai-nosso e uma ave-maria.

“Deixa eu dizer uma coisa para vocês”, anuncia Samuel Maninho, gerente de futebol da Portuguesa Santista. “Horário de almoço e de janta está marcado, quem não cumprir vai ficar sem comer. Para de ficar resenhando, para de ficar batendo bolinha... quem perder o horário não vai ser perdoado.”

Os jogadores, batalhando por um lugar ao sol na quarta divisão do futebol paulista, com um pé no profissionalismo e outro na várzea, mantém o olhar fixo no gerente, talvez torcendo para a bronca acabar logo. Mas Maninho está apenas começando.

“Quem está tomando refrigerante, eu vou pegar a Coca e vou ficar. Nem eu tomo essa bosta! Vocês são jogadores”, afirma ele, em um misto de indignação e revolta. “Cabou, velho! Quer tomar refrigerante, toma escondido. Depois fica que nem louco aí, se matando.”

 “Um bom dia pra vocês.”

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Ele sai e deixa os atletas calados, meio envergonhados, meio surpresos. Jean Chera, sentado num banco encostado à parede, amarra o cadarço do tênis.

O grupo sai aos poucos do vestiário e se dirige a um areal perto dali, onde, por duas horas, eles vão correr, pular, desviar de cones e correr de novo, embaixo de chuva e sol. Podem estar na última divisão do Estado e jogar em gramados esburacados contra times que ninguém nunca ouviu falar, mas ainda assim, são jogadores profissionais.

Mais tarde, enquanto come um prato equilibrado de vegetais, proteína e carboidrato, Jean, que algum dia chegou a pensar que seria o melhor jogador do mundo, me explicará que aquela bronca não tinha sido dirigida a ele.

Poderia ser alguns meses atrás, porque ele realmente estava desleixado, bebia muito refrigerante, abusava de doces, comia fora de hora, dormia mal. Ganhou peso, peso demais. Como consequência, hoje não tem o mesmo fôlego dos companheiros durante os treinos com bola, vê os outros passarem por ele como caminhões desgovernados; e ele não consegue correr tão rápido, é facilmente marcado, não ajuda na marcação ao adversário. 

Mas agora, diz ele, agora ele quer fazer tudo diferente. Disciplinou sua alimentação e seu horário de dormir, cortou o refrigerante e outros doces, perdeu peso e percentual de gordura e se dedica aos treinos como se disso dependesse sua vida.

Depois de ganhar muito dinheiro na base do Santos e do Genoa da Itália, depois de passar pela base do Flamengo e do Cruzeiro, depois de rodar por um time pequeno da Grécia e de equipes como o Oeste (2ª divisão) e Cuiabá (4ª), depois de ter sido chamado de o futuro do futebol brasileiro e depois de ter fracassado em tudo isso, ele sabe que agora vive sua última chance de dar certo.

"A última chance", Jean Chera suspira, pensando em seu passado atribulado e no que o futuro lhe reserva. Ele tem 20 anos de idade.

“Se eu não conseguir jogar na quarta divisão, é melhor desistir logo e tentar fazer outra coisa da vida”, diz ele, ainda assim confiante de que agora chegou sua hora de virar realidade.

A história de Jean

Arquivo Pessoal/Jean Chera

Programa do Gugu

Depois que Robinho e Diego explodiram no começo dos anos 2000, o Santos e a imprensa esportiva iniciaram uma busca quase obsessiva por seus sucessores.

No Mato Grosso, o pai de Jean Chera costumava filmar os jogos do filho, então uma criança de nove anos, e essas imagens – que mostravam o garoto driblando um time inteiro e fazendo gols impossíveis – acabaram indo parar no "Programa do Gugu", do SBT.

Logo, ele foi convidado a fazer embaixadinhas ao vivo no palco, e a atração fez tanto sucesso que a ela seguiu-se uma enxurrada de convites de outras emissoras. Em pouco tempo, Jean já tinha aparecido em quase todos os canais possíveis.

Não demorou para o Santos contratá-lo e tratá-lo como uma pequena estrela, pagando-lhe cerca de R$ 30 mil, mais do que a maioria dos jogadores adultos do país recebe. O clube tinha certeza de que estava nascendo ali um jogador que chegaria ao topo.

A mídia também. Programas de TV como o “Globo Repórter”, o “Profissão Repórter” e o “Esporte Fantástico”, sites como o UOL, jornais e revistas nacionais, todos fizeram reportagens sobre o garoto, enfatizando seu talento incomum e a possibilidade de ele ir muito longe na carreira.

Jean cresceu com essa certeza, e em todas as entrevistas dizia que seu sonho era chegar à seleção brasileira, ser campeão do mundo e disputar o título de melhor jogador do planeta.

Naquela época, o Santos também preparava outros dois garotos de maneira especial. Como Jean, eles recebiam tratamento VIP e participavam de campanhas publicitárias no país inteiro, moldando a marca do clube como um formador de talentos precoces.

Um deles era o atacante Gabriel, hoje titular da equipe e considerado um dos jogadores mais valorizados do futebol brasileiro. O outro era Neymar.

Divulgação/Santos FC

Gabriel, Jean Chera e Neymar na base santista

Samir Martinez/UOL

Culpam o pai

Quem acompanhou de perto a ascensão do trio diz que se depositavam até mais expectativas sobre Jean do que sobre Gabriel e Neymar. Mas Jean foi o único que não emplacou. Ele também foi o único que não completou sua formação de base no clube que primeiro apostou nele.

Hoje, se arrepende de ter saído do Santos atrás de mais dinheiro na Europa. "Talvez se eu tivesse ficado as coisas hoje poderiam estar bem diferentes", admite.

Se você perguntar a qualquer jornalista, técnico, diretor ou torcedor que acompanhou a carreira de Jean, ele provavelmente vai apontar um culpado pelo fracasso do garoto: Celso Chera, seu pai.

Em Santos, Celso deixou uma imagem de pai chato e exigente e, de acordo com treinadores e jornalistas que trabalharam perto dele, costumava pressionar a diretoria para garantir que seu filho fosse sempre titular das equipes de base.

"O Jean era um menino talentoso e titular. Para você ver: sem o pai, ele ajudava na marcação e fazia tudo certinho. Mas o pai botava na cabeça que o filho era um craque. E o Jean passou a pensar que era", endossou Flavio Antunes, ex-treinador de Chera no sub-15 do Santos, em 2013.

 "O moleque é vítima de um pai louco, que briga com todos. O Palmeiras descartou o menino na mesa de reunião por causa do pai. O Andrés [Sanchez] disse que não contrataria o Jean porque não suportava o Celso. O Jean é tranquilo. O pai que estraga", declarou Ricardo Mendes, empresário que ajudou a levar Jean Chera para o Genoa, também em 2013.

O atleta se arrepende de ter seguido seu conselho e deixado o clube aos 16 anos. Foi jogar na Itália por um salário muito maior do que a direção santista estava disposta a pagar.

O pai acabou brigando com o então presidente santista, acusando-o de não tratar seu filho da maneira que ele merecia. A partir daí, Jean começou a ser visto menos como um craque em potencial e mais como uma promessa que nunca se realizaria.

As camisas de Jean Chera

  • Santos

    Chegou ao clube aos 10 anos e em pouco tempo já tinha o maior salário da base. Aos 16, viu seu pai pedir três vezes mais para renovar o vínculo, aumento progressivo e um adiantamento milionário. O Santos não aceitou.

    Imagem: Divulgação/Nike
  • Genoa

    Na Itália, teve tratamento de estrela, mas não jogou. Precisava do passaporte italiano para defender a equipe, que só podia escalar um número limitado de estrangeiros. Sem o documento foi dispensado.

    Imagem: Divulgação/Genoa
  • Flamengo

    Chegou via Patrícia Amorim como futura aposta para o time profissional, mas nunca jogou lá. Marcou gols no time sub-17, mas não era titular absoluto e chegou a ser encostado e não relacionado. Funcionários reclamaram da atuação do pai nos bastidores. Saiu alegando salários atrasados.

    Imagem: Divulgação/Adidas
  • Atlético-PR

    Apresentado com badalação como reforço para o time sub-23 do Atlético, acabou não agradando nos treinos e sendo rebaixado ao sub-17. Com poucas participações em jogos-treinos e sem atuar oficialmente, foi dispensado seis meses depois.

    Imagem: Divulgação/Umbro
  • Cruzeiro

    Com um contrato de experiência, ouviu de um empresário sobre uma proposta do West Ham, da Inglaterra. Abandonou o Cruzeiro, sonhando em voltar à Europa, mas depois soube que a proposta era só para testes. Não aceitou. Diz se arrepender de ter deixado Minas.

    Imagem: Divulgação/Cruzeiro
  • Oeste (SP)

    Teve nova oportunidade no Oeste, de Itápolis (SP), que se preparava para jogar a Série B do Brasileiro. Não conseguiu jogar e acabou dispensado após três meses. Diretores disseram que ele não era comprometido e estava sempre acima do peso.

    Imagem: Divulgação/Kanxa
  • Paniliakos (Grécia)

    De volta à Europa, tentou jogar em um time da Romênia, mas acabou indo à 2ª divisão da Grécia. Pelo Paniliakos, fez sua primeira partida como profissional. O clube, porém, começou a atrasar salários e, logo depois, decretou falência.

    Imagem: Reprodução
  • Cuiabá

    Em 2015, voltou a seu Estado de origem, o Mato Grosso, para ficar mais perto da família. Não acompanhou o ritmo do time, jogou por apenas 40 minutos durante os cinco meses de contrato e foi dispensado outra vez.

    Imagem: Divulgação/SóFutebolBrasil
Divulgação/Portuguesa Santista

Mudança

Jean carrega no braço uma tatuagem com o nome do pai, e ambos afirmam que eles têm uma relação ótima. Mas, depois de tantos insucessos, o jogador pediu para Celso não fazer a gerência de sua carreira. Segundo ele, o garoto chegou a receber R$ 200 mil mensais do Genoa, fora regalias como carro de último ano, aluguel de uma casa enorme com piscina perto da praia e um tratamento diferenciado da direção italiana.  

“É fácil todo mundo botar a culpa em mim”, diz Celso Chera, por telefone, do Mato Grosso. “Mas se hoje o Jean estivesse com a 10 da seleção, ninguém estaria falando nada. Não posso dizer que a ida à Itália foi um erro, pode ter sido. Mas quem garante que se ele ficasse no Santos teria estourado? Eu nunca pressionei ninguém. Tudo que eu fazia era apontar coisas que eu achava um absurdo. Mas não tinham nada a ver com o Jean”, diz ele.

O dinheiro que Jean ganhou na adolescência permitiu uma vida confortável à família e ajudou o pai a abrir uma imobiliária em Sinop (MT). Hoje, o jogador não precisa se preocupar com sua situação financeira.

No ano passado, aceitou voltar ao Santos recebendo R$ 900, uma fração ínfima do que ganhava aos 13 anos. Era uma chance de retomar a carreira em um clube grande. Alguma coisa, porém, ainda o incomodava.

Reprodução

Ele decidiu dar um basta

No final do ano, quando a família foi passar as festas de Natal e Ano Novo em Itapema, no litoral de Santa Catarina, ele reuniu o pai e a mãe para comunicar uma guinada radical na sua vida. Ele queria ficar mais perto da família após perder a infância correndo atrás de bolas.

“Eu acho que vou parar de jogar”, ele se recorda de ter dito no meio do verão. “Não quero mais.”

O pai – sempre o pai – foi o primeiro a reagir. “A bola ainda é redonda, ela não ficou quadrada", Celso Chera se lembra de ter dito, tentando fazer o filho entender que ele tinha muito talento e conhecia a bola muito bem e só precisava de paciência.

A mãe também foi contra sua aposentadoria precoce, e o casal se revezou em discursos que por fim demoveram Jean, lhe sopraram ânimo renovado e o fizeram entrar em 2016 com a esperança de que esse, enfim, será o seu ano.

Ugo Soares/UOL

A última chance

De volta ao litoral paulista, descobriu que o Santos não pretendia utilizá-lo e ele foi emprestado, junto com um punhado de outros jogadores, à Portuguesa Santista, clube que caiu para a última divisão do Estado, de onde luta para sair.

Jean afirma estar confiante, animado com a nova realidade. Ele mudou sua dieta, perdeu peso, está controlando seu percentual de gordura e acredita que tem tudo para ajudar a equipe a subir de divisão.

“Futebol ele tem”, atesta Ricardo Costa, técnico da Briosa, “só precisa melhorar a parte física. Se melhorar isso, esperamos que faça diferença a nosso favor. Mas também sabemos que tudo tem seu tempo e aqui ele terá tranquilidade para evoluir no ritmo dele.”

Adriano Wilkson/UOL

Alvo da mídia novamente

O cinegrafista monta seus refletores no vestiário enquanto jogadores saem nus do chuveiro, caminham despreocupados sobre um chão de borracha antiderrapante e se arrumam para ir embora depois de um treino exaustivo.

Jean Chera se prepara para um terceiro turno de trabalho: vestido com camiseta rosa, bermuda preta e chinelos brancos, ele vai ficar no centro dos holofotes outra vez. O cinegrafista quer fazer imagens para uma reportagem da TV Globo a ser exibida nos próximos dias. 

Desde que ele tinha nove anos, as pessoas lhe pedem para fazer as mesmas coisas em frente às câmeras e ele sempre as atende com paciência, acreditando que isso também faz parte de sua profissão. Agora, sob holofotes outra vez, de volta à cidade onde tudo começou, o jogador marca um recomeço em sua carreira midiática.

As luzes do teto se apagam e dois grandes refletores são apontados direto para a cara de Jean. E ele tiras as chuteiras.

As chuteiras são a única parte visível do uniforme de um jogador de futebol que ele pode escolher. Você olha para a chuteira de um jogador e talvez tenha uma ideia de sua personalidade, de seu espírito, de seu humor naquele dia.

Quando Jean Chera se cala, seus pés ainda têm uma última coisa a nos dizer sobre ele. 

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Chuteira preta da simplicidade

No canto do vestiário, o roupeiro enfileira as chuteiras de todos os jogadores da equipe formando um mosaico de calçados multicoloridos – laranjas, verde-limão, amarelos, prateados...

Um par, porém, sobressai entre os demais: chuteiras simples, pretas, apenas com a marca do patrocinador branca ao lado, uma raridade no futebol contemporâneo que alguns saudosistas costumam celebrar como insígnias de honra.

E é justamente Jean Chera, aquele que é visto pelo mundo do futebol como um produto da mídia, o único a usar a cor mais tradicional.

Quando eu trago a questão à tona, ele minimiza: “É só coincidência.”

“Mas pensando bem, eu prefiro ser mais simples assim mesmo, ainda mais nessa fase, na quarta divisão, depois de tudo que aconteceu... Quanto mais simples melhor.”

***

A Portuguesa Santista já fez dois jogos no torneio que é oficialmente chamado de Segunda Divisão, mas que, depois das séries A1, A2 e A3, equivale na prática à quarta divisão do futebol paulista. 

Ainda aprimorando a forma física, Jean Chera não foi escalado.

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