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Fórmula 1

Capítulo 2: Por que a Williams que matou Senna era "inguiável"?

Livio Oricchio

Do UOL, em São Paulo

28/04/2014 16h50

GP do México de 1990, circuito Ricardo e Pedro Rodriguez, dia 23 de junho. Os dois carros da equipe Leyton House, ex-March, pilotados por Ivan Capelli e Mauricio Gugelmin, não se classificam para disputar a prova. Havia 29 inscritos e apenas os 26 mais rápidos largariam. O modelo CG901 do time, equipado com motor Judd V-8 e concebido pelo então novato engenheiro Adrian Newey, o mesmo da Williams em 1994, não conseguiu ser veloz nas muitas ondulações dos 4.421 metros da pista mexicana.

No veloz S de alta velocidade daquele traçado e, principalmente, na desafiante Peraltada, contornada em 5.ª marcha a cerca de 250 km/h, o CG 901 não gerava a pressão aerodinâmica necessária – por conta da sua suspensão quase não ter curso, ser muito dura. A cada irregularidade do asfalto, o monoposto saltava, variando a densidade do ar sob o assoalho e, por consequência, sem gerar tanta downforce, a pressão que “empurra” o carro contra o asfalto, tornando-o mais rápido nas curvas.

Avancemos apenas quinze dias no tempo, até 8 de julho de 1990, data do GP da França, realizado no circuito de Paul Ricard, próximo de onde resido, em Nice. Um tapete de pista, em oposição ao cenário da etapa anterior do Mundial, no México. Os seus 3.813 metros eram planos como uma imensa mesa de bilhar. O que aconteceu? O mesmo modelo CG 901 da Leyton House permitiu que Ivan Capelli quase vencesse a prova. O italiano liderou 45 das 80 voltas da corrida.

Ivan Capelli é comentarista da TV italiana e nos tornamos amigos. Com regularidade, almoçamos no motorhome da Pirelli ou da Ferrari. É ele que dá, agora, detalhes daqueles dois GPs de comportamentos antagônicos para o seu carro. "No México, com todas aquelas ondulações, o March estolava". Isso quer dizer que perdia completamente a pressão que o mantinha no solo. "Tínhamos de ser prudentes para não perder o controle total do carro".

A Williams, como a March

Nos primeiros testes de Senna em 1994 com o FW16 no Estoril, próximo a Lisboa, ouvimos exatamente a mesma coisa. Ivan Capelli contou-me mais: "Não havia curso nas suspensões. Elas não absorviam nenhuma elevação ou depressão do asfalto. Nós sentíamos tudo no bumbum". Pois Senna fez comentário semelhante também.

O piloto italiano, no entanto, se divertiu em Paul Ricard. "Alain Prost tinha um motor V-12 na sua Ferrari e, mesmo sendo bem mais rápido que eu na longa reta, não me passava. Minha velocidade de curva era bem maior", disse, rindo. "Foi uma pena a luz de pressão do óleo acender, o que me obrigou a trocar as marchas com menos giros e, claro, ser mais lento. Mesmo assim, terminei em segundo, a apenas oito segundos do Alain Prost." E lembra: "Isso tudo depois de sequer me classificar duas semanas antes no México".

Todas as cartas na aerodinâmica

O que eu quero dizer? Que os projetos de Adrian Newey, como o CG 901 e depois, quatro anos mais tarde, o FW16 da Williams, baseavam sua performance quase que exclusivamente na aerodinâmica. E até hoje, na Red Bull, não é diferente. Ele cresceu muito como engenheiro e os recursos à disposição, agora, o permitem atenuar esses efeitos indesejáveis de conceber um monoposto sem curso nas suspensões a fim de obter, teoricamente, o máximo de resposta aerodinâmica.

Alain Prost, na Williams, em 1993 - Getty Images - Getty Images
Alain Prost, na Williams, em 1993
Imagem: Getty Images

Se o asfalto fosse plano e permitisse que o assoalho se deslocasse paralelo ao solo, sem haver muita variação de altura, o carro alcançava velocidades extraordinárias nas curvas, por conta de gerar elevada pressão aerodinâmica. Com certeza, mais que a dos seus adversários, como Ivan Capelli demonstrou em Paul Ricard quando, com um motor V-8, quase vence um rival com um V-12, como a Ferrari de Alain Prost.

Agora, se a pista fosse ondulada, o carro quase não fazia curva. O ar variava muito de densidade sob o assoalho, por conta dos pulos, e essa falta de uniformidade dos fluxos de ar não permitiam a geração de pressão aerodinâmica.

Responsabilidade no acidente

A insistência no tema tem uma razão: esse era o maior problema da Williams FW16 e teve peso elevado na média ponderada de responsabilidades que explica o acidente fatal de 1.º de maio.

Podemos recorrer a um exemplo um tanto grosseiro, mas válido, para tentar entender o que se passava com o carro de Ivan Capelli e a Williams de Senna. Se você encher demais os pneus do seu carro, bem além das libras recomendadas, o que acontece? Em qualquer das muitas depressões e elevações do asfalto nas cidades brasileiras, ele irá pular em demasia, não é? Dá para sentir isso, sem dificuldades, no volante. Torna-se instável.

Com um carro de Fórmula 1 sem suspensão, como eram os de Adrian Newey, para tentar fazer o assoalho correr paralelo ao solo, era o mesmo – obviamente, numa proporção bem maior. No nosso carro, o pneu pode estar duro, por ter maior pressão, mas a suspensão ainda absorveria parte das irregularidades. Portanto seria menos grave que nos exemplos da F1. No México, os pilotos não se classificaram e, duas semanas apenas mais tarde, na França, um deles quase vence a prova. Dá para entender quão decisiva é a aerodinâmica na F1?

Agora vamos entrar no túnel do tempo de novo para desembarcar em fevereiro de 1994, quando Senna já testava o modelo FW16 da Williams projetado pelo mesmo Adrian Newey. O engenheiro acabou dispensado da Leyton House, em meados da temporada de 1990, em razão da instabilidade de resultados que seu monoposto gerava. Tudo ou nada.

Vale a pena eu colocar aqui uma frase dita pelo homem que assumiu a equipe naquela época, no lugar de Adrian Newey: o austríaco Gustav Brunner, hoje aposentado da F1. "Tão logo vi o projeto de Adrian Newey, o CG 901, disse a mim mesmo: como ele quer que funcione?" Eu ouvi isso de Brunner, com quem até hoje costumo manter breves conversas.

Adrian Newey renova a Williams

Mandado embora da Leyton House, Adrian Newey foi chamado por Patrick Head, da Williams, cujos dois últimos projetos, de 1988 e 1989, não eram nem a sombra do que venceu o Mundial de 1987, com Nelson Piquet. A Williams precisava de conceitos novos.

O surrealismo das ideias de Adrian Newey em sincretismo com a praticidade, por vezes exacerbada, de Head resultou numa combinação perfeita. “Eu tinha de puxar Adrian pelas pernas de volta para a terra”, contou-me Patrick Head.

E falou mais da sua convivência de sucesso com o projetista: “No começo, ele nos apresentava o que desejava fazer e, por vezes, nos chocava. Sabíamos que não haveria como funcionar. Para trabalhar com Adrian é preciso dispor de muito bom orçamento. Ele realiza um número grande de experiências até encontrar o resultado que deseja. Assim, as soluções notáveis que seus carros incorporam na realidade representam o resultado de elevados investimentos em pesquisa. Adrian é muito intuitivo".

Já em 1991, o modelo FW14-Renault da Williams, o primeiro da parceria entre Adrian Newey e Patrick Head, levou Nigel Mansell a disputar o título com Senna, de McLaren MP4/6-Honda, até a penúltima etapa do campeonato, no Japão. A vitória final ficou mais por conta do talento de Senna e das dificuldades iniciais da Williams com a confiabilidade do seu novo carro.

A Williams já havia deixado, tecnicamente, a McLaren para trás. Em 1992 e 1993 não houve concorrência: o modelo FW14 de 1992 foi campeão com Nigel Mansell já no GP da Hungria e, na temporada seguinte, o FW15C, com Alain Prost, era muito superior ao usado pelos adversários.

1993, o ano de Senna

Pessoalmente, vejo a temporada de 1993 como a mais fantástica de Senna na F1. A McLaren competia com motor Ford V-8, adquirido sob leasing da Cosworth. Não era o V-8 Ford destinado à escuderia oficial da montadora, a Benetton, de Michael Schumacher. Entre o motor da McLaren de Senna e o da Benetton havia pelo menos 20 cavalos de diferença em favor da versão oficial da Ford.

 
Entre o V-8 versão cliente de Senna e o V-10 oficial da Renault para a Williams de Alain Prost, os cerca de 90 cavalos a mais à disposição do francês definiam quase outra categoria.
 
Recordo de ver Senna comentar conosco naquele ano, em Hockenheim, na Alemanha: “Não dá para competir aqui com o baixinho (Alain Prost). Ele acelera na saída da chicane e eu o vejo ir embora, embora sem que possa fazer nada”.
 

 
Mesmo assim, Senna venceu cinco etapas: Brasil, Europa (em Donington, memorável, diga-se), Mônaco, Japão e Austrália. Alain Prost ganhou sete GPs e ficou com o título.
 
Carro sobre trilhos
 
Há alguns anos, visitei a Williams em Grove, a oeste de Londres. Estava no salão onde o time inglês mantém todos os seus carros de F1. Jonathan Williams, filho de Frank Williams, me perguntou qual daqueles modelos eu mais apreciava. Respondi sem hesitar que era o FW15C, de 1993, o monoposto de F1 que mais reuniu eletrônica embarcada na história.
 
Vê-lo percorrer as pistas equivalia a assistir à passagem de um desses trens supervelozes. O FW15C parecia se deslocar sobre trilhos, tal sua estabilidade. Lembro-me de, em 2012, na área interna da Parabólica, de Monza, detectar grandes semelhanças entre as reações extraordinariamente equilibradas do modelo RB8-Renault da Red Bull de Sebastian Vettel, carro que melhor explorava o conceito do escapamento aerodinâmico, e o FW15C-Renault da Williams de Alain Prost em 1993.
 
Por que o carro anterior ao que Senna bateu e morreu em Ímola era tão diferente, mais eficiente, do usado por ele naquele GP de San Marino de 1994? 
 
Na Fórmula 1, nada se explica isoladamente. Mas, em essência, a maior vantagem da Williams era exatamente na aerodinâmica. E o grupo de técnicos de Patrick Head desenvolveu um sistema de suspensão ativa tão complexo quanto preciso. As irregularidades do asfalto eram absorvidas por ela. Tanto o FW14, de 1991, e o FW14B, de 1992, quanto o FW15C conseguiam manter o paralelismo ao solo de seus assoalhos em função da incrível suspensão ativa do carro. E, para alegria de Adrian Newey, em qualquer circuito.
 
Patrick Head e a sua suspensão ativa fizeram com que, vamos chamar assim, os dois projetos da Williams corressem dentro de um túnel de vento, já que a maior parte das variáveis encontradas na pista eram anuladas, ou minimizadas, pela suspensão ativa da equipe. 
 
O sistema fazia com que o carro se deslocasse sempre em condições semelhantes para as quais foi projetado, sem as indesejáveis interferências, como a frente abaixar nas freadas ou levantar nas acelerações e inclinações nas curvas. Ainda que mínimas, essas variações interferem radicalmente na capacidade de gerar pressão aerodinâmica do monoposto.
 
Curiosamente, fala-se agora, abril de 2014, em voltar a admitir a suspensão ativa na F1 a partir de 2016. Com os recursos de hoje, isso elevaria sobremaneira a performance dos carros. Questiono se não afetaria a segurança da competição.
 
Voltando a 1993. Quando Senna corria atrás do modelo FW15C de Alain Prost, mal podia compreender como sua velocidade nas curvas, em especial nas rápidas, era tão elevada. Sua McLaren MP4/8 Ford, concebida por Neil Oatley, até hoje do grupo de engenheiros da McLaren, além de possuir um motor com cerca de 90 cavalos a menos de potência, não tinha a mesma eficiência aerodinâmica do FW15C.
 
Foi a partir dessas constatações, na pista, que Senna chamou o modelo da Williams de "carro do outro planeta". Era esse monoposto de Fórmula 1 que ele sonhava dirigir quando foi para lá. Agora, o que Senna, Frank Williams e Adrian Newey não imaginavam era o estrago que faria nos seus sonhos a proibição da suspensão ativa, a partir de 1994.
 
A Williams retornou, com a mudança no regulamento, guardadas as proporções, ao estágio da Leyton House de 1990. Adrian Newey conceberia para a Williams um carro para, de novo, funcionar dentro apenas da condição ideal do túnel de vento. No asfalto irregular das pistas, a coisa não daria certo. Por esse motivo, Senna ficou tão surpreendido logo nos primeiros testes. Como ele lembrou, o FW16, na sua versão original, era inguiável.
 
Só na sua segunda versão, utilizada a partir do GP da França, o carro se tornou mais previsível e competitivo. Tanto que Damon Hill, companheiro de Senna, disputou o Mundial com Michael Schumacher na etapa de encerramento da temporada, em Adelaide, na Austrália.
 
Projeto ousado
 
A preocupação com a aerodinâmica no FW16 foi tão obsessiva que a suspensão traseira não possuía triângulo superior. O semieixo de tração funcionava também como um componente da suspensão, carenado com um perfil de asa, como se fosse um segundo aerofólio traseiro, mas de dimensões reduzidas. A FIA relutou em aceitar a suspensão, por ser um elemento móvel com função aerodinâmica, algo previsto e proibido pelo regulamento. Acabou validando a ideia. Para quem se interessar, faça uma consulta na internet sobre como era a suspensão traseira da Williams de Senna.
 
Senna pilota a Williams, em 1993 - Pisco Del Gaiso/Folhapress - Pisco Del Gaiso/Folhapress
Senna pilota a Williams, em 1993
Imagem: Pisco Del Gaiso/Folhapress
 
No momento do acidente, no GP de San Marino, pela exigência a que estavam submetidos o triângulo inferior e o semieixo, já que não havia na suspensão triângulo superior, pensou-se, em princípio, que ocorrera alguma quebra nessa suspensão revolucionária. 
 
A dinâmica do acidente, com o FW16 seguindo direto pela tangente da curva Tamburello, porém, não sugeria o rompimento desses componentes. O mais natural seria que o carro rodasse e não fosse reto, como vimos. Mesmo assim, as suspeitas iniciais recaíam nesse sistema, tão avançado quanto complexo.
 
Voltar para o carro de 1993
 
Por conta da dificuldade de pilotar o seu carro, Senna solicitou a Frank Williams treinar também com o FW15C adaptado ao regulamento de 1994. Ou seja, sem os recursos eletrônicos proibidos pelas novas regras. A Williams já tinha o carro pronto, pois foi usado como laboratório para as experiências de Adrian Newey antes de construir o FW16. Senna sentia que o carro-protótipo era bem melhor, pelo menos mais previsível, que o novo. 
 
Adrian Newey bateu o pé e disse que, se aquela fosse a opção da Williams, não haveria depois como recuperar o tempo perdido para o desenvolvimento do FW16, o carro que deveria seguir adiante na temporada. Senna e Frank Williams acabaram sendo convencidos pelo projetista e por Patrick Head. Foi com o FW16 que o tricampeão desembarcou no Brasil para a abertura do Mundial de 1994. Na escuderia que ele sempre sonhara e no posto em que os brasileiros tanto aguardavam.
 
O que pouca gente sabia era que Senna estava profundamente desconfiado daquele carro, no qual ele quase não cabia e mal conseguia pilotar, tal a sua instabilidade ao passar sobre qualquer irregularidade do asfalto. Os 45 mil torcedores que foram a Interlagos naquele 27 de março de 1994, no GP do Brasil, imaginavam ver Senna no monoposto que fizera Nigel Mansell e Alain Prost sobrarem na pista. O que Senna não faria então?
 
Esse é o Capítulo 2 da série "O que você ainda não sabe sobre a morte de Senna, 20 anos depois", de Livio Oricchio. Navegue, também, pelas outras histórias:

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