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Fórmula 1

Capítulo 3: A trapaça da Benetton de Schumacher colocou pressão em Senna

Livio Oricchio

Do UOL, em São Paulo

28/04/2014 16h51

Faltavam 16 voltas para o encerramento do GP do Brasil de 1994, prova de abertura daquela temporada, quando Ayrton Senna acelerou um pouco mais do normal, na saída da curva Junção, em Interlagos, como reconheceu, e sua Williams FW16-Renault lançou a traseira para fora, fazendo-o rodar na pista e abandonar a competição. Michael Schumacher, com a Benetton B194-Ford, liderava a corrida, menos de cinco segundos à frente de Senna. 

Apesar de todas as dificuldades já descritas com o carro, graças ao seu imenso talento, Senna estabelecera a pole position do GP do Brasil, na sua estreia na Williams. Não há dúvida de que a maior potência do motor Renault V-10 da Williams, diante do Ford V-8 da Benetton de Michael Schumacher, o ajudou, num circuito de retas longas e subidas íngremes, a conquistar o resultado no treino de classificação. Senna fez 1min15s962 e o alemão, 1min16s290.
 
E desde a largada Senna manteve-se em primeiro, com Michael Schumacher sempre muito próximo. Os dois entraram juntos no pit stop para troca de pneus e reabastecer o carro, outra grande novidade na F1 naquele ano.
 
A multidão que lotou as arquibancadas de Interlagos acompanhou com apreensão a parada de Senna nos boxes, líder, e Schumacher, segundo, na 21.ª volta do GP do Brasil, que teve 71 no total. Dali, talvez, pudesse sair o vencedor da prova.
 
Benetton irregular
 
A Benetton foi mais "eficiente" e o alemão saiu na frente, com Senna imediatamente atrás. Com um carro difícil de guiar, que pulava a cada ondulação do piso de Interlagos, e elas são muitas, o brasileiro foi obrigado a buscar o seu elevado limite para tentar ganhar a posição perdida. "Corri para vencer, o segundo lugar não interessava, a mim e a essa gente toda nas arquibancadas", revelou. 
 
Nessa tentativa de colocar sua Williams o mais próximo possível da Benetton de Michael Schumacher na saída da Junção, Senna ultrapassou o limite do FW16 da Williams e rodou. Ele sabia que sua velocidade no final daquele longo trecho de aceleração plena, com cerca de 1.200 metros, até a freada do S do Senna, era mais elevada que a de Michael Schumacher, daí a manobra arriscada. Precisaria sair encostado ao câmbio da Benetton para tentar a manobra de ultrapassagem na freada do S do Senna. Não deu certo. 
 
Oito corridas mais tarde, explodiria um episódio que acabou por justificar a sua perda da liderança na corrida de Interlagos. A Benetton do companheiro de Michael Schumacher, o holandês Jos Verstappen, parou para o seu primeiro pit stop no GP da Alemanha, na 15.ª volta, e de repente viu-se envolvido pelas chamas de 60 litros de gasolina que queimavam. 
 
A válvula de fechamento da mangueira de alta pressão usada pela equipe manteve-se aberta, espalhando combustível para todo o lado. Ao encostar nos canos de escape, cujos gases fluem a cerca de 700 graus Celsius, a Benetton se transformou numa bola de fogo.
 
Benetton de Jos Verstappen pega fogo no GP da Alemanha de 1994 - Reuters - Reuters
Benetton de Jos Verstappen pega fogo no GP da Alemanha de 1994
Imagem: Reuters
 
Pegos na falcatrua
 
O que foi apurado pela investigação da FIA surpreendeu: os técnicos da Benetton haviam retirado um filtro do sistema de reabastecimento, a fim de aumentar a velocidade de fluxo da gasolina e tornar os pit stops mais rápidos. Burlaram a regra, portanto. Uma impureza, que seria facilmente retida pelo filtro, manteve a válvula aberta, jorrando a gasolina para fora. 
 
Estava explicada aquela "eficiência" dos mecânicos da Benetton no GP do Brasil, para que Michael Schumacher saísse à frente de Senna no pit stop conjunto na volta 21. O equipamento para reabastecer na Fórmula 1 era produzido por uma empresa francesa, Intertechnique, e todas as escuderias deveriam usá-lo, sempre sob regras rígidas determinadas pela FIA, sem alterá-lo.
 
Essa perda do primeiro lugar da corrida do Brasil, nos boxes, foi a causa básica do erro de Senna na Junção, já que ele queria de todas as formas a vitória diante da sua torcida. Ao longo daquele campeonato, também cresceram muito as suspeitas de que a Benetton utilizava um tão complexo quanto enrustido sistema de controle de tração.
 
Esse recurso justificaria em boa parte o excepcional desempenho do modelo B194, dotado com um motor V-8, capaz de desenvolver cerca de 70 cavalos a menos que o V-10 Renault da Williams. Só a competência de Michael Schumacher como piloto, inegável, não era suficiente para explicar suas seis vitórias e uma segunda colocação seguidas no começo do ano.
 
Veremos que a frustração de Senna e de milhões de torcedores se elevaria ainda mais na etapa seguinte do Mundial, o GP do Pacífico, no circuito TI, em Aida, no Japão, disputado três semanas depois do GP do Brasil. Com o gostinho amargo de não ter somado nenhum ponto na sua estreia na equipe do "carro do outro planeta", em Interlagos, Senna encarava a vitória na corrida de Aida como uma obrigação.
 
Senna resignado
 
Já sem esconder muito sua preocupação com o modelo FW16 da Williams, Senna disparou: "Todo mundo imaginava que a Williams iria arrebentar de novo, ganhando tudo, mas essa não era a minha opinião". 
 
As suas 65 poles, ao longo dos 161 GPs disputados, fazem de Senna, para muita gente, como eu, o maior velocista de todos os tempos na F1. Essa sua capacidade de tirar tudo e mais um pouco do carro, em uma única volta lançada, assumindo riscos que poucos ousariam, deram a ele a pole no GP do Pacífico, como já ocorrera no Brasil.
 
Na etapa de São Paulo, a Benetton de Michael Schumacher tinha, possivelmente, o controle de tração. Além disso, o equipamento de reabastecer do seu time, sem o filtro de gasolina, contribuiu, também (e pode, inclusive, ter sido determinante), para o resultado final da corrida.
 
Quanto aos recursos eletrônicos escusos da Benetton, há na F1 a certeza da sua existência, ainda que ninguém conseguisse provar. Com os métodos adotados hoje pela FIA, não haveria escapatória para a organização dirigida por Flavio Briatore. A Benetton seria punida. Isso não tira os méritos da sua evolução como equipe e do supertalento de Michael Schumacher.
 
Costuma-se dizer nos acidentes aéreos que a queda de uma aeronave decorre da combinação de vários fatores. Uma pane de motor na decolagem, por exemplo, não deve gerar um acidente, uma vez que o projeto prevê essa situação e a tripulação é treinada para agir conforme a recomendação do fabricante. 
 
É preciso, segundo os especialistas, mais de uma causa primária para ocorrer o acidente, como por exemplo, a não observação correta dos procedimentos a serem tomados, por parte do piloto, em situações de pane. Ou, ainda, uma pane seguida de outra, o que é muito raro, anulando os recursos de defesa do avião contra a condição difícil em que se encontra no ar.
 
Ayrton Senna, em 1994 - Arquivo Folha - Arquivo Folha
Ayrton Senna, em 1994
Imagem: Arquivo Folha
 
Sucessão de eventos desfavoráveis
 
A morte de Senna segue o mesmo modelo. Veja só o que aconteceu no GP do Pacífico. Sem que ninguém até hoje compreendesse bem o porquê, o diretor de prova, o despreparado belga Roland Bruynseraede, impôs que, na volta de apresentação, os carros seguissem o safety car. Não chovia.
 
Senna qualificou a decisão de "absurda". Normalmente, o piloto que larga na pole dita o ritmo da volta de apresentação. Os seus interesses são os mesmos dos que estão atrás dele, e por esse motivo, nessa hora, exige dos freios, para aquecê-los, procura também elevar a temperatura dos pneus, tudo sob velocidade compatível com as exigências de um monoposto de F1.
 
Naquele dia, 17 de abril de 1994, o safety car liderou o pelotão dos 26 que iriam largar na segunda etapa do Mundial a uma velocidade muito reduzida. Resultado: quando os carros alinharam para a largada, nada estava de acordo com as necessidades desses veículos, em especial a temperatura dos freios e dos pneus. Senna e Schumacher dividiam a primeira fila, a exemplo do GP do Brasil.
 
Pouco mais de 200 metros depois da largada, em que Michael Schumacher, por conta do possível controle de tração pulara à frente de Senna, o finlandês Mika Hakkinen freou e nada de sua McLaren MP4/9-Peugeot parar como deveria em condições normais. Foi a traseira da Williams de Senna que o segurou. 
 
Hakkinen bateu no carro de Senna, lançando-o para a caixa de brita. Nicola Larini, que estava substituindo Jean Alesi, que quebrara uma vértebra cervical num acidente em Mugello, completou o serviço de colocar Senna para fora da prova ao bater na sua Williams em plena brita. O italiano também ficou de fora do GP. 
 
Williams ficou muito para trás
 
Sem adversários, Michael Schumacher passeou na pista e impôs quase uma volta de vantagem para o segundo colocado, Gerard Berger, com a Ferrari 412T1. Em resumo: Senna tinha agora nenhum ponto, contra 20 de Michael Schumacher. Mais: enquanto a Benetton, apesar das possíveis irregularidades no carro, havia de fato evoluído bastante de uma temporada para a outra, a Williams tomara rumo oposto.
 
Parte da torcida não enxergava os imensos problemas de Senna com o carro e não levava em conta o segundo desgaste do piloto pelo experimentado na largada em Aida. O que importava era que Senna estava finalmente na Williams, seu tão sonhado time, e não vencera nenhuma vez diante de duas vitórias de Michael Schumacher, àquela altura, com o abandono de Alain Prost da F1, no fim do campeonato anterior, o maior rival do brasileiro.
 
A cabeça de Senna estava pegando fogo. A pressão em cima da equipe Williams também começava a aumentar assustadoramente. Tudo o que Frank Williams desejara da Renault e dos patrocinadores da sua equipe, em especial a Rothmans, havia obtido. 
 
Senna custava muito caro para a época, algo em torno de US$ 18 milhões por temporada. Na pista, contudo, a organização de Frank Williams não estava correspondendo. O GP de San Marino, em Ímola, apenas 15 dias mais tarde, seria a grande oportunidade para que todos esquecessem os pesadelos dos GPs do Brasil e do Pacífico. Desta vez, não poderia existir falhas. De ninguém.
 
Esse é o Capítulo 3 da série "O que você ainda não sabe sobre a morte de Senna, 20 anos depois", de Livio Oricchio. Navegue, também, pelas outras histórias:

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