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Capítulo 6: Na véspera da morte, gravação de Adriane Galisteu abala Senna

De Lívio Oricchio, em São Paulo

28/04/2014 16h54

Talvez o momento mais marcante para mim, envolvendo Senna naquele dia 30 de abril de 1994, sábado do GP de San Marino, foi quando o vi abraçado, apoiado no ombro do doutor Sid Watkins, do lado de fora do centro médico do circuito Enzo e Dino Ferrari, em Ímola. Era mais ou menos 13h50.

Naquele instante, o médico da F1 (e seu amigo pessoal) informou a Senna e a Charlie Moody, chefe da equipe Simtek, por onde corria o austríaco Roland Ratzenberger, que não havia nada o que se pudesse fazer pelo piloto. Ele estava morto.

A F1 estava desacostumada a recolher seus mortos. Para aquela geração que competia na pista, a morte representava algo possível, lógico, mas muito distante. O último piloto a morrer em um GP havia sido o italiano Ricardo Paletti, da Osella, na largada do GP do Canadá de 1982, em Montreal.

Outro italiano, Elio De Angelis, perdera também a vida na F1, em 1986, durante testes particulares da Brabham em Paul Ricard, na França. Senna, Michael Schumacher, Mika Hakkinen, Damon Hill, por exemplo, nunca haviam convivido com a dura realidade da morte nos autódromos.

Senna chorara já no dia anterior, naquele mesmo local, um dos mais frequentados naquele fim de semana, o centro médico da pista de Ímola, quando Rubens Barrichello também sofrera grave acidente. Agora, de novo, ele estava lá. Desta vez, para algo bem pior, a perda de um colega de profissão.

Deu para perceber, de onde estávamos, a uns 20 metros do local, que Senna queria a todo custo entrar no mini hospital e não era autorizado a fazê-lo. Estava supertenso, em razão de ter desembarcado de um carro da organização da prova, segundos antes, proveniente da curva Villeneuve, onde Ratzenberger se acidentara. Quis ir até lá ver.

O pequeno tumulto que se formou na porta do centro médico chamou a atenção de Watkins, que, lá dentro, junto com o doutor Baccarini, tentava, em vão, ressuscitar o piloto austríaco. Neurocirurgião, ele já tinha o diagnóstico irreversível e deixou o mini hospital para conversar com Senna.

Choro convulsivo

Mais tarde, ele nos diria que Senna chorara convulsivamente no seu ombro. "Éramos amigos, pescávamos juntos, ficávamos nas casas das respectivas famílias".

O mais incrível foi o que se passou a seguir: o belga Roland Bruynseraede, delegado de segurança da F1 e diretor de prova, mandou chamar Senna na torre de controle para lhe pedir explicações sobre o seu comportamento de solicitar  um carro oficial do GP para ir até o local do acidente de Ratzenberger. Não era sua atribuição. O respeito a hierarquia na FIA é algo que não se discute. Não há margem para nenhum diálogo. Era e é assim.

Não pude ouvir Senna a respeito. Naquele dia, ele não atendeu mais ninguém. Permaneceu fechado no motorhome da Williams e não retornou à pista, apesar do treino ter prosseguido depois de o helicóptero ter decolado, levando o austríaco para o Hospital Maggiore de Bolonha. Havia outro helicóptero no autódromo.

Soube que Bruynseraede lhe pediu satisfações. Senna sabia que a FIA não brinca e é dura nessas questões de manter a autoridade, apesar da situação absurda no caso. No fim de 1989 e início de 1990, se o brasileiro não se retratasse publicamente das acusações ao então presidente da Fisa, Jean-Marie Ballestre, de favorecer Alain Prost na decisão do último Mundial, no GP do Japão, em 1989, não receberia sua superlicença para disputar a temporada.

Senna, segundo a assessoria da Williams, teria respondido a Bruynserae que, como piloto, interessava-se por compreender o que ocorreu na curva Villeneuve com Ratzenberger, daí dirigir-se até lá. Bruynseraede é um belga que trabalhava no autódromo de Zolder já na época em que Gilles Villeneuve morreu, em 1982, dirigindo provas locais. Começou a trabalhar para a FIA e, sem que ninguém soubesse ao certo como, atingiu o importante cargo de diretor de prova, além de delegado de segurança da F1. Eu o conheço bem. No último GP da Bélgica, em Spa-Francorchamps, por exemplo, conversamos.

É sempre bastante simpático e dei muitas voltas de carro nos circuitos da F1 ao seu lado, com ele explicando-me muito dos trabalhos realizados nas pistas. Esta é uma das áreas que mais me interessa nessas competições. Mas devo confessar: é um homem sem formação técnica, acadêmica. Aprendeu na prática e, não raro, sua falta de domínio de conceitos básicos de física, química e matemática ficavam evidentes. Suas orientações eram puramente empíricas.

Amadorismo na FIA

Lembro-me do GP da Hungria daquela mesma temporada, 1994. Era quinta-feira, início da tarde, eu acabara de chegar ao autódromo. Conversava rapidamente com um pequeno grupo de jornalistas quando Bruynseraede se aproximou.

Nós o cumprimentamos e, em seguida, sem que esperássemos, perguntou: "Vocês também acham que eu fiz mal em deixar a corrida seguir adiante na Alemanha?" Cerca de uma semana antes, estávamos em Hockenheim e, ainda na primeira volta da prova, nada menos que dez carros, dos 26 que largaram, envolveram-se num acidente.

Havia pedaços de carros para todo lado. Por sorte, ninguém se feriu. Bruynseraede foi bastante criticado por todos por não optar pela bandeira vermelha, interrompendo a corrida para depois haver nova largada. Quase em coro, respondemos a ele que de fato fora um erro grave não paralisar a competição.

Eu jamais imaginava presenciar reação de tamanha insegurança de um delegado de segurança da F1. Não esquecerei jamais sua argumentação frágil, despreparada, exposta a seguir para justificar a decisão de manter a corrida com bandeira amarela. Mais: ele nos procurou espontaneamente, o que bem demonstra suas incertezas.

Era nas mãos de indivíduos bem intencionados, como ele, mas mal preparados, que a F1 estava naquela época. Charlie Whiting, um ex-mecânico inglês da equipe Brabham quando Bernie Ecclestone era o seu proprietário, o substituiria no campeonato seguinte. Whiting mantem-se na função até hoje. Seu trabalho é muito mais respeitado por todos.

Senna não voltou para a pista, assim como Michael Schumacher, depois da interrupção da segunda tomada de tempos, ocorrida aos 19 minutos de treino, por causa do acidente de Ratzenberger. Por mais que Gerhard Berger, da Ferrari, tentasse, não melhorou as marcas de Senna e Michael Schumacher, registradas no dia anterior. Fiquei impressionado com a frieza de Berger, já que Ratzenberger era austríaco como ele. O piloto da Ferrari não se deixou atingir pela perda do amigo. Sentou no carro e acelerou tudo para ficar em terceiro no grid.

Falta de sensibilidade

Eu me viria também impressionado com Jean Alesi, companheiro de Gerhard Berger na Ferrari. No dia seguinte à morte de Senna, segunda-feira, enquanto seu corpo estava no Instituto Médico Legal de Bolonha, aguardando a liberação para ser transportado para o Brasil, o francês treinava a 60 quilômetros dali, em Fiorano.

Alesi foi testemunha ocular do acidente de Ratzenberger. Entre o GP do Brasil e o do Pacífico, ele sofreu um gravíssimo acidente em Mugello, enquanto treinava com sua Ferrari 412T1, e teve fratura de uma vértebra cervical. Por muito pouco não ficou paralítico. Aquele era o seu primeiro treino depois do período de convalescença.

No sábado do GP de San Marino, Alesi estava no meio da torcida. Ele ocupava um lugar na arquibancada da curva Tosa, onde parou a Simtek de Ratzenberger depois do impacto da curva Villeneuve, a cerca de 300 km/h, o ponto de maior velocidade do circuito.

Testemunha ocular

"Vi tudo com clareza", disse Alesi. "Ratzenberger perdeu uma parte do aerofólio dianteiro antes da Villeneuve e ficou sem pressão aerodinâmica na frente. Quando ele iniciou o contorno da curva, seu carro seguiu reto, colidindo em um ângulo aproximado de 45 graus no muro, praticamente sem reduzir a velocidade em que saiu da pista. Deve ter morrido na hora". O austríaco teve fraturas múltiplas das vértebras cervicais, causadas pela súbita desaceleração do choque, além de dilaceramento visceral, motivado pela mesma razão.

Ninguém conseguiu falar com Senna no restante daquele dia. Alegando falta de condições emocionais, ele não só não falou com ninguém, como se recusou a treinar. Frank Williams o apoiou. O período de tensão da sua vida pessoal e as dificuldades do seu momento na F1 transformaram Senna em um cidadão distante de tudo. Nos poucos minutos que pudemos vê-lo naquele sábado, ele parecia longe, abatido, triste, reflexivo. Não creio que questionasse a validade do que fazia. Senna amava pilotar e deixava isso claro.

Nesse dia, outro fator serviu também para lançar Senna no caos emocional total. Leonardo, seu irmão, ouvimos do paddock, havia trazido consigo do Brasil gravações telefônicas comprometedoras de sua namorada, Adriane Galisteu. Pense só na falta de bom senso do irmão se de fato era verdade essa história, como pareceu ser diante do que ouvimos de pessoas próximas ao piloto.

(Nota da redação: no livro "Senna - O Herói Revelado", de Ernesto Rodrigues, é reproduzida uma conversa do piloto com a namorada no sábado antes da corrida em Ímola. Adriane estava na casa que dividia com Senna, em Portugal, e teria ouvido do piloto que iria "convencê-la de que sou, disparado, o melhor homem de sua vida". Essa conversa teria sido originada pela gravação citada por Oricchio e mostrada a Senna pelo irmão, Leonardo. Segundo livro de Rodrigues, a fita mostra uma conversa de Adriana com um antigo namorado, que diz ser "melhor de cama do que Ayrton".)

 O dia 30 de abril de 1994 de Senna no circuito Enzo e Dino Ferrari não terminou com a sua saída do autódromo, no fim da tarde, já com a 65ª pole position da carreira, a última. As horas que se seguiram no hotel em que estava hospedado, na pequena cidade medieval de Doza, foram terríveis. Era muita coisa para administrar interiormente. Lutava contra os seus demônios.

Não bastasse as questões profissionais da F1, tensas ao extremo, com sua necessidade de resultados e, principalmente, a morte do colega, Senna estava investindo pesado nos negócios particulares. Para complicar, e muito, tudo, havia a história das fitas entregues pelo irmão. Quando Adriane aparecia na F1, ele não escondia seu amor. Deve ter sido um baque ainda mais desestabilizador saber das fitas, ainda que precisasse averiguar a veracidade dos fatos.

Esse é o Capítulo 6 da série "O que você ainda não sabe sobre a morte de Senna, 20 anos depois", de Livio Oricchio. Navegue, também, pelas outras histórias:

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