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Fórmula 1

Capítulo 7: 1º de maio de 1994, o pior dia na carreira de um jornalista

Lívio Oricchio

Do UOL, em São Paulo

28/04/2014 16h55

O domingo amanheceu ensolarado, apesar de não fazer calor. Desde 1992 instalo-me numa pequena cidade chamada Riolo Terme. De lá até Ímola, onde acha-se o circuito Enzo e Dino Ferrari, cruzamos as montanhas dos Apeninos, em cujas colinas são cultivadas as uvas que dão origem ao vinho San Giovese, típico da região. Há plantações também de "plune", que são aquelas cerejas vermelhas, grandes, e kiwi.

Logo na saída do Albergo Serena, onde eu ficava, está o acesso a essa bucólica e sinuosa estradinha. Quando acaba, 11 quilômetros adiante, já se encontra a curva Rivazza do circuito. Depois, é só contornar uma quadra e entrar no autódromo. O difícil é dirigir em meio à multidão que se aglutina para acessar o circuito. Não havia uma divisória que nos separasse dos pedestres. O tempo perdido era enorme.

Confesso que estava bastante sensibilizado com tudo o que ocorrera naquele fim de semana. Primeiro, o acidente do Rubens Barrichello, na sexta-feira. Depois, a morte de Roland Ratzenberger, no sábado. Tinha a certeza de que a proibição de quase todos os recursos eletrônicos, naquele ano, sem diminuir a potência dos carros, os deixara perigosos, como afirmara Barnard.

Não é tudo. Na etapa anterior, em Aida, no Japão, na quarta-feira eu estava no autódromo japonês quando vi um carro de passeio prestes a deixar a área dos boxes. Como sempre faço em todas as pistas, desejava conhecer o traçado de dentro de um veículo. Eu me aproximei daquele carro e vi que era Nick Wirth, o diretor técnico da Simtek.

Perguntei se havia carona naquela volta pelos 3.703 metros da pista e ele acenou para entrar no carro. Havia outra pessoa com Wirth: Roland Ratzenberger. O austríaco havia disputado mais de uma temporada no automobilismo japonês, com carros esporte-protótipos, e já havia corrido em Aida.

Recepção cordial

Com grande simpatia, me colocou na conversa com Wirth como se me conhecesse. Os dois falavam sobre como acertar o carro da Simtek para o circuito. Depois de completar algumas voltas, Wirth e Ratzenberger pararam o carro no paddock e, por outros 15 ou 20 minutos, seguimos conversando. Entre os temas estava Senna. O austríaco se impressionara com a forma como o viam no Brasil, um deus, não um semideus.

Pois bem, aquela pessoa afável, cortês, estava agora morta. Aquilo gerou um impacto em mim. Meu primeiro GP como jornalista fora o do Brasil de 1987 e, desde então, ninguém havia morrido na F1. Era uma novidade. E o piloto não era mais um desconhecido para mim.

A iminência de novos acidentes ficara nítida. Jamais pensei, contudo, que Senna pudesse estar envolvido em um deles. Isso não passava pela minha cabeça. Cheguei no autódromo pouco antes do warm up, próximo das 9h. Sabia, desde o dia anterior, que Niki Lauda estava programando uma reunião com os pilotos para discutir a segurança na F1.

Lauda trabalhava como conselheiro da Ferrari e assessor especial do presidente da empresa, Luca di Montezemolo. Os dois são amigos desde que Luca era diretor esportivo do time, em 1975, e o austríaco ganhou o primeiro dos dois campeonatos com a equipe italiana. O outro foi em 1977.

Lauda disse a um grupo de jornalistas em que eu estava presente: "Acho que apenas Senna pode liderar um movimento desses. Só ele tem autoridade para falar, ser ouvido e respeitado”. Senna foi para a pista no warm up. Não disputou a classificação do sábado. O acidente com Roland Ratzenberger ocorreu no início do treino e ele, profundamente perturbado com tudo que o cercava, não tentou melhorar o tempo de sexta-feira. Mesmo assim, acabou com a pole position.

O pior GP da minha carreira

Eu estava tenso. Na mesma intensidade em que fiquei em Mônaco, na corrida seguinte, depois que, já na primeira sessão livre de quinta-feira, Karl Wendlinger, da Sauber, bateu forte da saída do túnel e entrou em coma.

Nunca imaginei que passaria por algo semelhante. Expôs uma fraqueza que não imaginava existir em mim. Não podia ouvir o barulho daqueles carros. Achava que outros iriam morrer. Afinal, na sexta-feira, em Ímola, Rubinho quase se mata e, no sábado, Ratzenberger morreu.

No domingo, foi a vez de Senna. E já no primeiro treino da corrida seguinte, em Mônaco, mais um piloto era dado como morto. Quer dizer: que esporte é esse? Ganha quem sobrevive? A Roma antiga dos gladiadores, embora fisicamente perto dali, estava 2000 anos no passado.

Voltemos ao domingo em Ímola. Vi Lauda conversar com Senna, em pleno paddock do circuito Enzo e Dino Ferrari, a respeito do seu plano de talvez recriar a Grand Prix Drivers Association (GPDA), entidade criada e dirigida pelos pilotos a fim de defender os seus interesses, em especial os relativos à segurança.

Com o abandono das pistas de Jackie Stewart, em 1973, seu principal líder, a GPDA acabou deixando de existir. Agora, 20 anos mais tarde, era hora de retomá-la. "Combinamos que, na quarta-feira, iremos nos encontrar", revelou Niki Lauda, sobre a conversa com Senna.

Contou mais: "Discutiremos não só a revisão do regulamento técnico, mas, principalmente, a segurança das pistas. Alguns muros têm de ficar mais distantes do asfalto. Reconheço que nem sempre é possível, como no caso aqui de Ímola, em que o muro da Villeneuve (onde se acidentou Ratzenberger) está no limite do terreno do autódromo, a saída então é mexer nos traçados", disse o austríaco.

Michael Schumacher, o líder do Mundial, com duas vitórias, no Brasil e no GP do Pacífico, no Japão, também estaria presente no encontro, segundo Lauda.

Enclausurado na equipe

Senna não conversou com nenhum jornalista, ao menos que eu saiba. Evitou a imprensa visivelmente. Tinha a expressão fechada, mas um pouco melhor que a de sábado à tarde. Nos raros momentos de aparição pública, era assim que o via. Ele ficou a maior parte do tempo daquela manhã dentro do motorhome da Williams, reunido com Adrian Newey e seu engenheiro de pista, o inglês David Brown. Já que não dava para não disputar a corrida, como ele chegou a pensar, por tudo o que o atormentava, o jeito, então, era fazer da melhor forma possível.

Uma nova vitória de Michael Schumacher deixaria a situação insustentável. O alemão já tinha 20 pontos e ele, nenhum. O doutor Sid Watkins, médico da F1, chegou a orientar Senna, sábado à noite, para que não corresse. "Alguém tão fora de si como ele, homem tão sensível, com boas razões para isso, não poderia submeter-se às exigências de uma corrida de F1", revelou Sid Watkins anos depois.

Eu vi Senna pela última vez quando ele se dirigia do motorhome da Williams para o box da equipe, cerca de 40 minutos antes da largada. De novo, trazia a tensão do fim de semana e da sua vida pessoal. Normalmente, eu caminho pelo grid naquela meia hora em que os pilotos estacionam seus carros na posição em que irão largar.

Naquele dia, fui direto para a sala de imprensa, àquela época a mais apertada da F1, ao lado da existente no circuito Gilles Villeneuve, em Montreal. Minha posição na sala era próxima da parede de vidro em que se podia ver a passagem dos carros. Eu os via desde a saída da chicane que antecede a linha de chegada até pouco antes do local onde Senna perdeu o controle do carro, na Tamburello.

A maior parte do tempo, contudo, acompanhamos a prova pelas imagens de TV. Dispomos de mais ângulos que o selecionado para chegar à casa de quem assiste à corrida pela TV. Eu estava tenso. Até hoje, nas largadas não me sinto muito à vontade. É o instante de maior risco de acidente na F1.

Mesmo sabendo que os pilotos são homens fazendo o que desejam e têm consciência dos riscos, confesso que temo muitas vezes por uma pancada violenta, em especial com aqueles com quem me relaciono bem profissionalmente – sem desmerecer os outros, por favor.

Histórico preocupante

No caso do GP de San Marino, havia o agravante do histórico daquele ano. Primeiro, o finlandês Jirki Jarvilehto, da Benetton, em janeiro, se acidentou na curva Stowe, em Silverstone, e teve fratura de vértebra cervical. Não correu as duas primeiras etapas do Mundial e estava de volta naquela prova.

Depois, foi a vez de ocorrer o mesmo com Jean Alesi, da Ferrari, em Mugello. Nicola Larini o estava substituindo em Ímola. Além de Rubinho, que se arrebentara na sexta, e Ratzenberger, que morrera no sábado. O que não aconteceria, então, nas 58 voltas do GP de San Marino, cujo circuito tinha pontos de altíssima velocidade, em curva, como a Villeneuve e a Tamburello?

Esse é o Capítulo 7 da série "O que você ainda não sabe sobre a morte de Senna, 20 anos depois", de Livio Oricchio. Navegue, também, pelas outras histórias:

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