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Fórmula 1

Capítulo final: como foi voltar ao Brasil ao lado do caixão de Senna

Livio Oricchio

Do UOL, em São Paulo

28/04/2014 16h59

Escrevi um texto ainda da sala de imprensa do autódromo e, por volta da meia noite, fui para o meu hotel, o Albergo Serena, em Riolo Terme, não muito distante do circuito, do meu amigo Angelo.

Não me sentia cansado fisicamente, apesar da tensão e das exigências do dia. Mas, se tivesse alguém com quem conversar, certamente me faria muito bem. No hotel, como de hábito, depois das 22 horas não fica ninguém. Você tem a chave da porta de entrada e do seu apartamento. Aquele silêncio profundo da noite, numa área com campos ao redor, compunham um cenário diferente do que gostaria de ter.

Tomei um banho bem quente, longo, e, em seguida, organizei minha mala. Deixei tudo pronto. Como não havia comido nada desde antes da largada do GP, às 13 horas, senti um pouco de fome. Fui à cozinha do hotel e encontrei pão e queijo. Tomei leite frio. Estava satisfeito. Em seguida, li todo o material que enviei para o jornal para, em seguida, telefonar para a redação e pedir para inserir no texto algumas passagens que acabei não contando no primeiro momento, na pressa de escrever e ir depois para o autódromo.

Já eram quatro horas da manhã. Comecei a ler um livro que estava comigo e compreendi que não iria conseguir dormir. Lá pelas cinco, coloquei minha bagagem no carro, deixei o dinheiro do pagamento do hotel num envelope na recepção, escrevi um texto ao Angelo e fui para o autódromo. Era noite, ainda.

Dirigi bem devagar, queria chegar no circuito já com luz do dia. O céu estava clareando quando cruzei o portão de entrada, aberto, sem um cidadão por lá. Eram 6 da manhã. Fui entrando com o meu carro, passei pelo paddock, pelo centro médico e vi a entrada da pista livre, sem obstáculos. Repito: não cruzei com um único cidadão.

Obviamente aproveitei para, devagar, ir até a curva Tamburello, local do acidente. Eu me senti afetado emocionalmente. Parei o carro metros antes de onde Senna perdeu o controle da Williams. Saí do meu carro. Aquilo me atingiu. O circuito tinha o seu leito de asfalto, cerca de uns 2 metros de grama e outros 15 metros de cimento branco antes do muro.

Constatei, com absoluta clareza, a marca dos pneus da Williams no chão. Sobre o cimento branco, a trilha formada pelos pneus arrastando-se era absolutamente nítida. Até mesmo o ângulo de impacto no muro podia ser calculado com razoável precisão. Era elevado, algo entre 35 e 40 graus, o que justificou o carro perder velocidade em tão pouco espaço.

Dados da perícia não conferem

Espantou-me o relatório da perícia técnica, algum tempo depois, afirmar que a Williams bateu num ângulo de aproximadamente 17 graus. Ora, se fosse assim, iria desacelerando aos poucos, quase que correndo junto ao muro, até perder velocidade. Quem sou eu para afrontar o Instituto de Aeronáutica de Bolonha, responsável pela perícia? Mas a conclusão não bate com o que vi no autódromo, menos de 24 horas depois do acidente.

A coluna de direção se rompeu

Técnicos concluíram que a coluna de direção da Williams se rompeu quando Senna iniciava a curva Tamburello. Assim, as rodas não respondiam mais ao volante e o carro seguiu reto, sem contornar a curva. A coluna conecta o volante à caixa de direção, localizada na frente do carro. Desta, saem duas barras de direção que se conectam com a manga de eixo, nas rodas.

Negligência técnica

Ao abaixar a coluna de direção para dar mais espaço para Senna pilotar, sem bater as mãos nas paredes do cockpit, a Williams mudou a largura do cano da coluna. Uma parte tinha o diâmetro original e outra, um menor. A ruptura da coluna se deu no ponto de solda dos dois canos de diferente diâmetro. A justiça italiana julgou o projetista, Adrian Newey, e o diretor técnico, Patrick Head, por imprudência de engenharia. Mas foram absolvidos.

Enquanto eu procurava entender o que tinha acontecido na curva Tamburello, chegou um carro dos Carabinieri e outro da Sagis, empresa que administrava o autódromo. Veja só o que aconteceu: de dentro do automóvel da Sagis desceu um cidadão enorme, bem alto, e sem falar nada se aproximou de mim e me deu um empurrão tão violento que cai no chão.

Não tenho histórico de brigar, mas minha primeira reação foi voar no pescoço dele. Foram os Carabinieri que, também sem entender a reação do indivíduo, interromperam o que seria uma luta estúpida, provavelmente com consequências mais sérias para mim, com meu 1,75 metro. Os policiais estavam supercalmos e até conversamos depois. Homens bem preparados para a função, de muito bom nível.

Medo da justiça

O italiano valentão ainda me insultava, apenas por estar naquele local. Ao lado dos policiais, lhe disse: Você está com medo de ter problemas com a justiça por causa da falta de segurança do seu autódromo? Duas mortes no mesmo fim de semana podem mesmo comprometer muita gente.

A situação se acalmou na sequência e os policiais começaram a isolar o local com aquela fita amarela utilizada nos acidentes. Nesse momento chegou o chefe de produção da Globo, Jayme Britto. Os Carabinieri nos pediram para voltar ao paddock. Foi o que fizemos.

O destino, agora, era bem triste: o Instituto Médico Legal de Bolonha, onde estava o corpo de Senna. Tomei consciência de que o piloto que eu admirava estava morto. Emocionei-me enquanto percorria os 50 quilômetros que separam Ímola de Bolonha. Ah, passei no hotel e peguei a jornalista alemã Karin, minha amiga, para irmos juntos.

Foi a primeira vez que meus olhos se encheram de lágrimas. Enquanto dirigia para o IML de Bolonha. Estacionei o carro, algo sempre muito desgastante nas cidades europeias, e, ao me aproximar do IML, encontrei centenas de pessoas na porta. Ninguém podia entrar. Havia um portão de ferro entre a avenida e uma espécie de pequeno estacionamento aberto, dentro do edifício.

Santuário improvisado

Transformaram o portão de ferro, de uns 5 metros de largura, em um santuário. Havia já dezenas de conjuntos de flores, mensagens, fotos, bandeiras. Vindos de todos os cantos e das mais diferentes origens, como fãs, empresas, consulados etc. Muitas velas acesas, também. Conheci uma senhora que viajou de trem da sua cidade, distante mais de duas horas de Bolonha, só para estar na porta do IML quando o corpo de Senna saísse. “Queria prestar minha homenagem a ele. Quero aplaudi-lo quando por aqui passar”, disse.

Para liberar o corpo de Senna a fim de transportá-lo ao Brasil, o cônsul brasileiro em Milão e Celso Lemos, diretor da Senna Promoções e depois do Instituto Ayrton Senna, precisaram de mais um dia. Aquela senhora voltou para sua casa na segunda-feira. No dia seguinte, estava de volta. Ela conseguiu: no fim da tarde da terça-feira, o IML liberou o corpo.

Enquanto o veículo que o transportava se dirigia ao aeroporto de Bolonha, as pessoas iam aplaudindo sua passagem. Eu queria voltar para o Brasil no mesmo avião. Por isso, corri para o meu carro e fui para o aeroporto também. Lembre-se: mantive minha bagagem sempre comigo.

Um avião DC-9 da Força Aérea Italiana levou o corpo de Senna de Bolonha para Paris, a fim de ser embarcado no voo da Varig para São Paulo. Consegui pegar um voo da Itália para Paris. Enquanto voava, planejava escrever os meus textos. Naquela época, não se podia usar o laptop a bordo. A comissária me ameaçou seriamente se continuasse escrevendo. Fechei o laptop e segui redigindo a mão no bloco de reportagem.

Os textos descreviam como foi o dia de espera da liberação do corpo em frente ao IML, com centenas de fãs e as novas oferendas ao santuário no portão do instituto, com as mais distintas manifestações de carinho ao piloto. Ouvi vários personagens. A devoção ao ídolo era impressionante.

Regressar no mesmo voo de Senna

Para conseguir embarcar no voo da Varig de Paris para São Paulo, tudo teria de dar certo. O tempo de conexão era curto e eu chegava num terminal diferente de onde decolaria o voo para São Paulo. E a transferência exige bom tempo. Há um ônibus para isso. Mais: precisava reemitir minha passagem aérea, pois aquele não era o meu voo original de regresso ao Brasil.

E ainda tinha de encontrar um tempo para, de um telefone público, ler os textos que escrevi no voo de Bolonha a Paris. Uma hora e meia, aproximadamente.

Sai correndo quando a porta do avião abriu. Entrei no ônibus do Charles de Gaulle e não demorei para chegar no terminal 1, operado pela Varig. Ao me aproximar do check in, vi Celso Lemos e o comandante da Varig, Reginaldo Gomes Pinto, conversando. O comandante disse ao diretor da Senna Promoções que não havia como transportar o caixão de Senna no compartimento dos passageiros, como lhe estava sendo solicitado.

A única possibilidade de poder atender o pedido de Lemos era se o presidente da Varig enviasse um fax assumindo a responsabilidade pela decisão. Não demorou muito e um funcionário da Varig confirmou o recebimento do fax.

O caixão junto dos jornalistas

A aeronave era um MD11 que possui duas seções na classe executiva, separadas pela área de trabalho dos comissários. A mais à frente é menor. A outra, mais extensa, com um número maior de assentos. O pessoal da Varig tirou os assentos da área central da executiva na porção menor e lá colocou o caixão de Senna, com a bandeira do Brasil por cima.

Os jornalistas, na realidade, eram raros. Eu, Galvão Bueno,  Reginaldo Leme, Luis Roberto, hoje locutor da TV Globo, mas na época da rádio Globo, Candido Garcia, que já morreu, que me lembre. Estavam nessa pequena seção da executiva ainda Betise Assumpção, assessora do Senna, Celso Lemos e Josef Leberer, fisioterapeuta de Senna.

Decolamos em Paris e depois pousamos em São Paulo com as cortinas que separam as classes no avião fechadas. Raríssimos passageiros ficaram sabendo que ao seu lado estava o caixão de Senna.

Muitas histórias

Obviamente ninguém conseguiu dormir tendo ao lado o corpo de Senna. Alguns foram para a primeira classe. Durante boa parte do voo, formamos um grupo com conversas que se estenderam por horas. Galvão nos contou muitas histórias vividas com Senna. E a cada fim de história, emocionado, dava um tapa do caixão e dizia: “Olha como nós estamos levando ele de volta para casa agora. Acabou, acabou”.

Um dos pilotos veio até o nosso grupo e comunicou que as tripulações de outras aeronaves que sabiam que aquele era o voo em que estava o corpo de Senna enviavam mensagens simpáticas aos brasileiros, bem como as estações de terra. Um dos aviões emitiu sinais com o farol como forma de cumprimento ao nosso comandante.

Vimos um flash de câmara fotográfica. Celso Lemos correu atrás do fotógrafo e lhe pediu o filme. As câmeras digitais estavam engatinhando, ainda. Celso Lemos me procurou para pedir ajuda, pois o fotógrafo lhe disse que estava lá pelo Estadão. Fui conversar com ele, discretamente. Não sabia como agir, se atender o interesse da empresa que trabalhava ou do amigo Celso Lemos, bastante revoltado com a fotografia.

Deixei a critério do fotógrafo. Mas lhe disse que quando chegássemos em São Paulo ele provavelmente teria uma chance de melhor fotografar o caixão dentro do avião. E foi o que aconteceu. O jornal publicou no dia seguinte essa foto.

Passageiro reza sobre o caixão

Outro episódio durante o voo: um passageiro empurrou a cortina, viu o caixão e perguntou o que era aquilo. Nesse instante eu estava em outro ponto da aeronave, na primeira classe, e não vi a cena. Disseram-lhe que era o caixão de Senna. O passageiro era um senhor. Galvão contou-me que ele entrou, ajoelhou apoiado no caixão, rezou e depois, em silêncio e de cabeça baixa, regressou ao seu lugar na outra seção da executiva.

A roupa de Senna

Conversei com Celso Lemos. Eu me emocionei nessa hora. “Comprei para o Ayrton um lindo terno de cor cinza, claro. Uma camisa azul e uma gravata também. É assim que está vestido no caixão”. Falou depois das dificuldades burocráticas em liberar o corpo. Anos mais tarde, encontrei-me com Celso Lemos num evento e nos lembramos daquele triste voo.

Na noite anterior, eu não havia dormido. Cheguei ao hotel pouco depois da meia noite. Por volta das 5, saí com minha bagagem para o circuito Enzo e Dino Ferrari. E aquela noite, a bordo do voo Paris-São Paulo, era a segunda sem dormir. Obviamente, eu sentia o esforço. Mas o nível de vigília era tal, a necessidade de estar atento a tudo tão elevada, para depois redigir, que o estresse me abatia, é claro, mas não na extensão que se poderia supor. A adrenalina é capaz de fazê-lo enfrentar um leão.

Depois de 12 horas de voo, começamos o procedimento de pouso no aeroporto de Guarulhos. O sol começava a se apresentar naquela quarta-feira, dia 4 de maio. Da janela do MD11 da Varig, pude ver vários helicópteros sobrevoando o aeroporto.

No pouso, a homenagem do comandante

Como que numa reverência a quem foi Senna, o comandante Reginaldo Gomes Pinto tocou o solo da pista com extrema delicadeza. A baixa velocidade, nos aproximamos do terminal de passageiros. As cortinas daquela seção da executiva permaneciam fechadas. Todos os passageiros desceram pela porta traseira e não viram o que havia a bordo. Nós ficamos onde estávamos. Esperaríamos os bombeiros virem retirar o caixão.

Nesse instante, depois de todos os passageiros terem desembarcado, um casal entrou na aeronave, lá onde estávamos. Era Viviane Senna e seu marido. A cena foi de profunda emoção para eles. Era a primeira vez que viam Senna, mas agora morto e num caixão. A sua dor pôde ser sentida também por nós. Ficamos, todos, igualmente emocionados.

Pouco tempo depois, deixamos a aeronave. Ao sair da área reservada do aeroporto, empurrando o carrinho de bagagem, vi que um exército de jornalistas buscava notícias de todas as formas, de quem quer que saísse do voo da Varig procedente de Paris. Não vi, mas imagino que os passageiros todos não entendiam as perguntas dos repórteres por simplesmente não saberem que o caixão de Senna estava a bordo.

Alguns colegas me identificaram e fizeram várias perguntas.

Respondi, expliquei por alto como as coisas funcionaram, mas minha preocupação era chegar em casa, tomar um banho, comer algo. Além de não dormir, não havia me alimentado e, a essa altura, com o desgaste emocional também, eu comecei a acusar o golpe.

São Paulo parou para ver o herói

No caminho entre Guarulhos e o bairro de Moema, passei por avenidas que receberiam o caminhão de bombeiros com o corpo de Senna, previsto para ser velado no edifício da Assembleia Legislativa, no parque do Ibirapuera. Vi milhares de pessoas aguardando-o. A cidade se mobilizou para receber Senna. Não havia como não se sensibilizar com aquilo.

Dez anos mais tarde, entrevistei a mãe de Senna, a senhora Neyde, uma das conversas profissionais mais marcantes da minha vida. E ela me disse exatamente isso: “Sentia que meu filho era uma pessoa querida, mas não sabia que era tanto”.

Amigos de novo

Alain Prost embarcou em Paris para São Paulo em outro voo. Pouco antes de Senna morrer, os dois se reconciliaram do período de guerra vivido na McLaren, em 1988 e 1989. Entrevistei Prost em 1994, no sábado do GP da França, e o francês elogiou e criticou Senna.

“Eu iria parar de correr depois do GP da Austrália do ano passado (1993)”, disse Alain Prost. “Antes disso, procurei Ayrton para uma conversa. Ele me impressionou ao me ignorar. Não queria deixar a F1 sem ter uma longa e franca conversa com ele”.

O francês, quatro vezes campeão do mundo, me falou muitas outras coisas. “Acho que sou quem sou por causa do Ayrton, bem como ele por minha causa. Ganhamos um campeonato cada um com o mesmo carro. Eu o admiro como piloto. O que fazia nas voltas lançadas na classificação não era para mim. Assumia riscos realmente elevados”.

A mágoa vem da reação de Senna no pódio da prova de despedida de Alain Prost, em Adelaide, com Senna em primeiro e o francês da Williams em segundo. “Ayrton se recusou a me atender no paddock. E lá, no pódio, me puxou pelo braço para subir no primeiro lugar do pódio com ele. Fiquei louco da vida na hora. Ayrton queria que as pessoas acreditassem que ele tomou a iniciativa de nos reconciliarmos, enquanto na verdade fui eu que o procurei primeiro”.

Isso tudo apenas cinco meses antes da tragédia de Ímola.

“Depois do episódio de Adelaide passamos a nos falar com regularidade pelo telefone. Nos tornamos amigos. Discutíamos questões da F1 e pessoais. Por essa razão, voei para o Brasil para o seu funeral, porque eu era amigo de Senna. E o admirava”.

Escrever tudo o que vi

O motorista do jornal me levou do aeroporto de Guarulhos para casa, onde cheguei por volta das 9 horas. Tomei um superbanho, a empregada preparou o café e descansei até o meio dia. Levantei e fui rápido para a redação. Ao chegar, obviamente fui cercado pelos colegas que desejavam saber tudo.

O editor do Estadão e o do JT disseram, assim mesmo: “Livio, senta e começa a escrever, em primeira pessoa, tudo o que você viveu de ontem para hoje. E não se preocupe com o tamanho dos textos e o número de textos. Tudo será aproveitado com destaque. Depois, estudaremos mais reportagens, não só sobre o ocorrido entre Paris e São Paulo”.

No sábado, eu já embarquei de volta para Bolonha, a fim de acompanhar as investigações sobre o trágico GP de San Marino no autódromo Enzo e Dino Ferrari, onde, na próxima quinta-feira, 1º de maio de 2014, 20 anos depois, a prefeitura de Ímola organizou um superevento para lembrar a passagem de um ídolo da humanidade, Ayrton Senna da Silva.

Esse é o Capítulo Final da série "O que você ainda não sabe sobre a morte de Senna, 20 anos depois", de Livio Oricchio. Navegue, também, pelas outras histórias:

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