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Stewart aponta erros de segurança em acidente que quase o matou em 1966

Tricampeão mundial, Jackie Stewart falou sobre seu acidente - BORIS HORVAT / AFP
Tricampeão mundial, Jackie Stewart falou sobre seu acidente Imagem: BORIS HORVAT / AFP

Livio Oricchio

Do UOL, em Spa (Bélgica)

01/09/2014 13h29

Quando Nico Rosberg, o líder do Mundial, o seu companheiro de Mercedes, Lewis Hamilton, segundo colocado, e os demais 20 pilotos do grid largarem, domingo, para a disputa do GP da Itália, no circuito mais veloz do calendário, Monza, um exército de profissionais, das mais diferentes áreas, vai estar em estado máximo de vigília para lhes garantir a maior segurança possível.

Mas nem sempre foi assim na F1, como Jackie Stewart, três vezes campeão do mundo, contou com exclusividade ao UOL Esporte. Em 1966, também em outro traçado rápido e histórico, Spa-Francorchamps, na Bélgica, o escocês, piloto da BRM, sofreu um acidente grave. O mais sério da brilhante carreira de três títulos mundiais.

Hoje, 48 anos depois, Stewart ainda expressa apreensão com o ocorrido, poderia ter morrido, mas não deixa de revelar uma certa dose de humor ao descrever como foi o seu resgate do carro e o atendimento médico. A irresponsabilidade e o despreparo dos organizadores da prova geraram uma reação dos pilotos, liderados por Stewart, que fez com que, a partir daí, o tema segurança passasse ao menos a ser discutido.

O UOL Esporte aproveita, agora, para, ao lado da narrativa detalhada de Stewart sobre o seu acidente, confrontar a segurança existente em 1966 com a disponibilizada aos pilotos que correm hoje.

Junto de Stewart competiam, por exemplo, Graham Hill, também com BRM, Jim Clark, Lotus, John Surtees, Ferrari, Jack Brabham e Denis Hulme, Brabham, e Jochen Rindt, Cooper. Todos já eram ou viriam a ser campeões do mundo. "Era uma geração talentosa", diz o escocês.

O GP da Bélgica de 1966 foi a segunda etapa do campeonato, disputado dia 12 de junho. "Eu havia vencido a etapa de abertura, em Mônaco, liderava o Mundial, e aquele era meu segundo ano, apenas, na F1", lembrou Stewart. "Havia completado 27 anos um dia antes (no sábado)." 

Esse é um dado interessante também por a Toro Rosso-Renault ter anunciado, dia 18, a contratação do holandês Max Verstappen, de apenas 16 anos, para substituir o francês Jean Eric Vergne, em 2015. O conceito de piloto jovem mudou bastante nesses 48 anos entre uma e outra era. 

Stewart fala da prova de 1966: "Chovia realmente muito na hora da largada, como é normal em Spa. Corríamos ainda na pista antiga, bem mais longa que a atual". O traçado daquela edição tinha 14.080 metros, enquanto o utilizado agora mede 7.004 metros. 

A última edição do GP da Bélgica no circuito longo foi em 1970. A F1 voltaria a se apresentar em Spa apenas em 1983, já na configuração de traçado semelhante a de hoje.

Condições mínimas 

"Hoje há limite de volume de água na pista, de visibilidade para autorizarmos uma largada", diz Charlie Whiting, largador oficial da F1 e diretor de prova. "Dispomos do safety car, conduzido por um piloto profissional para ter uma referência da condição do asfalto", explica e lembra não haver nada disso na época. 

"E não apenas na F1", como lembra o vice de Whiting, Herbie Blash. A primeira corrida da GP2, sábado, dia 23, em Spa, foi interrompida ainda no início por causa da chuva intensa. Só depois da redução de água no asfalto e a melhora da visibilidade houve nova largada.

Este ano, em Mônaco, o grande piloto belga Jacky Ickx, hoje com 69 anos, vice-campeão do mundo na F1 em 1969 e 1970, além de vencedor de seis edições das 24 Horas de Le Mans, em entrevista ao UOL Esporte disse que não passava pela cabeça do diretor de prova não dar a largada em razão das condições do tempo. "Nem na dos pilotos." Ickx era um especialista no piso molhado. "Corríamos em qualquer condição."

Para se ter uma ideia do volume de água que havia na hora da largada da edição de 1966 do GP da Bélgica, oito dos 15 pilotos no grid abandonaram na primeira volta. Com exceção de Clark, com problemas no motor Climax da sua Lotus, todos os demais em razão de perderem o controle do carro na chuva intensa. "Dentre eles, eu", lembra Stewart. "Aquaplanagem."

A sequência da narrativa de Stewart é impressionante: "Ao sair da pista, como não havia guardrail bati num poste e capotei. E lá fiquei, dentro do carro, de rodas para o ar, por uns 20 minutos." Quem o ajudou a sair daquela situação perigosa, pois os carros pegavam fogo com facilidade, foram os dois companheiros de equipe, o inglês Graham Hill e o norte-americano Bob Bondurant. "Pode parecer incrível, mas não havia comissários ali", diz o escocês.

Hoje há um número elevado de postos de comissários ao longo dos circuitos e todos interligados com a direção de prova através de rádio. "As ações são coordenadas da torre da direção de prova", explica Blash. 

No GP do Brasil, em Interlagos, Whiting mostrou ao hoje repórter do UOL a sala de direção de prova. "Monitoramos todos os pontos da pista. E cada câmera, mesmo a que não tem a imagem selecionada para ir ao ar, na TV, também grava, dispomos sempre das imagens que desejamos", explicou.

Número de pilotos não confere

"Em 1966, o diretor de prova soube que vários carros saíram da pista ao deparar que apenas sete pilotos completaram a primeira volta", explica Blash, rindo. "Foi apenas nesse momento que ordenaram que a ambulância deixasse os boxes para ir procurar os acidentados", diz Stewart.

O atual médico chefe da F1, o inglês Ian Roberts, esboça um sorriso ao ouvir do repórter a história contada por Stewart. "Bem, risco sempre existe. O que fazemos é tentar torná-lo o menor possível. Esses eram demais, não?", questiona, sorrindo.

"Hoje temos uma equipe bem equipada especializada em resgate dos pilotos e todos são treinados em como proceder", diz. "A imobilização e extração do piloto do cockpit segue um padrão, nós realizamos um simulado com as equipes locais antes de cada GP, checamos se estão seguindo o modelo de procedimento adotado pela F1."

Preparativos médicos começam bem antes

Dino Altmann é o diretor médico do GP do Brasil e faz parte do corpo médico da FIA. "Antes de o evento chegar no Brasil nós realizamos o grosso do trabalho, que é montar toda a estrutura de atendimento na pista, no hospital do autódromo e o hospital credenciado para receber os acidentados, no caso de a equipe médica concluir que é preciso exames e tratamento mais complexos." 

Falou mais: "Coordenamos o sincronismo entre as equipes de atendimento na pista, no hospital do autódromo e o credenciado." Há sempre especialistas de plantão, como traumatologistas, neurologistas, ortopedistas, especialistas em queimaduras, dentre outros.

E o transporte do autódromo para o hospital credenciado obedece também critérios rígidos. "A não ser que o hospital seja ao lado ao circuito, como na Austrália, dispomos de helicóptero ambulância bem equipado", explica Roberts.

Stewart acompanha de perto cada novidade incorporada à segurança da F1. Ele conta mais do seu acidente, ainda com certa indignação. "Com o impacto, o chassi do meu carro dobrou e era preciso tirar o volante para eu sair do cockpit. Além de Graham (Hill) e Bob (Bondurant) , havia torcedores ajudando-os a colocar o carro na posição normal e me tirar do cockpit."

O grupo improvisado de resgate compreendeu que teria de dispor de ferramentas. "Havia gente acampando por perto e um deles apareceu com uma caixa." Com chaves de boca soltaram os parafusos do volante e o tiraram da BRM. Isso permitiu a extração de Stewart do cockpit. Suas pernas estavam sendo pressionadas pelo volante. "Mantive-me consciente o tempo todo. Sentia muitas dores e a pele queimando."

Esconde, esconde...

Mike Doodson, jornalista da F1 desde os anos 60, lembra de Bondurant lhe dar mais detalhes do atendimento. "O macacão de Jackie estava encharcado de gasolina, queimando sua pele. Bondurant o retirou, deixando Jackie nu." 

A essa altura, já o haviam levado para uma área coberta de uma pequena propriedade rural, ao lado da pista que era, na realidade, uma estrada de uso normal fora dos horários de treinos e corrida. 

"Ao saber que um piloto acidentado estava naquela propriedade precisando de ajuda, duas freiras que por lá estavam foram tentar ser úteis. Quando Bondurant viu as freiras se aproximando, tratou de cobrir o que dava do corpo nu de Stewart com o macacão, lembra Doodson.

Motorista da ambulância se perde

Stewart segue: "Finalmente chegaram uma ambulância e um carro de polícia. O policial nos guiaria até o hospital. Mas o policial se perdeu, não sabia como chegar no hospital e naqueles hesitações todas o motorista da ambulância também se perdeu do carro de polícia", conta Stewart, movimentando a face, como quem diz "dá para acreditar?".

O motorista da ambulância disse a Stewart que sabia onde havia um hospital e o levou para lá. "Quando chegamos lá retiraram a maca da ambulância e me puseram no chão de cimento, na entrada do hospital. Lembro de ter visto ao meu redor várias pontas de cigarro."

Com o semblante sério, o escocês afirmou: "A partir daí, disse a mim mesmo que alguém deveria fazer algo para acabar com aquilo. A maneira como agiram comigo fez com que eu passasse a liderar uma cruzada para termos um mínimo de segurança. Infelizmente demorou para termos menos mortes, perdi muito amigos até ainda os anos 70".

As consequências para Stewart foram menores das esperadas. Sofreu fratura no pulso direito, queimaduras dispersas na pele e escoriações generalizadas. Um mês depois, dia 16 de julho, o piloto alinhou sua BRM para a largada do GP da Grã-Bretanha, em Brands Hatch. "Não corri uma etapa, na França."

O médico chefe da F1 comenta: "A segurança passou a ser um tema de preocupação. Até então o ambulatório dos autódromos tinha uma maca e um bebedouro, apenas", diz. 

"Mas a maior das revoluções no automobilismo, nesse aspecto da segurança, foi iniciado com Sid Watkins." O neurocirurgião inglês liderou a F1 de 1978 a 2005. Ele faleceu em 2012, aos 84 anos, deixando um legado ainda mais importante que o dos pilotos grandes campeões.

Fim do empirismo

Em entrevista ao hoje repórter do UOL, Watkins afirmou: "A perda de Ayrton  Senna e Roland Ratzenberger, em 1994, marcou o início de uma nova era na segurança do automobilismo. Até então as decisões, as medidas adotadas, seguiam a experiência dos profissionais do evento e a intuição de alguns engenheiros".

E prosseguiu: "A partir daí tudo passou a ser tratado com critério científico. Mudamos a forma de pensar a segurança. Criamos uma comissão para estudar as suas várias áreas, como a dos carros, circuitos, indumentária dos pilotos, resgate, atendimento médico etc".

A experiência traumatizante de Stewart em Spa seguida da sua corajosa iniciativa levaram não apenas a F1, mas o automobilismo, em geral, a oferecer segurança extremamente mais elevada que no início de sua carreira. Emerson Fittipaldi define o momento, hoje, como "risco calculado". 

Stewart comenta: "Quando se está a mais de 300 km/h, tudo pode acontecer. Mas se sabemos de antemão o que é mais provável de ocorrer e desenvolvermos formas de encarar esses riscos, a tendência é as consequências serem muito menores. É essa a realidade que vivemos hoje, embora seja haja o que melhorar." 

Stewart afirma, ainda: "Essa geração de supertalentos que há hoje na F1 não sabe o que é começar a temporada sabendo, de antemão, que um ou dois pilotos não vão concluir o campeonato porque vão morrer. É assim que competíamos".

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