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Com seis suicídios em dois anos, médicos já ligam lesões do futebol americano à depressão

Belcher é fotografado durante jogo de sua equipe, o Kansas City Chiefs, na NFL - Jamie Squire/Getty Images/AFP
Belcher é fotografado durante jogo de sua equipe, o Kansas City Chiefs, na NFL Imagem: Jamie Squire/Getty Images/AFP

Bruno Doro

Do UOL*, em São Paulo

05/12/2012 06h00

No último sábado, o linebacker do Kansas City Chiefs, Jovan Belcher, atirou contra a própria cabeça no estacionamento de seu time, minutos depois de matar sua namorada. Foi o sexto suicídio de jogadores, na ativa ou aposentados, registrado nos últimos dois anos no futebol americano. O índice é considerado alto e já chamou atenção de cientistas. Um estudo, aliás, foi mais longe e associou os traumas constantes na cabeça, comuns nos atletas da modalidade, a uma doença degenerativa que causa, entre outros sintomas, depressão e agressividade.

OS SEIS SUICÍDIOS

  • Getty Images

    Dave Duerson - fevereiro de 2011: já aposentado, ele atirou no próprio coração e pediu que seu cérebro fosse doado para os cientistas que estão estudando as lesões causadas pelo futebol. Ele foi diagnosticado com TCE.

  • Ray Easterling – abril de 2012: também estava aposentado quando se suicidou. Sua mulher pediu que fosse feita a autópsia, que constatou que a TCE era a causa de seus problemas mentais.

  • Kurt Crain – abril de 2012: atleta de sucesso no colegial, jogou apenas dois anos na NFL. Era auxiliar técnico no time da Universidade de Auburn. Não foram reveladas lesões cerebrais.

  • EFE/Matt Campbell

    Junior Seau – maio de 2012: também deu um tiro no peito após o fim de sua carreira profissional. Easterling (62) e Duerson (50), porém, cometeram o suicídio bem depois de se aposentarem. Seau se matou apenas dois anos depois do adeus aos campos. Segundo o LA Times, não foram encontradas lesões cerebrais.

  • Getty Images

    OJ Murdock – julho de 2012: ainda em atividade, o jogador cometeu suicídio aos 25 anos. Sua família doou o corpo para a Universidade de Boston, para o estudo de TCE.

  • EFE/EPA/LARRY W SMITH

    Jovan Belcher – outubro de 2012: segundo atleta em atividade da lista, se matou em frente ao técnico e a um dirigente do Kansas City. Amigos dizem que Belcher, também de 25 anos, sofria com mudanças de humor e perda de memória, sintomas de concussão e de TCE.

O problema em questão é a Encefalopatia Traumática Crônica (ETC), uma doença que foi diagnosticada primeiro em boxeadores. Estudo publicado pela Revista de Psiquiatria Química da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 2005 lista como efeitos psiquiátricos da ETC, entre outros, agressão fácil (na fase inicial), ataques de violência (fase intermediária) e paranoia e psicose (fase tardia).

A ligação entre o futebol americano e a ETC, que só pode ser diagnosticada após a morte, foi feita por um grupo da Universidade de Boston, nos EUA, que estudou o cérebro de 85 pessoas que sofreram, durante a vida, traumas cerebrais recorrentes. O tecido cerebral foi analisado em microscópios, procurando as pequenas cicatrizes que marcam a doença. Os objetos de testes eram jogadores de futebol americano ou hóquei, militares e boxeadores. No total, 68 indivíduos apresentaram ETC, 50 deles eram jogadores de futebol americano. O estudo foi publicado pelo site norte-americano ESPN.com, na revista científica Brain e apresentado na International Consensus conference on Concussion in Sport, realizada em outubro em Zurique.

Por causa dos resultados alarmantes, o estudo ganhou manchetes mundo a fora, mas acabou contestado pela comunidade médica. “A única crítica que eu tenho é que é preciso fazer ciência para descobrir qual a incidência disso. O que devemos dizer para as crianças? Pare de praticar esportes? O que nós sabemos pelos números do Centro de Controle de Doenças é que as crianças se machucam muito mais andando de bicicleta ou correndo”, disse Richard Ellenbogen, neurocirurgião que é o presidente do Comitê de Cabeça, Pescoço e Espinha da NFL, a liga profissional de futebol americano. “Estamos um pouco preocupados com os dados apresentados, que são, não diria distorcidos, mas precisamos de mais informação para dizer se esses dados representam a verdade ou não”, falou Lars Engrbretsen, chefe de cirurgia ortopédica da Universidade de Oslo, na Noruega, e chefe de atividades científicas do Comitê Olímpico Internacional. As duas declarações foram dadas ao ESPN.com.

O UOL Esporte também conversou com um especialista em medicina esportiva brasileiro. E a opinião foi a mesma. “Sabemos que a repetição de qualquer coisa, seja um movimento ou um trauma, cobra algum tipo de pedágio do corpo. E esse desgaste vai se acumulando até que, mesmo que você troque as peças, o conjunto geral não vai mais funcionar como antes. O problema é apontar um causador único para os problemas cerebrais, quando podem ser vários”, explicou Ricardo Munir Nahas, médico do esporte e diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE).

O mesmo pode ser dito sobre a ETC causando depressão ou aumentando a agressividade dos pacientes. “Depende muito das áreas do cérebro onde as lesões acontecem. No caso do Cassius Clay/Muhamad Ali, por exemplo, a coordenação motora foi mais afetada do que a parte sensitiva. E a depressão e a agressividade também podem ter muitas causas. Um jogador que tem problemas para lidar com a carreira, ou o fim dela, pode apresentar depressão. E o até o uso de doping e anabolizantes pode deixar a pessoa mais agressiva”, completou Nahas.

A discussão pode parecer distante do Brasil, já que envolve um esporte pouco praticado por aqui. Mas não é verdade. Um estudo norte-americano apresentado em 2011 na reunião anual da Sociedade Norte-Americana de Radiologia (RSNA) mostrou que o ato de cabecear pode gerar lesões cerebrais. Outros estudos, desta vez feitos na Suécia, já tinham mostrado resultados semelhantes.

“Já li estudos que dizem que sim [cabecear causa danos cerebrais]. E outros que vão contra essa teoria. Acho que depende do estilo do jogador. Se ele é mais clássico e mata a bola no peito ou se é zagueiro e prefere cabecear todas as bolas. Para o caso específico brasileiro, sofremos com uma memória curta. Não temos dados históricos para lidar”, explicou Nahas.

Para resolver esse problema, o Conselho federal de Medicina e a Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte estão negociando a criação de um banco de dados de intercorrências médicas que aconteceram nos esportes. “Existem doenças infecto contagiosas de notificação compulsória. Estamos pensando em fazer algo semelhante a isso no esporte. Com isso, poderíamos criar uma estatística nacional e desenvolver estudos baseados na realidade brasileira”, adiantou o médico.

* Com dados de agências internacionais