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Clubes e organizadas têm "recíproca dependência", afirma especialista

Luiz Gabriel Ribeiro

Do UOL, no Rio de Janeiro

11/12/2013 06h00

Com as torcidas organizadas no centro da discussão desde o último domingo, o Campeonato Brasileiro ficou em segundo plano. A briga generalizada, que marcou a partida entre Atlético-PR e Vasco, resultou em quatro torcedores feridos e três presos. Uma das partes envolvidas na confusão em Joinville é a Força Jovem do Vasco (FJV), já incluída em outros episódios de violência no torneio nacional de 2013. A organizada cruzmaltina se divide em “famílias” e repete táticas de torcidas de outros clubes brasileiros para se impor.

Em entrevista ao UOL Esporte, Bernardo Buarque de Hollanda, professor da Escola de Ciências Sociais (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador da história social do esporte e torcidas organizadas de futebol, aponta que as “cabeças-pensantes” dessas facções elaboram estratégias de briga, enquanto os “guerreiros” ou “de pista” partem para o enfrentamento na busca pelo poder diante de rivais e de subgrupos internos. Ele ressalta também que a relação entre clube e torcida organizada é estrutural, e não é possível separá-los totalmente.

Surgida em 1970, a FJV é a maior torcida organizada do Vasco. Dividida em “famílias”, ela congrega 63 facções atualmente – com divisões até mesmo fora do Brasil. Teve o seu maior crescimento durante os anos 1990, a partir do crescimento da rivalidade entre Vasco e Flamengo.

Leia a entrevista com Bernardo Buarque de Hollanda:

UOL Esporte - As organizadas ganham cada vez mais influência no dia a dia dos clubes, até mesmo com poder de fiscalização. Qual é o fator positivo da presença delas? E o negativo?
Bernardo Buarque de Hollanda - A relação entre clubes e torcidas é estrutural, não é possível separá-los totalmente, pois há uma recíproca dependência. O clube depende dos seus torcedores, pois são eles que dão seu apoio em campanhas eleitorais e parte de seu sustento político-econômico, e a torcida – embora cada vez mais autônoma, com símbolos, sedes, ritos e hinos próprios – não vive sem a existência dos jogos do seu clube.
 
Ao longo do tempo, o nível de interpenetração clube/torcida variou, assim como variou o tipo de relacionamento de acordo com cada clube e com cada torcida.
 
Para dar um exemplo histórico: o Grêmio Gaviões da Fiel surgiu em 1969 para fazer oposição ao presidente do clube, entendendo que as arquibancadas eram um espaço público para fazer esse tipo de pressão, que o clube, cada vez mais burocratizado, não permitia internamente. A fiscalização passou a ser feita de fora para dentro. Por isto seu lema: Gaviões da Fiel – Força Independente. O que fez a direção do Corinthians? Criou em 1971 a Camisa 12, para ser uma torcida de apoio à presidência do clube nas arquibancadas e de contrapeso interno aos Gaviões.
 
UOL Esporte - Subsidiar ingressos aos torcedores organizados é uma atitude comum dos clubes brasileiros?
Bernardo Buarque de Hollanda - Foi uma prática corriqueira tanto o fornecimento de ingressos quanto o oferecimento de ônibus para as excursões. Repito: varia de clube a clube, não é possível generalizar. Mas a tendência entre os grandes clubes é que esse apoio diminua, pelo menos quanto às entradas nos estádios, uma vez que as novas arenas são menores e cobram ingressos mais caros.
 
UOL Esporte - Lideranças se formam e, muitas vezes, se destacam pela truculência. Essa é uma atitude normal dos líderes das organizadas?
Bernardo Buarque de Hollanda - São poucas as torcidas organizadas que hoje têm eleições internas, ainda que haja alternância de poder. Tradicionalmente havia lideranças carismáticas. Na atualidade, como as torcidas cresceram muito e se subdividiram territorialmente, o poder emanou para os bairros. Em alguns casos, um dos diversos subgrupos internos acaba se impondo sobre os outros com base na quantidade de adeptos e de força física, de modo que a masculinidade e a virilidade acabam sendo meios de autoafirmação, de recrutamento e de dominação. 
 
UOL Esporte - Como os integrantes das organizadas conseguem avançar na hierarquia? A presença em episódios de violência pode aumentar a influência destas pessoas?
Bernardo Buarque de Hollanda - Grosso modo, há uma divisão entre os ‘cabeças-pensantes’, que elaboram as estratégias de briga, e os ‘guerreiros’ (ou ‘de pista’, na gíria das torcidas do Rio), que estão dispostos ao enfrentamento. Assim uma hierarquia se mantém sem que necessariamente o líder apareça brigando. 
 
UOL Esporte - A torcida Força Jovem do Vasco (FJV) se mostra muito presente no dia a dia do Vasco. Ela é mesmo a facção mais influente do clube cruzmaltino? Como se deu esse crescimento?
Bernardo Buarque de Hollanda - A FJV surgiu em 1970 e durante essa década teve como líder o pacato Ely Mendes, da Ilha do Governador. Até meados dos anos 1980, a TOV (1944) é que era a principal torcida vascaína. A FJV apenas a ultrapassou em meados dos anos 1980, com o grupo de Roberto Monteiro, hoje um advogado e vereador do PCdoB, no Rio de Janeiro.
 
A FJV cresceu para fazer frente à Torcida Jovem do Flamengo, que tinha em Capitão Leo, hoje presidente fiscal do Clube de Regatas do Flamengo, a principal referência. Cap. Leo politizou a torcida e criou símbolos bélico-revolucionários: o Exército Rubro-Negro, com seus pelotões – divisões geográficas por bairros – cujo ícone foi Che Guevara, mas também Aiatolá Komeini, Sadam Husseim, Fidel Castro e Mao Tsé-Tung. Até hoje, empunham uma bandeira da Palestina.
 
A Força Jovem também se politizou e apoiou Lula desde a campanha de 1989. Cresceu vertiginosamente durante os anos 1990, quando a rivalidade entre Flamengo e Vasco passou a preponderar no Rio.
 
UOL Esporte - A FJV se divide em famílias. Como funciona esse tipo de organização? Há como a cúpula da torcida ter controle da atitude de todos os seus integrantes?
Bernardo Buarque de Hollanda - As Famílias na FJV – como os Pelotões da TJF, os Comandos na RRN, os Núcleos na TYF e os Canis na FJB - são os subpoderes geográficos locais. Como ressaltei, resultam do crescimento vertiginoso do número de membros de uma torcida e levam a realidade das brigas para longe dos estádios. Cada Família tem um monitor, que faz a mediação com o poder central da torcida e tem certo grau de autonomia para comandar as ações do grupo na sua localidade.
 
UOL Esporte - Quais são as outras torcidas organizadas que se destacam dentro do Vasco? Elas também têm proximidade com dirigentes?
Bernardo Buarque de Hollanda - A Ira Jovem é a segunda força entre as torcidas do Vasco da Gama hoje e resulta de uma dissidência interna da FJV. Em alguns momentos, ela rivaliza e vai às vias de fato contra a FJV na luta por hegemonia entre as torcidas.
 
Outro exemplo importante é o caso da Guerreiros do Almirante, a GDA, que tenta ser um novo modelo de torcida, menos beligerante e que segue o exemplo dos cânticos e das formas de torcer dos argentinos. Eles empurram o time durante os 90 minutos e cantam apenas músicas de incentivo ao clube, que é mais importante por princípio que a torcida.
 
Tanto a Ira quanto a GDA têm contato com os dirigentes, as próprias bandeiras das torcidas são guardadas em São Januário, no estádio do clube. Mas, claro, circunstancialmente, são apoio ou são oposição a uma direção em específico.
 
UOL Esporte - Assim como há as rixas entre organizadas, existem as torcidas co-irmãs. Como se desenvolve esse tipo de relação, nas duas vertentes?
Bernardo Buarque de Hollanda - As grandes coirmãs da FJV são a Mancha Verde, do Palmeiras, e a Galoucura, do Atlético. Mas é necessário historicizar um pouco mais esse ponto:
 
Trata-se de uma relação instável e sempre cambiante, que variou com o tempo, segundo alguns critérios: 1. Relação pessoal entre lideranças de torcida ; 2. Relação entre os clubes (afinidade de cores, tipos de clube – popular X de elite); 3. Grau de rivalidade entre os clubes (partidas decisivas tendem a acirrar os ânimos, a exemplo da briga entre as torcidas do Atlético Mineiro e do Flamengo na final do Campeonato Brasileiro de 1980, sendo que suas respectivas Charangas – comandadas respectivamente por Júlio e Jayme de Carvalho – tiveram relações de amizade durante os anos 1970).
 
O surgimento das alianças remonta à criação do Campeonato Brasileiro de futebol, em 1971. A partir daí, com a sistematização dos jogos e com a regularização das caravanas, as Torcidas Jovens – recém-criadas no Rio de Janeiro – passaram a estabelecer pouco a pouco uma alternância entre ‘hospitalidade’ e ‘hostilidade’ na recepção e na ida a estádios do Brasil.
 
A chamada ‘invasão corintiana’ ao Maracanã, em 1976, deu início a uma amizade entre as torcidas do Flamengo e do Corinthians, aliança selada em 1978, entre Gaviões da Fiel e Torcida Jovem do Flamengo, de um lado, e entre Raça Rubro-Negra e Camisa 12, de outro, que se estendeu por dez anos, até 1988.
 
Nos anos 1980, há a fixação de uma polarização, que uniu inicialmente Flamengo, Corinthians, Cruzeiro, Internacional e Atlético Paranaense – de um lado – e Vasco, Botafogo, Palmeiras, Atlético Mineiro, Grêmio e Coritiba, de outro lado. As torcidas nordestinas e nortistas só foram incorporadas a essa lógica nos anos 1990.
 
Em 1988, no entanto, a Jovem-Fla rompe com a Gaviões e alia-se à Independente do São Paulo. Trata-se de uma aliança costurada por dois personagens, “cabeças pensantes” importantes: Capitão Leo (hoje presidente do Conselho Fiscal do Flamengo) e Adamastor, líder então da Independente. Essa cisão embaralhou aquele quadro bipartido inicial, mas este, de algum modo, com algumas mudanças, ainda perdura até hoje.
 
Isso explica que as torcidas do Vasco sejam próximas às do Coritiba e as do Flamengo, às do Atlético Paranaense.