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Profissão de risco: por que Brasil lidera ranking de demissões de técnicos

Napoleão de Almeida

Colaboração para o UOL

16/06/2017 04h00

Não há mais dia em que um treinador possa dormir tranquilo em seu cargo: era tarde da noite de segunda-feira (05) quando caía Marcelo Cabo, do Atlético-GO, o sexto treinador modificado (nem todos foram demitidos) apenas entre os clubes da Série A do Brasileiro. Uma tendência explícita no último estudo sobre o futebol mundial feito pela Uefa (entidade que controla o futebol europeu), que coloca a liga brasileira como a menos segura para os técnicos entre as principais do planeta.

Cabo se juntou aos demitidos Ney Franco (Sport) e Dorival Júnior (Santos), aos modificados Paulo Autuori (migrou de função no Atlético-PR) e Petkovic (fez o mesmo no Vitória) e ao demissionário Guto Ferreira, que trocou o Bahia pelo Inter-RS. Os seis engrossam uma estatística que cresce no país. No estudo da Uefa, a constatação de que 90% dos clubes brasileiros da elite mudaram de técnico entre 2014-15, a temporada aferida na métrica europeia. Num comparativo, o Brasil mexe mais no banco de reservas que franceses (25%), ingleses (40%), espanhóis e holandeses (50% cada um), alemães (56%), argentinos (63%), italianos (65%) e portugueses (72%).

O índice brasileiro é o pior das grandes ligas mundiais e só fica acima de Argélia, Costa Rica e Turquia, países sem a mesma expressão no futebol – os turcos ainda têm uma liga de segunda linha na Europa. Há um por quê?

“Não há uma resposta simples. Eu acredito que é a convergência de muitos fatores. É importante ver como os clubes cresceram no Brasil e como cresceram na Europa, o número de jogos aqui, os Estaduais, que são quase únicos no mundo. Até o número de dirigentes que rodam nas cadeiras dos clubes”, argumenta o executivo de futebol Felipe Ximenes, com passagens por vários clubes no Brasil, como Flamengo, Atlético-MG e Coritiba, “A estrutura no Brasil é quase amadora. Na Europa temos o futebol como negócio, clubes com donos, Ligas formadas e consequentemente pode ter alguma correlação da volatilidade dos treinadores.”

Ximenes faz parte de uma geração de gerentes de futebol, profissionais que passaram a tocar o clube sendo a ligação entre a tradicional diretoria não-remunerada e os técnicos e jogadores. Gente como Pedro Martins, hoje gerente na Ferroviária, mas com passagens por Atlético-PR e Queens Park Rangers, da Inglaterra.

“Esta é apenas a ponta do iceberg. O fato de termos clubes associativos com mandatos de curto prazo (2 ou 3 anos), contribui para que não sejam desenvolvidas políticas mais robustas dentro do departamento futebol do clube. A urgência característica desta indústria faz com que a melhor solução para a sequência de derrotas seja a troca do principal comandante, a construção através de outras saídas requer uma solidez institucional muito maior”, diz Martins. Em miúdos: é melhor mandar um do que 30 profissionais embora.

Quem viveu na pele por muitos anos essa pressão e agora vai passar a administrar – entre outras tarefas – essas situações é Paulo Autuori. Técnico do Atlético-PR até maio, ele viveu a situação sui-generis de sair do cargo mas não sair do clube. Passou a ser manager, trazendo Eduardo Baptista para a sua vaga. Engrossou a estatística do Brasileiro, mas por outras razões. A primeira missão, claro, é dar estabilidade ao novo treinador. Questionado se é um caminho, ele diz: “Aqui não tem lógica. Está ganhando é bom, não está é ruim. Essa é minha grande crítica aos clubes e aos dirigentes. Não têm coragem de bancar isso no clube mesmo contra imprensa e torcida. Não ser assim é a virtude do Atlético”, compara, prosseguindo: "No Atlético eu vejo ideias, no geral não há a menor coerência, se buscam resultados. O próprio Internacional mudou de perfis claramente, chegando ao absurdo de fazer o maior ídolo (Paulo Roberto Falcão) passar 20 dias no comando."

Geração Super Técnico

Para Ximenes, contratar um treinador no Brasil é um processo mais simplificado do que deveria.

“É feito muito mais em cima do momento que a equipe está passando ou do que o treinador está vivendo do que propriamente a filosofia do clube. Não há um processo seletivo, são conversas pessoais do presidente ou vice dos clubes com o treinador. Poucas coisas são conversadas sobre estrutura e conceitos de futebol, são discutidas coisas como tempo de contrato e multa”, relata Ximenes. Imagine-se em sua profissão sendo contratado por qualquer empresa com orçamento acima de R$ 3 milhões mensais – referência da folha de pagamento do Coritiba – sem passar por um exaustivo processo seletivo para ser o comandante de um grupo de trabalho e receber valores com pelo menos 5 dígitos como salário.

Para Autuori, há outro clichê no Brasil que atrapalha a avaliação de qualquer trabalho. “Aqui se rotulou essa coisa absurda de ‘vamos contratar um motivador’, ou então um ‘disciplinador’... isso é bobagem. O cara é técnico. Ele tem que gerir pessoas, então tem que se contratar um técnico de futebol. Esse tipo de coisa acontece de forma clara pela falta de ideias dos clubes de futebol. É conceitual. Você ainda vê muito no Brasil a saída de um treinador e ao entrar o clube vai substituir e põe uma lista de nome com perfis diferentes dos outros. É a falta de ideias do clube. Isso demonstra a falta de padrão, para onde se quer ir.”

O gerente do Furacão compreende que, na verdade, o que importa é que a escolha seja feita com base num projeto geral do clube, e que por sua vez o profissional não se apegue a pranchetas, ícones motivacionais e afins: “Gestão de pessoas é fundamental. Além do fato de gerir jogadores, você tem que gerir uma comissão técnica multidisciplinar. Transdiscilplinar, na verdade, por que interagem entre si.” O que regula a avaliação não seriam, portanto, apenas os resultados e sim se o produto ofertado – leia-se futebol – atende ao que se planejou.

“É o conhecimento do dia a dia, o tipo de jogo, a variante, se tem a ver com a identidade do clube. Por que o clube X tem apaixonados? Porque desenvolvia o futebol dessa maneira. Isso não pode ser diferente. Você vai para Minas tem que fazer o Cruzeiro jogar por que sempre foi assim, vai para um Grêmio, o time tem que ser aguerrido. Quem contrata o técnico tem que saber disso”, diz Autuori.

O antigo programa da TV Bandeirantes “Super Técnico” marcou época com grandes entrevistas e o legado de que Vanderlei Luxemburgo, Luiz Felipe Scolari, Muricy Ramalho e outros comandantes de sucesso tinham até mais relevância que os craques em campo. Para Ximenes, uma cultura que cobra seu preço. “O excesso de importância, tanto pro bem quanto pro mal, dos treinadores no Brasil, elevando ao extremo destaque quando ganham como culpando-os quando o resultado não é positivo”, comenta.

Na Série A de 2016, apenas Dorival Júnior iniciou e terminou a temporada no cargo. Alguns, como Paulo Autuori e Cuca, chegaram aos seus clubes ainda nos Estaduais, como faz agora Pachequinho, no Coritiba. Outros, como Tite, deixaram o cargo por uma proposta, deixando o clube para trás. Na B do ano passado, Jorginho foi a exceção no Vasco, assim como Cláudio Tencati, do Londrina. O técnico do Tubarão é o mais longevo no Brasil, a frente do cargo desde 2011. Uma agulha no palheiro dos técnicos brasileiros.

Luxa e Tencati - Assessoria de Imprensa Londrina EC - Assessoria de Imprensa Londrina EC
Luxemburgo e Claudio Tencati
Imagem: Assessoria de Imprensa Londrina EC

Ele reconhece que os resultados são fundamentais em sua estabilidade rara no Brasil. “A longevidade que tenho no Londrina se deve aos resultados, em 2011 o clube estava na Série B do Estadual e hoje está na Série B do Brasileiro. No meio desta sequência conseguimos sempre as nossas metas estipuladas. Claro que houve derrotas, mas nos momentos de cobrança sempre o (presidente do Londrina) Sérgio Malucelli não deu ouvidos a terceiros e sim escutava o que tínhamos para explicar, acredito que isso gerou uma parceria forte e confiável. Nunca sob o nosso comando o Londrina sofreu mais de três derrotas seguidas, sempre conseguimos reação após uma ou duas derrotas”, conta.

O fenômeno Wenger

Pode ser que a instabilidade brasileira seja assustadora, também chama a atenção a estabilidade de Arséne Wenger, técnico do Arsenal após 21 anos. Nesta temporada, ele balançou depois da sétima eliminação consecutiva na Liga dos Campeões da Europa na mesma fase, oitavas de final. Ficou e levantou a Copa da Inglaterra sobre o Chelsea, o 16º título dele pelo clube – foram três títulos da Premier League e 13 copas. Apesar das conquistas, Wenger é questionado pelo jejum de 13 anos na Liga nacional e nenhum título europeu. Mas o Arsenal o manteve, outra vez.

“O grupo de gestão do Arsenal reforça que ele é a liderança certa para promover o crescimento sustentável que os investidores desejam, construindo equipes competitivas dentro dos padrões conceituais, administrativos e financeiros da instituição”, descreve Martins, que se formou gerente de futebol em Liverpool. “O seu papel transcende o campo de jogo e o novo contrato reflete a crença no que pode ser construído em todo futebol do clube no longo prazo”, afirma.

Não há como comparar com Dorival Júnior, demitido do Santos com o time invicto na Libertadores e com um currículo com três títulos pelo clube, um deles a Copa do Brasil, em duas passagens de aproximadamente 2 anos e meio no comando do clube. Para Dorival, pesaram as derrotas nos clássicos, em especial a última para o Corinthians. A pressão vem de todos os lados e para segurar o treinador é preciso muita força. Ximenes manteve Marcelo Oliveira no cargo no Coritiba mesmo após duas derrotas em finais de Copa do Brasil (2011 e 12), mas já teve que demitir mesmo a contragosto.

“Tem situações que elas ficam insustentáveis, você precisa até mudar o que você pensa. Em uma ocasião fui pela demissão do técnico porque perdemos de seis, ficou insustentável. Não adianta querer ir contra uma situação insustentável”, relata. Autuori vai além. Para ele, é impossível separar a leitura de pressão em cima de um técnico por conta dos resultados da maneira como o brasileiro vê a vida.

“Não consigo analisar futebol sem os aspectos antropológicos, as pessoas que fazem futebol advém da sociedade, com seus hábitos e costumes. Logicamente que lá na Europa tem outra visão, nós aqui confundimos educação com escolaridade. Hoje em dia as famílias empurram a responsabilidade de educar para as escolas, que são cada vez mais mercantilistas. Dentro disso, o que existe lá é que as pessoas têm uma maior tolerância com processos”, analisa, lembrando porém que nem tudo são flores: “Nesta temporada, no primeiro turno do Alemão haviam demitido 9 técnicos.”

Sobre Wenger, Autuori também pondera ser uma exceção. “Tem a ver com o reconhecimento de tudo que ele fez, não só em títulos mas em lançamento de jogadores. Os que são os donos do clube compreendem que não é só fato de ganhar”, pensa. Ele próprio passou a cuidar de todo o futebol do Atlético-PR, desde a formação dos jogadores no estilo em que o clube deseja.

A sociedade se espanta com Wenger há 21 anos no cargo e até mesmo com Cláudio Tencati há 5 anos no mesmo clube, mas aceita que um gerente comercial passe até 30 anos numa mesma empresa. É mais um dos clichês que Autuori critica. “Não dá para você pensar que algumas coisas acontecem no futebol e que não acontecem na vida. Não dá para pensar que é uma redoma.”