Na várzea, times de mais de 80 anos rejeitam o profissionalismo por amor ao terrão

Bruno Doro

Do UOL, em São Paulo

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    Capa do livro "A história do Tigre da Cantareira", sobre o Lausanne Paulista

    Capa do livro "A história do Tigre da Cantareira", sobre o Lausanne Paulista

No extremo da Zona Norte, um time com nome suíço brilha no futebol de várzea há 85 anos. Na Zona Leste, outra equipe, essa com um nome bem brasileiro, faz o mesmo há 84. Os dois vovôs do futebol amador de São Paulo dividem não apenas histórias vividas nos campos de terra da cidade, mas uma distância segura do futebol profissional.

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    Francisco Gaboni e Paschoal Gabriel com um dos primeiros uniformes do Lausanne: chapéu era fundamental no futebol dos anos 30

"O futebol está no sangue. Não fazemos isso para ganhar dinheiro. Não existe um motivo para virarmos profissionais", ensina o setentão Casquinha, jogador do Carrão nos anos 50 e 60 e técnico do time desde os anos 80. No Lausanne, o pensamento é parecido. "É muito caro ser profissional. Conseguimos organizar bem o nosso departamento de futebol, temos escolinhas, revelamos jogadores, mas virar um clube profissional não faz parte dos planos", completa o diretor de publicidade, Luciano Santa Cruz.

Os "oitentões" são os times mais velhos na disputa da atual Copa Kaiser. Usando o vovô como mascote, o Carrão venceu em sua estreia na segunda fase e está a um empate da classificação para a terceira etapa. Seu próximo duelo é contra o Primavera, neste domingo, no campo do Flor da Vila Formosa. O Lausanne também venceu seu jogo de estreia na segunda fase e joga no domingo, contra o Vila Bamsk. Ele lidera seu grupo na Zona Norte e também pode se classificar.

Tigre da Cantareira sofre com desapropriações

Um dos times mais tradicionais do futebol amador de São Paulo, o Lausanne Paulista mantém o time funcionando desde sua fundação, em 1927. O apelido de Tigre da Cantareira, dado pelo temor que causava aos adversários, veio na década de 30, quando o clube se consolidou e chegou a ser dono de dois campos de futebol na região.

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    Inauguração do novo campo do Lausanne, após desapropriação do antigo terreno

Com 30 anos, porém, o time viveu sua maior crise: a desapropriação do terreno em que o clube tinha sido construído. Em 1960, o time já era famoso na região, mas sua sede foi tomada pelo Governo Estadual para a construção da escola Castro Alves. Após negociação complicada, o Lausanne Paulista foi indenizado e, com o dinheiro, comprou a área onde está atualmente.

O problema, então, virou uma solução: no ano seguinte, a nova sede foi inaugurada e o estádio passou a ser construído. Em dez anos, o clube voltou a ser o orgulho da região e ganhou um estádio para mandar suas partidas. Até hoje, as instalações são apropriadas: incluem o estádio, dois campos de futebol society, um ginásio, além da sede social, com direito a salões, academia e quiosques.

  • Detalhe do escudo e do uniforme do Carrão: data de fundação acompanha o brasão e símbolo do time é o vovô, sempre homenageando os 84 anos

  • Renato Cordeiro

Vovô da Zona Leste esquece sua história

Se a história do Lausanne está documentada (incluindo um livro ilustrado feito há dez anos, para comemorar os 75 anos), com o Carrão as coisas são diferentes. Na sede do clube existem poucos documentos contando o trajeto desde 1928. "As pessoas que conheciam a história do clube morreram e não deixaram documentos. Conhecemos a história desde que chegamos ao clube", conta o ex-presidente Geraldo Tardin.

O técnico Casquinha é um dos mais antigos. Ele jogou pela equipe no fim dos anos 50 e nos anos 60. Vestiu o uniforme do clube, inclusive, ao lado de Augusto, chamado, quando jogava, de Novo Leônidas. E aqui, novamente, a história esbarra na falta de documentação: alguns no clube dizem que o jogador é capitão da seleção que perdeu a Copa de 50. Mas Casquinha, que jogou com ele, esclarece: "Ele jogou no São Paulo e no Guarani e era chamado de novo Leônidas". O capitão da seleção defendeu Vasco e São Cristóvão.

Casquinha, aliás, foi o responsável pela retomada do clube: nos anos 70 e início dos 80, o Carrão desativou a equipe amadora. "Só voltamos a montar uma equipe em 85, quando eu e Casquinha passamos a comandar a equipe", lembra Nilson Pascutti, um dos diretores do time.

Uma das histórias mais inusitadas envolve um dos pontos altos da história da equipe. No fim dos anos 60, outro time com muita história na várzea, o Maria Zélia, estava invicto há mais de 250 partidas. O fim da série veio contra o Carrão, em uma derrota por 2 a 1. O time recebeu um troféu pelo feito, mas a peça se perdeu.

"Há alguns anos, o pessoal do Maria Zélia me ligou para perguntar quanto tinha sido a partida. Ninguém tinha certeza se tinha sido 2 a 1 ou 3 a 2. Eu fui até o clube para olhar, mas não achei o troféu. Deve ter sido vendido como ferro velho depois de uma das limpezas", conta Casquinha.

ATACANTE DO CARRÃO SOFREU PRECONCEITO NO TIME DE ROBERTO CARLOS

Aos 35 anos, Róbson é conhecido na várzea de São Paulo. Meia-atacante rápido e habilidoso, [e um dos destaques do Carrão, que passou apuros na primeira fase da Copa Kaiser, mas se classificou e está bem na segunda. A alegria que o jogador exibe nos campos de terra de São Paulo, porém, escondem uma história de preconceito vivida na Rússia: ele passou pelo Anzhy Makhachkala, mesmo time que tem hoje o lateral-esquerdo Roberto Carlos, em 2003. "Não foi uma passagem nada boa. Sempre que eu entrava em campo, os torcedores faziam gestos de macaco nas arquibancadas. Até os companheiros de time me tratavam de maneira diferente. Eu não entendia nada o que eles falavam nos treinos, mas o outro brasileiro do time, o William, entendia. Quando o treino terminava, ele me contava o que tinha sido falado. Eles também me ofendiam".
Copa Kaiser de futebol amador
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