Uma visita à Chernobyl, da qual alguns atletas da Eurocopa têm lembranças pessoais

Jere Longman, do The New York Times

Em Pripyat (Ucrânia)

  • Ivan Chernichkin/The New York Times

    Entrada de Pripyat, na Ucrânia, cidade em que a usina de Chernobyl sofreu acidente

    Entrada de Pripyat, na Ucrânia, cidade em que a usina de Chernobyl sofreu acidente

A natureza fez seu trabalho implacável. O principal estádio de futebol agora é uma floresta. Álamos e bétulas cresceram no campo, atravessando a pista de atletismo de asfalto e bloqueando a entrada da arquibancada. Musgo cresce em moitas nos degraus de concreto e brota nos assentos de madeira apodrecidos.

A menos de três quilômetros de distância, o Reator Nº4 da usina nuclear de Chernobyl explodiu em 26 de abril de 1986. Os 50 mil trabalhadores e suas famílias que viviam aqui foram evacuados de ônibus, para nunca mais retornar. Os prédios de apartamento de Pripyat se transformaram em um deserto urbano. As traves de futebol na escola Nº1 estão escondidas em um bosque cerrado, no fim de uma trilha coberta de folhas com pegadas recentes de animais.

"A decisão da Eurocopa 2012 será jogada aqui para ver quem é o mais forte", disse com humor negro Maxim Orel, um guia turístico do Chernobylinterinform, um departamento do Ministério da Emergência da Ucrânia, na semana passada no estádio central abandonado. "Os vencedores serão mutantes."

A final real da Eurocopa será jogada a duas horas ao sul, em Kiev, em 1º de julho. Mas durante o torneio, Chernobyl está atraindo os fãs do turismo sombrio, que vestem seus uniformes, cachecóis e cautela com entusiasmo. E o vazamento de radiação está sendo responsabilizado um quarto de século depois pelo envenenamento de um astro do futebol da Bulgária.

Direta ou indiretamente, assim como milhões de outros, o desastre tocou as vidas de vários atletas de renome internacional, como o astro ucraniano do futebol, Andriy Shevchenko; os irmãos ucranianos que dividem o título de campeões mundiais de boxe peso pesado, Vitali e Wladimir Klitschko; e a ex-ginasta soviética campeã olímpica, Olga Korbut.

EURO VAI À ÚLTIMA RODADA COM CENÁRIO INÉDITO DE NENHUM CLASSIFICADO

  • ALESSANDRO BIANCHI/REUTERS

    Ao final da segunda rodada da fase de grupos, a Eurocopa-2012 vê um equilíbrio jamais presenciado desde que a competição passou a ter 16 times. Nenhuma seleção se classificou nos quatro grupos. Além disso, apenas três seleções estão eliminadas - Irlanda e Suécia. A primeira vez que o torneio continental passou a ter 16 seleções ocorreu na edição de 1996. Desde então, a Eurocopa sempre chegava à última rodada com uma ou mais seleções classificadas.

"Logo após a União Soviética, as pessoas não sabiam se a Ucrânia era uma cidade ou um país", disse Wladimir Klitschko, cujo pai foi um dos militares que responderam ao desastre. "O modo mais fácil de explicar era dizer: 'Nós somos filhos de Chernobyl'. Nós perdemos nosso pai. Chernobyl faz parte da minha vida. Infelizmente é uma parte de muitas vidas."

Os visitantes pagam cerca de US$ 200 para percorrer um raio de 30 quilômetros da zona de exclusão, onde o risco à saúde para visitas breves é considerado mínimo. Eles percorrem o esburacado e coberto de mato Bulevar Lenin de Pripyat. Eles param na praça em frente ao Polissia Hotel, onde podem ver uma cobra enrolada no mato, sapos tomando sol nas pedras em um lago, um pato de brinquedo com rodas abandonado.

Em outros lugares, se forem vigilantes, eles podem ver uma raposa, um veado, um coelho, um javali. Os principais sons são o vento, os pássaros e ausência. Pernilongos voam em nuvens invisíveis.

A piscina coberta da cidade está seca, seu fundo parecendo lamber a poeira e os detritos como uma língua gigante de azulejo. Uma quadra de basquete próxima tem as tabelas de madeira, mas não aros. Algumas das tábuas do piso foram arrancadas, revelando as estruturas do ginásio, como se tivesse sido abandonado à fome.

Em outro ginásio, as paredes descascaram em formas continentais bolorentas, mapas dos expropriados. Na escola Nº3, dois tênis foram abandonados em um corredor perto de pequenas sapatilhas de balé e o traçado quase apagado de um jogo de amarelinha.

Oficialmente, não é permitida a entrada de visitantes na escola em ruínas, onde os livros da biblioteca cobrem um corredor e uma lição de física permanece no quadro negro. Mas os turistas são bem-vindos para um momento Kodak extremo, uma chance de fotografar os sarcófagos de aço e concreto que cobrem o Reator Nº4 a uma distância de três campos de futebol.

Duzentas toneladas de combustível nuclear derretido e escombros estão protegidas ali em uma forma enrugada que parece um pé de elefante. A contaminação persistirá por centenas de anos. Uma nova estrutura de confinamento, em forma de arco, está sendo construída.

Os turistas são informados que provavelmente encontrariam mais radiação no voo para a Ucrânia do que na viagem para Chernobyl.

Os guias carregam detectores de radiação do tamanho de walkie-talkies. Em um dia recente, quando o aparelho começou a bipar perto do reator atingido, indicando níveis elevados de radiação, Orel, o guia, disse: "Não se preocupem, isso é apenas para assustar os turistas".

Mesmo assim, os visitantes precisam parar em dois postos de controle ao partirem e terem o corpo todo verificado por contadores Geiger, aguardando pelo clique tranquilizador antes de poderem voltar para suas minivans.

Ryan Nolan, 31 anos, um planejador municipal vestindo a camisa verde da seleção da Irlanda, veio ver o parque de diversões que deveria ter sido inaugurado em Pripyat cinco dias depois do desastre nuclear. Ele agora é uma zona proibida de carrinhos de bate-bate, um carrossel e roda gigante. Os carros da roda gigante são da mesma cor amarela que os sinais de alerta de radiação.

"É muito estranho", disse Nolan. "Você fica esperando por zumbis saindo da mata."

Stiliyan Petrov, 32 anos, estava distante quando o Reator Nº4 explodiu. Ele era um menino de 6 anos na Bulgária, a mais de 950 quilômetros ao sul. Ele se tornou um astro do futebol, o capitão do Aston Villa da Premier League da Inglaterra.

Em março, Petrov foi diagnosticado com leucemia aguda. O médico da seleção búlgara disse acreditar que a doença é resultado da exposição à radiação de Chernobyl e o fracasso da liderança comunista do país na época em informar os cidadãos sobre o risco.

"Era o final da primavera e a população estava comendo verduras e legumes frescos e outros alimentos radioativos", disse Mihael Iliev, o médico da seleção búlgara que tratou de Petrov por 14 anos, ao jornal "The Sun" de Londres em abril. "Muitas pessoas que eram crianças na época sofreram de câncer por causa disso. Nós as chamamos de crianças de Chernobyl. A maioria nasceu na mesma região de Stiliyan."

As consequências de Chernobyl à saúde não são tão exatas quanto o placar de uma partida de futebol.

Grande parte da precipitação nuclear caiu sobre a Ucrânia e as vizinhas Belarus e Rússia, disseram os cientistas. As estimativas de mortes potenciais pelo acidente nuclear variam demais, de 4 mil a centenas de milhares. Uma investigação precisa se tornou difícil com a dissolução da União Soviética.

Câncer na tireoide é a doença mais predominante entre as vítimas. Estudos não indicaram com consistência um aumento na leucemia nas áreas afetadas, disse Scott Davis, presidente do departamento de epidemiologia da Escola de Saúde Pública da Universidade de Washington. Ele estudou Chernobyl por mais de 20 anos e fez mais de 80 viagens à região.

"Não há como dizer de modo individual se o câncer é provocado por radiação ou não", disse Davis, que também é afiliado do Centro Fred Hutchinson de Pesquisa do Câncer, em Seattle, que tratou vítimas de Chernobyl.

Wladimir Klitschko tinha 10 anos na primavera de 1986 e vivia em um aeroporto militar em Kiev, filho de um coronel da força aérea soviética. Ele se recorda de participar dos treinamentos na escola para o caso dos Estados Unidos lançarem um ataque nuclear: esconder-se nas sombras, correr para o subsolo.

Então ele notou os homens vestindo trajes protetores e os veículos sendo pulverizados com produtos químicos. "Obviamente, algo terrível tinha acontecido", disse Klitschko. "Eu sabia que não eram os americanos dessa vez."

Seu pai, que também se chamava Wladimir, alertou seus filhos para não saírem de casa. Klitschko disse que ele e seus colegas de classe foram evacuados para perto do Mar Negro por quatro meses, levando apenas as roupas que estavam vestindo.

Seu pai, ele disse,voou de helicóptero para Chernobyl nos dias após o desastre, enquanto as equipes de emergência tentavam desesperadamente conter o vazamento de radiação e limpar a catástrofe radioativa. Liquidantes, era como esses trabalhadores eram chamados.

"Desde o início o governo tentou acobertar a verdade e minimizar a situação", disse o pai de Klitschko em um documentário homônimo, lançado em 2011, sobre a carreira de seus filhos. "Foi nos passada a impressão de que não era tão sério. Aqueles que podiam deixar Kiev aproveitaram a oportunidade, mas se você fosse um soldado, você tinha que cumprir seu dever."

Em julho passado, o pai de Klitschko morreu de câncer.

"Foi uma cadeia de tudo, leucemia, linfoma, câncer de estômago", disse Klitschko. "Atingiu os ossos. Basicamente comeu tudo. Os médicos disseram que foi Chernobyl."

Seu pai não era amargo, disse Klitschko. "Ele era feliz por ter vivido mais do que seus amigos."

Um mês antes do desastre, Andriy Shevchenko, na época com 9 anos, se juntou à categoria infantil do poderoso clube Dynamo de Kiev e entrou para escola de esportes. Após o encerramento do ano letivo, ele e seus colegas foram evacuados para perto do Mar de Azov, no sudeste da Ucrânia. Ele também era filho de militar, um mecânico de um regimento de tanques soviético.

"Nós meio que sabíamos o que tinha acontecido", disse Shevchenko, atualmente com 35 anos. "Mas não nos foi dito francamente. Foi mantido em segredo."

Isso parecia evidente um mês após a catástrofe, quando a União Soviética viajou para a Cidade do México para jogar na Copa do Mundo de 1986. Valeri Lobanovsky, um famoso técnico ucraniano que comandava na época a seleção soviética, ficava impaciente quando os repórteres lhe perguntavam sobre Chernobyl, sugerindo que desinformação tinha sido disseminada no Ocidente.

"Eu acho que nosso governo já informou todos os fatos aos repórteres sobre o que realmente aconteceu, após a campanha disseminada pela imprensa internacional", disse Lobanovsky, segundo um relato da agência de notícias "UPI".

Após aquele verão involuntário perto do mar, Shevchenko voltou para Kiev. Ele deixou a escola de esportes e sua carreira no futebol parecia que chegaria ao fim. Seu pai preferia que seu filho seguisse a carreira militar. Mas o jovem treinador de Shevchenko foi até a casa dele e persuadiu seu pai a deixá-lo continuar no Dynamo de Kiev.

Shevchenko se tornou um astro do clube e, posteriormente, do Milan na Itália, onde foi eleito o maior jogador da Europa em 2004. Ele também é o maior artilheiro da seleção ucraniana, com 48 gols.

"É difícil fazer planos quando você tem 9 anos", disse Shevchenko. "Mas ainda bem que o treinador foi até minha casa. Chernobyl teve um papel na minha carreira."

Em 1986, já tinham se passado 14 anos desde a apresentação impressionante de Olga Korbut nas Olimpíadas de Munique de 1972, onde conquistou três medalhas de ouro e colocou um sorriso adolescente no estereótipo austero do comunismo.

"Eu tenho muito medo de comer, medo de viver", disse Korbut, atualmente com 57 anos, em uma entrevista na época.

Ele criou uma fundação e parceria com o Centro Fred Hutchinson de Pesquisa do Câncer em Seattle. Ela disse que gastou seu próprio dinheiro e levou medicamentos para tireoide para Belarus, mas acabou desencorajada porque as autoridades de lá pareciam desinteressadas. O país é governado desde 1994 por um presidente autoritário, Alexander Lukashenko.

"O medicamento precisava ser mantido em um refrigerador, mas eles não encontravam um", disse recentemente Korbut, que atualmente vive em Scottsdale, Arizona. "Eles não se importavam. Lukashenko disse: 'Nós podemos cuidar disso nós mesmos'. Foi muito perturbador."

Apesar de ela e seu filho às vezes enfrentarem dificuldades nos Estados Unidos, Korbut disse que, de um modo estranho, a acolhida pelos americanos significou que Chernobyl mudou a vida dela para melhor. "É algo muito embaraçoso de se dizer", ela disse.

Mesmo assim, acrescentou Korbut, ela continuou furiosa com o fato das autoridades em Belarus não terem informado imediatamente os cidadãos sobre Chernobyl. Ela disse que só soube do desastre uma semana depois.

"Eles só falavam às escondidas", disse Korbut. "As pessoas precisavam saber a verdade para que pudessem proteger umas às outras."

Mesmo agora, 26 anos depois, Korbut disse que suas três irmãs em Belarus se recusam a falar sobre Chernobyl. Talvez elas tenham medo de Lukashenko, ela disse. Mas elas também são pobres, ela disse, e podem ter preocupações mais básicas.

A infame usina nuclear fica logo ao sul da fronteira com Belarus, mas Korbut nunca visitou o local.

"Eu não tenho nenhum desejo de ir lá", ela disse.

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