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Como a mágoa transformou Mourinho de um zagueiro medíocre em treinador top

Carreira de técnico de Mourinho foi motivada por frustração como jogador - Ed Syker/Reuters
Carreira de técnico de Mourinho foi motivada por frustração como jogador Imagem: Ed Syker/Reuters

Luís Aguilar

Especial para o UOL, em Lisboa (POR)

26/11/2015 06h00

Começa com uma rejeição. Uma ameaça. Uma humilhação. Mourinho nasceu e cresceu em Setúbal, vindo de uma família com fortes ligações ao futebol. O seu pai, Félix, foi um goleiro com alguma qualidade, chamado uma vez à seleção portuguesa. Mais tarde, tornou-se treinador e chegou a orientar o seu filho. Em 1982, com 19 anos, Mourinho era simplesmente José: um defesa-central pouco talentoso do Rio Ave. Estava sentado no banco de reservas num jogo frente ao Sporting quando um dos defensores do Rio Ave se lesionou. Félix preparava-se para fazer entrar o seu filho, mas foi informado pelo presidente: se José entrasse, não só nunca mais jogava pelo Rio Ave, como Félix também seria demitido. Pai e filho ficaram a ver a sua equipe perder por 7 a 1 e José decidiu que nunca mais passaria por rebaixamento semelhante. Alimentou-se daquela raiva e canalizou-a para sua formação profissional. 


Depois do incidente ocorrido no Rio Ave, o português ainda jogou futebol por mais algum tempo (Belenenses, Sesimbra, Comércio Indústria) e abandonou aos 24 anos. Mas, pelo meio, já estava a preparar-se para ser treinador de futebol. José começava então a descobrir Mourinho. Licenciou-se em Ciências do Esporte e foi criando as bases para o seu futuro. Pode dizer-se que, naquele jogo com o Rio Ave, começou a morrer o jogador vulgar e a nascer o treinador especial. Um técnico da nova era, que rejeita por completo as interferências do presidente no seu trabalho.

Nenhum dirigente que contrate Mourinho se atreve a dizer-lhe quem deve jogar, quais os jogadores que deve escolher, que reforços devem entrar, que estilo de jogo a equipe precisa de apresentar. Sabe que, se o fizer, ele vai embora no mesmo instante e deixa para trás um presidente sozinho, com a contestação dos jogadores e, especialmente, dos torcedores. Pela sua forma de trabalhar e de se relacionar com o meio que o envolve, o treinador português consegue ser mais amado do que qualquer presidente do clube onde trabalha (tirando na sua última temporada a serviço do Real Madrid, quando as divergências chegaram a um ponto sem retorno com alguns dos principais jogadores merengues).

 
Os torcedores e o vestiário veem-no como um deles. Algo ainda mais admirável tendo em conta o pouco tempo que passa em cada clube. Entrou no Chelsea em 2004 e saiu em 2007, mas os torcedores continuaram a entoar cânticos em sua homenagem até o regresso do treinador especial em 2013. Agora, andando de derrota em derrota, esses mesmos torcedores continuam a entoar cânticos com o seu nome. 
 
Mas o que leva as torcidas a terem esta admiração por Mourinho? Há uma explicação. O português não se limitou a aprender os segredos do futebol. Também construiu um personagem. Criou um anti-herói. Alguém que não leva desaforos para casa. Alguém que diz o que quer. Como quer. Quando quer. Mesmo quando está por baixo. 
 
“Não me demito. Se me despedirem, estarão despedindo o melhor treinador da história do Chelsea”, disse esta temporada depois de perder para o Southampton, naquela que foi a sua quinta derrota nas primeiras oito jornadas da Liga dos Campeões. 
 
É por isto que os torcedores gostam dele. Mourinho não se verga. Nem mesmo nos piores momentos. Passa a imagem de uma figura rock´n´roll num esporte cada vez mais pulverizado por estrelas pop sem tempero, que privilegiam a imagem ao invés do conteúdo. Homens viciados em discursos politicamente corretos. Homens presos em palavras vazias – tantas vezes falsas – e cabeças ocas.
 
Mourinho é a antítese moderna desse futebol fast food, retirado de um universo Pleasantville, onde parecer é mais importante do que ser. Traz a rebeldia do rock para palcos cheios de boys band enfadonhas. Sim, Mourinho é um rockstar. Para o bem e para o mal. E um anti-herói que tantas vezes se transforma em vilão.
 
Escrevo esta crônica pouco depois do lançamento do meu livro Mourinho Rockstar no Brasil, através da editora Grande Área. E lembro uma frase que incluí no livro. Pertence ao espanhol Francisco Alcaide, perito em gestão empresarial, e foi escrita pouco tempo depois da chegada do treinador português ao Real Madrid: “Muitas pessoas perguntam-me o que tem Mourinho que fascina uns e outros, ainda que não o digam. Mourinho está para o futebol como o doutor House para as séries de televisão. A priori são personagens que a lógica diz que deveriam ser repudiados pelo grande público. Parecem ‘cheios de si’, são altivos, provocadores, com uma certa prepotência e presunção e, no entanto, as pessoas gostam ou, pelo menos, para muitos são atraentes ou despertam interesse.”
 
Alcaide salienta ainda que figuras como Mourinho atraem porque “dizem coisas que a maioria das pessoas não se atreve a dizer e transformam-se num exemplo face à nossa covardia”. “Os bons chegam até a ser tontos, porque, apesar das rasteiras que nos pregam a vida e os amigos, reagem sempre bem”, conclui.
 
No livro que agora chega ao Brasil, retratei Mourinho da forma como o vejo. Um rockstar e um anti-herói. Não sei onde vai estar Mourinho daqui a um ano. Nem daqui a um mês. Nem daqui a uma semana. Mas tenho uma certeza: seja onde for, os acordes do seu rock vão continuar sendo ouvidos. Com a polêmica e a estridência do costume. E os shows estarão sempre esgotados. Por aqueles que o amam e que o odeiam. Ele nunca vai permitir que seja de outra forma.
 
* O jornalista Luís Aguilar, colaborador do UOL Esporte, é autor do livro Mourinho Rockstar, biografia do treinador português, lançado pela editora Grande Área