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Brasil estreia em estádio de R$ 1 bi cercado por barracos, ratos e ruínas

Bairro ao lado de estádio e encontro de torcedores da Copa está cheio de entulho, lixo e ratos - Ricardo Senra / BBC News Brasil
Bairro ao lado de estádio e encontro de torcedores da Copa está cheio de entulho, lixo e ratos Imagem: Ricardo Senra / BBC News Brasil

Da BBC News Brasil, em Rostov-on-Don (RUS)

17/06/2018 10h40

Em Rostov-on-Don, onde o Brasil estreia na Copa do Mundo da Rússia, neste domingo, pelo menos dez quadras em ruínas, com barracos de madeira e muito lixo separam o principal ponto de encontro de torcedores da imponente arena Rostov, uma estrutura de vidro e metal de 51 metros, o equivalente a 16 andares, construída especialmente para o evento por 19,8 bilhões de rublos, ou R$ 1 bilhão.

Esta reportagem começa por acaso, quando a BBC News Brasil chega à cidade portuária e, após perceber que não conseguiria almoçar na Fifa Fan Fest - onde as opções se resumem a cachorro-quente, pipoca, hambúrguer, refrigerante e cerveja - e decide buscar um restaurante local.

O mapa mostra que a caminhada até a beira do rio Don, cartão postal da cidade, levaria menos de 15 minutos. Mas, após menos de 100 metros, este repórter percebe que não encontrará restaurantes ou lanchonetes - nem esgoto tratado ou água encanada existem na maioria das casas do local.

Se no cercadinho oficial da Fifa há telas gigantes de led, pufs com gosto duvidoso em formato de bola de futebol, espaços climatizados para proteger convidados do calor de 34 graus e centenas de torcedores acompanhando jogos e shows em telões barulhentos, os quarteirões seguintes são marcados por silêncio e destruição.

Não há esgoto tratado ou água encanada na maioria das casas do local - Ricardo Senra / BBC News Brasil - Ricardo Senra / BBC News Brasil
Não há esgoto tratado ou água encanada na maioria das casas do local
Imagem: Ricardo Senra / BBC News Brasil

Nas ruas praticamente desertas, idosos com as costas curvadas carregam baldes cheios em torneiras enferrujadas que aparecem em algumas esquinas.

Ratos cruzam o asfalto por onde mato e lixo avançam - não há calçadas na maioria das vias.

Pilhas de pontas de cigarro barato, pequenas garrafas de vodca e de pulugar - uma espécie de fermentado milenar conhecido como "vinho de pão" - se acumulam em canteiros, evidenciando o desafio que Rússia enfrenta com o alcoolismo.

Estima-se que 10 litros de álcool puro são consumidos anualmente por habitante na Rússia e três em cada 10 homens morrem por causas ligadas a bebida.

Pilhas de pontas de cigarro barato, pequenas garrafas de vodca se acumulam em canteiros - Ricardo Senra / BBC News Brasil - Ricardo Senra / BBC News Brasil
Pilhas de pontas de cigarro barato, pequenas garrafas de vodca se acumulam em canteiros
Imagem: Ricardo Senra / BBC News Brasil

Antigos prédios soviéticos, onde, em alguns casos, diferentes famílias compartilham o mesmo teto até hoje, convivem com ruínas de antigas chamuscadas, telhados destruídos e entulho.

Se, poucos quarteirões acima, turistas brasileiros e suíços desfilam animados com camisas de times e sacolas de compras, aqui homens e mulheres empurram carrinhos de construção com latas de tinta e tijolos de barro - é fim de semana, mas estes russos estão em jornada dupla tentando reformar casas simples, depois da semana pesada de trabalho em fábricas de construção naval, farinha, produtos agrícolas e comércio.

Na parte turística, há avenidas reconstruídas para a Copa, com praças bem cuidadas e comércio em shoppings de vidro - Ricardo Senra / BBC News Brasil - Ricardo Senra / BBC News Brasil
Imagem: Ricardo Senra / BBC News Brasil

As reformas tentam cobrir marcas de fogo que se espalham por toda parte. Mais tarde a reportagem consegue entender por quê.

'Vizinhança fedida'

Rostov-on-Don fica no sudoeste russo, a 1.100 quilômetros de Moscou, em direção à tensa fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, palco de conflitos militares recentes.

Desde o século 18, o local é um dos mais importantes centros comerciais do sul da Rússia, graças à posição estratégica à beira do rio, ligando o mar de Azov ao Cáucaso - região rica em minérios e petróleo que inclui o sul russo, a Geórgia, a Armênia e Azerbaijão.

Diferente de grandes centros como Moscou e São Petersburgo, grandes cidades internacionais semelhantes às principais capitais ocidentais em termos de infraestrutura, Rostov-on-Don não está acostumada a receber turistas - muito menos estrangeiros.

Se na capital russa não é simples encontrar alguém que fale inglês, em Rostov a tarefa é quase impossível.

Para entender o que se passa no bairro pobre, a reportagem recorre a um aplicativo de tradução no celular.

Em um diálogo silencioso, delicado e triste, em que repórter e moradores se comunicam por mímica, expressões faciais e digitam perguntas e respostas em seus respectivos idiomas, a primeira descoberta sobre o local: o bairro é historicamente conhecido na região como Govnyarka, algo como "vizinhança fedida".

A poucos metros de avenidas reconstruídas para a Copa, com praças bem cuidadas e comércio em shoppings de vidro, as quadras precárias por onde a BBC News caminha correspondem ao centro antigo da cidade, onde estivadores, migrantes pobres, alcoólatras e desempregados convivem em ocupações e casebres com moradores de classe média há pelo menos um século.

Sem registro oficial na prefeitura, moradias não têm saneamento nem infraestrutura - lembram baracos de favelas brasileiras ou ocupações em São Paulo - Ricardo Senra / BBC News Brasil - Ricardo Senra / BBC News Brasil
Imagem: Ricardo Senra / BBC News Brasil

Situadas em uma área central alvo de forte especulação imobiliária, próxima a teatros, com vista para o estádio, boa parte das moradias aqui são ilegais - algo semelhante aos barracos das favelas brasileiras ou a prédios ocupados em cidades como São Paulo.

As moradias não têm registro oficial nas prefeituras, portanto tampouco contam com infraestrutura e serviços públicos como saneamento.

"Só as ruas centrais e importantes estão em ordem", digita uma moradora no aplicativo de traduções. "O distrito antigo continua como sempre esteve. O governo não fez nada aqui para a Copa e estão todos como sempre viveram, apodrecendo."

Uma busca no Google por Govnyarka, termo recém-descoberto, finalmente explica as ruínas e marcas de fogo nas casas de alvenaria que restaram.

Em 2017, em meio às reformas para a Copa do Mundo, à construção do estádio e com o mercado aquecido por investidores de outros estados em busca de lucros com os turistas, um incêndio sem precedentes destruiu parte do bairro central, considerado por muitos um "câncer" no coração turístico da cidade.

Ruínas com marcas de incêndio revelam fogo que assolou o bairro no ano passado - e que pode ter sido criminoso - Ricardo Senra / BBC News Brasil - Ricardo Senra / BBC News Brasil
Imagem: Ricardo Senra / BBC News Brasil


Fogo, ameaças e 8 meses de espera

Em 21 de agosto, mais de 80 casas foram destruídas pelas chamas em uma área de 10 mil metros quadrados. O incêndio durou quase 24 horas e foi controlado por mais de mil bombeiros, apoiados por helicópteros e dois aviões.

Segundo dados oficiais, uma pessoa morreu, quase 60 ficaram feridas e, no total, 730 foram afetadas pelo incêndio - 130 delas crianças com menos de 14 anos.

Mais de 160 casas foram destruídas ou consideradas improprias para moradia.

O caso foi destaque na imprensa russa e internacional. O serviço russo da BBC, na época, conversou com moradores.

Nina Polyanskaya, que morava ali com o marido, perdeu tudo que tinha e contou que entrou na casa em chamas na tentativa de resgatar pelo menos os potes de geleia que guardava no porão.

Bairro em cidade onde Brasil joga contra a Suiça foi afetado por incêndio em 2017; mais de 650 ficaram desabrigados - Ricardo Senra / BBC News Brasil - Ricardo Senra / BBC News Brasil
Imagem: Ricardo Senra / BBC News Brasil

Alexander Petrovich, que voltava com a família de Sochi (onde a seleção brasileira está treinando na Rússia), acabava de comprar a casa completamente destruída.

Segundo a imprensa oficial russa, os moradores disseram na época que, no início do mês, haviam sido ameaçados por homens não identificados a venderem suas casas para a construção de hotéis para a Copa.

Em redes sociais, a população local dizia que os homens prometiam queimar as casas se os moradores não saíssem dali.

Na época do incêndio, o então Ministro de Situações Emergenciais, Valery Sinkov, disse à imprensa local que informações preliminares apontavam que o incêndio poderia ter começado a partir de uma "fonte externa de ignição".

Uma investigação sobre "destruição deliberada ou danos à propriedade cometidos por motivos de vandalismo, por incêndio criminoso, explosão ou outro método geralmente perigoso, ou que tenha resultado na morte de uma pessoa por negligência ou outras consequências graves" foi aberta pelo Ministério Público e pela polícia local para apurar se houve negligência ou um incêndio criminoso na área.

Em janeiro deste ano, no entanto, também de acordo com a imprensa oficial, a polícia não teria encontrado evidências de crime.

No mais recente comentário oficial sobre o caso, em abril, a agência estatal RIA citou o governador da região, Ivor Gustkov, que informou que as investigações ainda não haviam sido completadas, mas que a causa "pode ter sido um incêndio criminoso".

Passados 8 meses do incêndio, os moradores ainda não sabem o que destruiu seus lares.

Indenizações

A Fifa não cita os problemas do bairro vizinho às suas instalações em Rostov-on-Don, mas descreve o local como "uma cidade moderna de um milhão de habitantes em torno do belo rio".

"Rostov-on-Don é uma cidade jovem e fresca, com vias com nomes românticos como 'rua Harmônica', 'rua Criativa' e 'rua da Sorte' (...)O rio Don proporciona à cidade praias serenas e pitorescas e uma cozinha única, com peixes e lagostins".

Na véspera e na manhã do dia de estreia do Brasil na Copa, turistas circulavam em peso pelas áreas no entorno da "vizinhança fedida".

Depois de a reportagem tentar comprar uma garrafa d'água em um restaurante, sem sucesso, uma moradora de classe média alertou.

"Siga naquela direção que você vai encontrar um mercadinho", disse, em inglês. "Não vá para aquele lado. É feio e perigoso. Ninguém anda ali", continuou, apontando para o bairro à sombra da Copa do Mundo.

Em conversa pelo aplicativo de traduções com a BBC News Brasil, uma moradora da região lamentou a situação dos vizinhos.

Bairro está em região com especulação mobiliária; o anúncio nessa casa diz que ela está à venda - Ricardo Senra / BBC News Brasil - Ricardo Senra / BBC News Brasil
Imagem: Ricardo Senra / BBC News Brasil

"A Copa chegou e acreditamos que ela poderia deixar o que eles chamam de legado para a cidade. Mas a única coisa que mudou foram os preços dos aluguéis e do supermercado, que subiram com a chegada dos estrangeiros."

O governo russo prometeu indenizações aos moradores de casas afetadas pelo incêndio, mas boa parte deles continuam tentando reconstruir suas casas.

De Moscou, em conversa por telefone com a reportagem, a repórter do serviço russo da BBC, Elizaveta Fohkt, conta que o governo ofereceu 46,8 mil rublos por metro quadrado de propriedade.

"Por exemplo, uma família de duas pessoas tem direito a uma casa nova de 42 metros quadrados. Isso significa que eles podem esperar 1,9 milhão de rublos como compensação - algo em torno de 30 mil dólares, ou R$ 130 mil", explica Fohkt.

No total, o governo destinou quase 400 milhões de rublos em indenizações e novas moradias (23,6 milhões de reais).

Segundo o chefe da administração local, Vitaly Kushnaryov, 180 famílias já receberam as indenizações.

O maior problema são os moradores de barracos ou ocupações ilegais, que continuam na área em condições precárias e não tiveram direito a indenizações por problemas judiciais.

"E muita gente acredita que merece receber uma indenização maior, porque a terra ali é muito cara e atraente para investidores", continua a repórter da BBC News Rússia.

Brasil

O debate sobre o legado da Copa para os moradores locais lembra o ocorrido no Brasil em 2014.

Em Recife, no Rio de Janeiro e outras cidades-sede da Copa do Mundo de 2014, moradores denunciaram truculência em milhares de desapropriações forçadas para abrir espaço para estádios (muitos deles, em situação de abandono atualmente) e projetos de infraestrutura, como corredores expressos para BRTs (sistema de ônibus rápido) e alargamento de vias.

Somente no Rio de Janeiro, de acordo com cálculos do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas da cidade, mais de 22 mil famílias passaram por remoções ou desapropriações entre 2009 e 2015 - em processos relacionados tanto ao mundial de futebol quanto aos Jogos Olímpicos Rio 2016.