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"Árbitro é mais apaixonado que jogador por futebol", diz autor de manual de arbitragem

Valdívia reclama com árbitro durante partida do Palmeiras contra o Mogi Mirim - Rodrigo Paiva/UOL
Valdívia reclama com árbitro durante partida do Palmeiras contra o Mogi Mirim Imagem: Rodrigo Paiva/UOL

Bruno Doro

Do UOL, em São Paulo

14/04/2012 06h00

“Árbitro de futebol faz isso porque ama o esporte. Entre os jogadores, essa relação está um pouco afastada. Os atletas ganham milhões para jogar, mas a maioria dos juízes tem uma segunda ocupação e a principal fonte de renda não é o esporte. Fazem isso pelo amor”. A frase é de Gustavo Korte, psicólogo esportivo e um dos maiores especialistas em arbitragem no país.

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“ELE LEVANTOU A CAMISA, MOSTROU A ARMA. MAS DEPOIS PEDIU DESCULPA”

  • O trabalho de Gustavo Korte envolve o futebol profissional, mas na várzea ele também seria bem vindo. A reportagem do UOL Esporte acompanhou alguns jogos da Copa Kaiser, principal torneio do futebol amador de São Paulo, presenciou a pressão da torcida à arbitragem e conversou com juízes sobre o “clima do terrão”.

    Histórias de ameaças não faltam. “As pessoas sempre nos elogiam pela coragem. Nós apitamos dentro de favelas, em locais em que a polícia, às vezes, não entra”, conta Elton Correia Primo, de 38 anos, que já fez parte do quadro da Federação e hoje trabalha na Associação dos Árbitros de Campinas. “Uma vez, eu estava apitando um jogo em um lugar assim, olhei para a arquibancada e o torcedor só levantou a camisa, mostrando uma arma. Depois do jogo, pediu desculpas, disse que tinha sido no calor do jogo”.

    Segundo Gustavo, casos como esse, de prestar atenção ao que acontece fora de campo, não são comuns. “Quando eu comecei a trabalhar com arbitragem, fui acompanhar uma partida no Morumbi. Ao entrar em campo, percebi a torcida, o barulho, mas quando o jogo começou, fiquei focado no jogo, a torcida sumiu. Quando o juiz percebe os torcedores, é sinal que ele se desconcentrou e precisa voltar a ficar focado no jogo”.

    O futebol de várzea, aliás, é tratado como etapa de treinamento pelos árbitros em início de carreira. Segundo eles, é uma forma de ter contato com o tipo de pressão comum do futebol, mas em intensidade menor – incluindo reclamações de jogadores, torcedores e dirigentes. “É como uma segunda escola de arbitragem. Você aprende como se comportar. E ainda é um teste muito bom para posicionamento”, completa Joel Nunes de França Filho, de 26 anos, também árbitro da Associação de Campinas.

Ele cuida há três anos da preparação mental dos árbitros da Federação Paulista de Futebol e, nesta semana, lançou o resultado desse trabalho: o livro “Treino Mental – Arbitragem no Futebol. Objetivo: Rendimento e Bem-Estar”. A publicação é um manual com técnicas que foram usadas com sucesso pelo quadro de arbitragem paulista, aumentando concentração, confiança e capacidade de comunicação dos profissionais.

“O grande problema do árbitro é que ele é o responsável por todo o jogo. Se um atleta cometer um erro, a responsabilidade por uma derrota acaba sendo diluída com os seus companheiros. O árbitro não tem essa ajuda. Por isso, precisa ser mentalmente forte para não se abalar quando comete um erro”, analisa Gustavo.

Segundo ele, um dos principais pontos do livro é ajudar os profissionais do apito a entenderem que eles são personagens dentro do espetáculo que é o jogo de futebol. “Errar é humano, faz parte da atividade. O que a gente tenta é despenalizar o erro. Fazer com que ele entenda que o erro é uma oportunidade de aprendizado para que, no próximo lance, ele não caia na mesma armadilha. As técnicas do livro ajudam a criar um ambiente positivo de crescimento”.

Para fazer isso, as dicas são simples. Primeiro, o juiz precisa saber como se comunicar. “E isso não quer dizer usar o português correto em cada instrução. É usar uma linguagem que os outros envolvidos na partida entendam. Ele precisa saber como falar para que os outros aceitem o que está sendo dito”.

O segundo passo é controlar, também, a comunicação não-verbal. “O juiz precisa ter consciência que a postura dele, o som do apito, a forma de acompanhar o jogo, tudo isso envolve a imagem e a mensagem que ele está passando para os jogadores e para a torcida”, continua Gustavo.

Depois entram as técnicas de visualização, que são usadas na preparação antes das partidas, mas também podem servir para momentos críticos dentro de campo. “O livro é montado em formato de cartilha, com páginas em branco e exercícios para que o árbitro preencha, ele mesmo, com as técnicas que funcionam para ele. Com dicas de concentração que ele usa normalmente, visualizações que o ajudam a se manter focado. Ele pode ser consultado no caminho até o estádio e até mesmo durante o jogo, no intervalo, por exemplo”.

Podem parecer afirmações óbvias, mas os resultados que Gustavo mostra são concretos. “A grande dúvida era como avaliar o trabalho. Não adianta ouvir elogios dos juízes. Eu sei que muitos deles gostam das técnicas, alguns inclusive relataram que estão usando em suas vidas fora do futebol. Mas eu precisava de números concretos. E o que eu achei foram as reclamações dos clubes durante o período antes do início do trabalho e depois. Em 2009, foram feitas 22 reclamações sobre decisões da arbitragem que puderam ter influência no jogo, em 202 partidas. Em 2010, esse número baixou para 3. Em 2011, nenhuma reclamação procedia. Acho que isso é um sinal do sucesso”, explica o psicólogo.