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Filme trata como ditadura agiu para boicotar técnico comunista da seleção antes da Copa-70

João Saldanha concede entrevista coletiva na condição de técnico da seleção - Reprodução
João Saldanha concede entrevista coletiva na condição de técnico da seleção Imagem: Reprodução

Bruno Freitas

Do UOL, em São Paulo

05/10/2012 06h00

Lançado em abril passado e com versão em DVD recentemente divulgada, o documentário “João Saldanha” aborda uma das biografias mais ricas ligadas ao futebol brasileiro. Botafoguense apaixonado e comentarista popular, o gaúcho radicado no Rio de Janeiro, militante comunista dos mais engajados, tem descrito no filme o momento em que foi derrubado da seleção brasileira na véspera da Copa de 1970, em um contexto com envolvimento da ditadura militar vigente no país.  

  • Folhapress

    Saldanha com o uniforme da seleção: passagem breve pelo comando do time antes da Copa

O documentário assinado por André Iki Siqueira e Beto Macedo se debruça com detalhes sobre este momento na vida de Saldanha. Depois de classificar com sobras a seleção para o Mundial no México, o treinador contava com uma aclamação popular poucas vezes vista no país. De quebra, era adorado pelo grupo de jogadores, na geração de Pelé e companhia [alguns desses nomes concedem depoimentos ao filme, como Tostão e Gérson].

Como comentarista, Saldanha era tido como o crítico mais duro da seleção após o fiasco na Copa de 1966 na Inglaterra. Acabou escolhido por João Havelange, então presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desportos) como uma forma de cessar este foco de cobrança. No entanto, depois da classificação com louvor para o Mundial do México, o regime militar se deparou com o risco de ter um comunista voltando para o país com a taça de campeão nas mãos.

Paralelamente ao futebol, em que foi campeão carioca na direção do Botafogo em 1958, Saldanha levava uma vida quase clandestina dentro do Partido Comunista. Durante a ditadura, o técnico e comentarista chegou a dirigir a sigla em reuniões escondidas no Rio de Janeiro. Ainda organizou greves e ajudou a orientar uma guerrilha no interior do Paraná. E toda essa rotina não sofreu alterações durante o período com a seleção.

"Não tenho dúvida nenhuma [de que a ditadura agiu para derrubar Saldanha na seleção]. O que aconteceu foi que o Havelange convida o João, maior crítico da seleção naquele momento, achava que ele ia quebrar a cara, que iria calar o crítico. Mas ele começou a ganhar, os estádios começaram a ficar lotados. Imagina o comunista voltar do México com a taça na mão, tendo que levar ela para o [presidente Emílio Garrastazu] Médici ver. A ditadura percebeu isso, sabia que ele tinha pavio curto. Também existia um conflito interno do João, que de alguma forma sabia que estava servindo ao regime. Eles desestabilizaram o João", relata André Iki Siqueira, um dos diretores do documentário e também autor de uma biografia sobre o técnico-comentarista.

  • Reprodução

    Capa do documentário sobre técnico e comentarista Saldanha

Apesar da condição de unanimidade popular, Saldanha foi desestabilizado através de pequenas crises, fomentadas com ajudas de segmentos da imprensa favoráveis ao regime militar, como mostra a versão contada no documentário, através de reproduções de jornais.

Um desses casos foi a versão disseminada de que Saldanha teria barrado Pelé em razão da descoberta de um problema de visão do Rei.

"Esse episódio fez parte do processo para desestabilizar o João, foi um gancho que usaram para isso. Ele nunca iria barrar o Pelé, adorava ele. O Pelé jogou todas com ele", afirma o diretor do documentário.

Neste período, Saldanha tomava remédios fortes para um problema de pulmão, em rotina que acabava agindo para turbinar seu conhecido pavio curto. Em abril de 1970, por exemplo, invadiu o Flamengo armado para ir atrás do então técnico do Flamengo, Yustrich, responsável por críticas pesadas ao trabalho do colega na seleção.

O desfecho da passagem de Saldanha pela seleção aconteceu pouco depois do episódio em que o presidente Médici teria pedido a inclusão do atacante Dadá Maravilha na lista para a Copa. Na oportunidade, o técnico declarou publicamente, sem medo, para o general cuidar de seu ministério, enquanto que o time ele mesmo tomava conta.

"O Tostão comenta no filme, fala que o Saldanha estava cercado por militares dentro da comissão técnica. O Tostão dizia: 'isso não vai dar certo'. O lance do Dario foi apenas uma gota d'água", diz Iki Siqueira.

O último jogo de Saldanha pela seleção foi um empate por 1 a 1 com o Bangu no Rio de Janeiro, em jogo-treino que teve Pelé em campo. O ex-treinador morreria 20 anos depois, na Itália, durante a Copa de 1990, quando atuava como comentarista da extinta TV Manchete.

FOLCORE SALDANHA: "CABELO BLACK POWER PREJUDICA TOQUE DE CABEÇA"

Uma cena do documentário "João Saldanha" exemplifica um pouco do folclore sobre o técnico. Numa gravação de rua para a televisão, o então comentarista argumenta contra a moda dos jogadores com cabelo no estilo "Black Power". Segundo Saldanha, o volume de fios amortecia a bola e prejudicava a finalização a gol. O treinador inclusive pegou um cidadão para demonstrar sua interpretação física, achatando o cabelo do sujeito (na foto acima). "Mas para andar na rua, não tenho nada contra", concluiu.