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Você sabia que a Justiça Desportiva iguala as ofensas a Arouca e Ceni?

Guilherme Costa

Do UOL, em São Paulo

14/03/2014 12h00

Arouca, meio-campista do Santos, foi chamado de “macaco” depois de um jogo contra o Mogi Mirim no Campeonato Paulista de 2014. Rogério Ceni, goleiro do São Paulo, ouviu gritos de “bicha” durante todo o clássico contra o Corinthians. Os dois episódios foram registrados num intervalo de três dias, mas carregam uma distância muito maior do que isso. A despeito de a Justiça Desportiva brasileira equipará-los, a manifestação racista gerou mais comoção (e mais atitudes) do que as ofensas homofóbicas.

A questão é: o esporte brasileiro tolera mais a homofobia do que o racismo? Até que ponto um grito de qualquer natureza pode ser considerado provocativo e quando ele passa a caracterizar uma ofensa?

“Há um desconhecimento sobre o limite da ofensa. Não vou entrar na questão do aspecto legal, mas como uma representação social: brincar que o cara é veado pode, mas ofender a sexualidade dele não pode. Mas quando é uma coisa e quando é outra? Para mim, brincadeira também pode ser uma forma de ofender”, ponderou a psicóloga Katia Rubio, docente da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, que tem 19 livros publicados sobre psicologia do esporte e estudos olímpicos.

A tese de Katia é que essa permissividade do esporte sobre o preconceito sexual é um reflexo do que acontece em outros meios: “Quando você pega um programa de humor de TV aberta, vê que ele fica o tempo todo fazendo bullying com homossexuais e percebe que nada é feito, entende que não se pode esperar algo diferente de 30 ou 40 mil pessoas em um estádio”.

Mauricio Murad, sociólogo cujo principal tema de estudo é a violência no futebol, corrobora a ideia de Katia. “O esporte demonstra o que está na sociedade”, resumiu o professor. “Com mais um detalhe: trata-se de um fenômeno das multidões, e as multidões exacerbam tudo. Se fosse um pequeno grupo, dificilmente eles ofenderiam o Ceni durante o jogo inteiro. A multidão se autoglorifica como o ambiente em que tudo é permitido”, adicionou.

A ofensa racista direcionada a Arouca aconteceu depois do jogo, quando o volante concedia entrevistas, e foi flagrada pela “Rádio ESPN”. No dia seguinte, a TJD-SP (Tribunal de Justiça Desportiva de São Paulo) interditou o estádio Romildo Ferreira, local da partida e casa do Mogi Mirim. O time do interior disse ter identificado o responsável pela manifestação. Imagens do agressor foram reunidas pela equipe em um DVD e encaminhadas à polícia.

Ainda assim, o caso será avaliado pelo TJD-SP. O Mogi Mirim será julgado com base no artigo 243-G do CBJD (Código Brasileiro de Justiça Desportiva), que fala em ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante relacionado a preconceito de origem étnica, de raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.

A pena prevista no dispositivo é de suspensão de cinco a dez partidas para atletas. Em outros casos, o artigo fala em suspensão de 120 a 360 dias ou multa de R$ 100 a R$ 100 mil.

O mesmo artigo podia ter sido usado no clássico entre Corinthians e São Paulo, disputado no Pacaembu. Em todo o jogo, a torcida alvinegra entoou o coro “bicha” sempre que o goleiro Rogério Ceni pegou na bola.

“Para o esporte, ambos os atos podem ser punidos da mesma forma. A interpretação da Justiça Desportiva é que a palavra sexo, nesse caso, serve para preconceito de gênero ou de orientação sexual. Portanto, é algo que está no mesmo dispositivo do preconceito racial”, explicou o advogado Gustavo Souza, especializado em direito desportivo.

Um exemplo disso aconteceu em abril de 2011, em Contagem (MG), num jogo válido pelas semifinais da Superliga masculina de vôlei. O central Michael, do Vôlei Futuro, foi alvo de manifestações homofóbicas da torcida do Cruzeiro. O time mineiro recebeu multa de R$ 50 mil.

“O problema é que as punições previstas nesse artigo não são coisas que o torcedor sente na pele. A multa, por exemplo, sai do cofre do clube. É preciso que se adote punições individuais quando for possível, mas medidas educativas quando falarmos de casos coletivos”, disse Gustavo Souza.

O advogado citou como modelo o que aconteceu no Campeonato Brasileiro durante a década passada. Objetos atirados nos campos geravam punições severas aos clubes, a menos que o responsável fosse identificado e entregue à polícia. Isso gerou uma patrulha feita pelo próprio público.

“Há um caso de um jogo do Palmeiras na Copa Libertadores. Um torcedor foi jogar um rádio na direção do árbitro, e outro gritou para ele não jogar. Ele respondeu: ‘Calma, aqui pode. O jogo é de Libertadores’. Olha como esse tipo de medida educa”, relatou Souza.

Racismo fora do Brasil

A punição, contudo, é apenas parte da discussão. Pesquisa realizada em 2013 pelo instituto YouGov é um exemplo do quanto o racismo é um problema disseminado. O levantamento interpelou pessoas de Inglaterra, Escócia, França, Alemanha, Espanha, Itália e Holanda sobre a incidência desse tipo de prática nas ligas nacionais de futebol. Os espanhóis foram os mais comedidos: para 73% deles, isso existe, sim. Na Itália, 92% dos fãs admitiram que ofensas relacionadas à cor da pele fazem parte do cotidiano.

As manifestações racistas no futebol europeu pululam em frequência que justifica essa percepção popular. Em 2014, por exemplo, o jogador Andy Cole, do Manchester City, ouviu insultos racistas da torcida do Atlético de Madri. O caso do atacante francês Nicolas Anelka, do West Bromwich, foi ainda mais emblemático: ele foi suspenso por cinco jogos e recebeu multa de 80 mil libras (R$ 310 mil) por ter comemorado um gol com um gesto associado ao antissemitismo.

Racismo no Brasil recente

Os exemplos do futebol brasileiro também são numerosos. Em 2006, por exemplo, o zagueiro Antonio Carlos, então no Juventude, pegou 120 dias de suspensão após ter esfregado os dedos no braço quando se dirigia ao volante Jeovânio, do Grêmio, em partida do Campeonato Gaúcho.

Outro caso aconteceu na Copa Libertadores de 2005, quando o atacante Grafite, do São Paulo, acusou o zagueiro Leandro Desábato, do Quilmes (Argentina), de racismo. O argentino saiu do Morumbi diretamente para a prisão e ficou detido por dois dias.

Em 2009, o atacante argentino Maxi López, que defendia o Grêmio, chamou o volante cruzeirense Elicarlos de macaco. Não houve punição para o caso.

O zagueiro Danilo, do Palmeiras, também fez ofensas racistas ao zagueiro Manoel, do Atlético-PR. O defensor foi suspenso por 11 jogos no Campeonato Brasileiro de 2010. Em 2013, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) negou habeas corpus ao atleta, que também teve de pagar uma multa de R$ 350 mil.

Em 2014, porém, o número de casos públicos disparou. O volante Tinga, do Cruzeiro, teve de ouvir sons que emulavam um macaco em um jogo contra o Real Garcilaso, do Peru, pela Copa Libertadores. Arouca foi ofendido em Mogi Mirim. E o árbitro Márcio Chagas da Silva relatou um episódio ainda mais forte em partida do Campeonato Gaúcho.

Depois do jogo entre Esportivo e Veranópolis, em Bento Gonçalves, Chagas da Silva encontrou o carro depredado. Além disso, achou bananas espalhadas no local. O Esportivo perdeu cinco mandos de campo e recebeu multa de R$ 30 mil.

“Eu participei de um debate com ele na [emissora de TV fechada] Globonews. Ele falou que esse foi um caso extremo, mas que as ofensas racistas são comuns. O pai dele já passava por isso, e o filho dele, depois de toda a repercussão, perguntou se também vai sofrer com o mesmo assunto. Foi uma coisa muito intensa”, avaliou Mauricio Murad.

“O pior problema do Brasil é a impunidade. É como se a intolerância estivesse banalizada, ou pior, naturalizada. Banalizada é quando acontece muito, mas naturalizada é quando as pessoas acham normal”, completou o sociólogo.

E a questão do homossexual?

Ofensas racistas ainda aparecem em grande quantidade no esporte, mas esse é um assunto debatido com mais frequência. A questão do homossexual, por outro lado, ainda é um tabu no segmento.

“Até por uma questão histórica, por sermos um país de passado escravocrata, o racismo tem um combate muito forte. A homofobia é algo mais recente. A aceitação da liberdade sexual começou a surgir na década de 1960. Por isso, acabamos tratando os dois temas de forma um pouco diferente”, explicou o advogado Gustavo Souza.

Racismo é considerado crime no Brasil desde a Constituição promulgada em 1988. A homofobia ainda tem um tratamento diferente. “Aqui em Minas Gerais há uma lei que pune com multa os estabelecimentos que têm esse tipo de conduta, mas não é um crime”, completou o jurista.

Há exemplos recentes que mostram o quanto esse tema precisa ser debatido. Foi assim na Alemanha, onde a torcida do St. Pauli, time da segunda divisão, levou a um jogo uma série de cartazes om apologia ao casamento gay e à isonomia no tratamento de pessoas com diferentes opções.

A torcida do St. Pauli levou uma série de cartazes coloridos. Um deles tinha uma mensagem que diz muito sobre o assunto: “Futebol é tudo. Até gay”.

A manifestação contra homofobia da torcida do St. Pauli aconteceu no primeiro semestre de 2013, dias depois de o meia Robbie Rogers, do Los Angeles Galaxy, ter admitido publicamente que é homossexual. Essa confissão motivou outra atitude significativa: Landon Donovan, craque do time, colocou no mural da equipe uma mensagem convocando todos os atletas para um encontro depois de uma partida.

“Obrigado por ter me incluído”, respondeu Rogers depois, em mensagem publicada na rede social Twitter.

O avanço nas discussões sobre homossexuais no futebol contrasta com a cultura permissiva que ainda domina os estádios. Os gritos direcionados a Rogério Ceni são um exemplo disso.

“Do ponto de vista psicológico, a ira e o descontentamento se manifestam contra o que é minoria. Todo mundo sabe que o Rogério Ceni é heterossexual, mas como eu faço para instigar nele algum tipo de raiva? Eu tento transformá-lo em algo diferente de mim”, explicou Katia Rubio.

A opção sexual, na verdade, ainda é um tabu muito maior do que o exemplo do clássico paulista faz parecer. Em 2009, um treino do Figueirense serviu como demonstração disso. Jogadores elegeram o pior em campo na atividade anterior, e ele precisou trabalhar com um vestido rosa sobre o uniforme.

“Na semana seguinte, os jogadores fizeram uma brincadeira similar. Um deles teve de disputar o rachão de capacete, mas isso não repercutiu”, lembrou Roberto Fernandes, que era técnico da equipe catarinense.

O volante Jairo, que teve de usar o vestido rosa no treino do Figueirense, não é homossexual. Ainda assim, a roupa foi usada como forma de transformar o afeminado em “castigo”.

“Foi pura gozação. O Jairo e o Roger, autor da brincadeira, eram parceiros de quarto. Um fez uma sacanagem com o outro. Se fosse algo da minha parte, como eu defendo sempre um time de guerreiros, faria o cara treinar de armadura”, completou Fernandes.

Outros técnicos do futebol brasileiro também já usaram castigos semelhantes, vinculados à questão sexual. “A gente passa por uma crise de valores tão grande que nem essas coisas mais básicas conseguem escapar”, sentenciou Katia Rubio.

Rogério Ceni não comentou as ofensas recebidas no clássico paulista. O Corinthians e a torcida alvinegra não foram denunciados, e o episódio não vai gerar qualquer consequência. Mas será que não houve mesmo algo a ser punido?