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O homem que morreu de futebol: os perigos do esporte para o cérebro

Jeff Astle, ídolo do West Bromwich. Médicos disseram que ele morreu pelos 20 anos de cabeçadas na bola - AP Photo/PA
Jeff Astle, ídolo do West Bromwich. Médicos disseram que ele morreu pelos 20 anos de cabeçadas na bola Imagem: AP Photo/PA

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

07/04/2014 12h00

A viúva de Jeff Astle tem certeza, 12 anos depois, que foi o futebol que levou a vida e a lucidez do atacante do West Bromwich, que passara quase a totalidade de seus 59 anos dando cabeçadas em bolas de couro muito mais pesadas do que as de hoje.

Ele tinha sido um dos jogadores mais importantes da história do clube. Ele tinha entrado em campo mais de 300 vezes. E tinha feito quase 200 gols. Ele tinha feito o gol, o da final da Copa da Liga Inglesa de 68. Ele havia chegado à seleção. E tinha sido chamado de “The King” pela torcida.

Um pouco antes de morrer, diagnosticado com um quadro de demência sobre o qual haveria “quase nada a se fazer” de acordo com os médicos, Astle olhava as fotos daquele jogo com indiferença.

“Você se lembra dessa partida, Jeff?”, perguntava Lorraine, sua mulher.

“Não”, ele respondia.

“É você fazendo um gol na final da Copa”

“Sou eu?”

Ele não lembrava que time havia defendido durante toda a vida. E nem que tinha sido um jogador profissional. Ele não sabia o nome dos netos. Ele só lembrava do rosto de Lorraine.

Quando ele morreu, em janeiro de 2002, uma comissão médica da federação inglesa fez um exame em seu cérebro e concluiu que ele havia sido vítima de uma "doença ocupacional", o tipo de enfermidade que afeta trabalhadores em decorrência do exercício de seu trabalho.

Em outras palavras, a demência do Rei era um resultado do impacto constante de bolas de futebol contra a cabeça dele.

A família tentou uma indenização, mas não conseguiu. A federação disse que mudaria o futebol, mas nada foi feito.

E a história alimentou uma discussão de algumas décadas que antes era restrita à academia e alguns círculos mais alarmistas: o futebol causa demência? O futebol mata?

DEMÊNCIA PUGILÍSTICA

Astle é citado em um estudo publicado no Natal do ano passado sobre os malefícios da prática de esportes para a saúde do indivíduo. Uma de suas autoras é a americana Ann McKee, pesquisadora da Universidade de Boston e conhecida no país por manter um banco de centenas de cérebros de esportistas.

Nas últimas décadas, os estudos de McKee já tinham demonstrado a relação entre traumas cranianos no futebol americano e o aparecimento de uma doença que já foi conhecida como “demência pugilística”.

Como esse nome indica, a patologia já não era novidade no mundo dos esportes desde a década de 1920 quando foi diagnosticada em lutadores de boxe. Mais tarde, a doença foi encontrada também em praticantes de outras lutas, no hóquei, no rúgbi e no automobilismo.

Mas no Natal de 2013, McKee publicou o primeiro caso comprovado da demência pugilística em um jogador de “soccer”, que morreu com 29 anos, e cabeceava bolas desde os cinco.

Esse jogador, Patrick Grange, se queixava de dificuldades motoras, fraqueza e fadiga nas extremidades do corpo e nas mãos. 

Quando McKee fatiou seu cérebro em laboratório, encontrou o vazamento de uma proteína chamada tau, um dos sinais que os cientistas procuram para detectar a doença.

Essa proteína normalmente fica presa em uma parte dos neurônios, mas até pequenos impactos na caixa craniana podem gerar concussões e fazer a proteína tau se desprender e se acumular em lugares onde ela não deveria estar.

Quando isso acontece, a proteína deixa de participar do transporte normal de informações no cérebro, o que afeta o funcionamento neurológico.

“As causas de concussões no futebol”, avalia ela no resumo do estudo, “incluem o cabeceio, usar a cabeça para fazer avançar ou redirecionar a bola – uma característica única do esporte–, e colisões com outros jogadores, as traves ou o chão.”

A demência pugilistica tem um nome muito mais complicado hoje: encefalopatia traumática crônica (ETC). Como o jeito mais comum de diagnosticá-la é após a morte do paciente, cientistas consideram que muitos atletas e ex-atletas com ETC podem estar sendo diagnosticados com outras doenças, como Alzheimer, cujos sintomas são parecidos.

Os sintomas da ETC: alterações no humor, irritabilidade, depressão (que pode levar ao suicídio), amnésia temporária ou permanente e problemas motores, como dificuldades de manejar objetos, por exemplo.

O neurologista Renato Anghinah já atendeu pugilistas, pilotos e outros esportistas com ETC em sua clínica em São Paulo. Pergunto se a ocorrência da doença pode ser grande no futebol, em que os impactos na cabeça parecem ser menos frequentes do que no boxe, por exemplo.

“São muito mais frequentes do que você imagina”, ele responde. “O futebol hoje é muito mais rápido do que era antes, os jogadores são mais fortes, as divididas mais violentas e os choques entre cabeças tendem a ser maiores.”

Aconteceu em uma partida recente da Libertadores da América. Um jogador bateu forte a cabeça e teve perda temporária de consciência. Na beira do gramado, foi avaliado rapidamente pelo médico do time, afirmou que estava bem, recebeu um ok e voltou a campo.

Dez minutos depois, o árbitro da partida balançava os braços para o banco de reservas em direção ao médico. Ele estava preocupado, achava melhor aquele jogador ser substituído.

Aquele jogador, dizia o juiz, tinha acabado de lhe perguntar quem estava jogando, qual era o time dele, quanto estava o jogo e se faltava muito para acabar.

Ele foi substituído a pedido do médico por precaução, mas o técnico ainda tentou resistir argumentando que seu atleta estava ótimo — ele realmente parecia bem.

O grande problema em tratar concussões no esporte é que o estrago feito por um choque menor passa despercebido tanto em um exame clínico quando em um exame de imagem. Mas ele está lá, silencioso, discreto.

O jogador volta a campo, sofre outro impacto, e o acúmulo de danos pode até não ter uma consequência imediata, mas cobrará seu preço no futuro.

“Nós temos que fazer um trabalho de conscientização com quem está envolvido com o futebol no sentido de mostrar que a vida do atleta não acaba aos 40 anos quando ele encerra a carreira”, afirma o neurologista Jorge Pagura, chefe de um grupo de trabalho criado no ano passado pela Federação Paulista de Futebol que tem como um dos principais objetivos prevenir danos ao cérebro dos jogadores.

Esse grupo de trabalho, formado por médicos de clubes e especialistas independentes, pretende propor algumas mudanças nas regras do futebol que o tornariam mais seguro à cabeça de quem o pratica.

Uma delas, talvez a mais difícil de implantar, é a criação da substituição temporária. Pagura explica que é possível verificar ainda em campo (com exames baratos e disponíveis no Brasil) se um atleta vítima de concussão deve ou não ser substituído.

Mas isso leva tempo (mais do que “cinco ou seis minutos"), durante o qual o técnico deveria ser autorizado a substituir temporariamente o atleta com suspeita de lesão cerebral séria.

CAPACETE

Seu colega José Sanchez, que coordena a equipe de saúde do São Paulo Futebol Clube, diz que não seria contrário a outras medidas mais simples de aplicar, como a adoção de capacetes pelos atletas cujas cabeças sejam mais expostas a impactos, embora ele também considere que é preciso estudar mais profundamente a questão antes de fazer uma recomendação dessa.

O debate sobre o uso de capacetes no futebol não é exatamente novo, já que nos EUA já se discute o assunto desde ao menos a década de 1990.

Há alguns estudos que recomendam o capacete e outros que o acusam de submeter os atletas a ainda mais riscos porque aumentariam a sensação de invulnerabilidade e, consequentemente, a violência dos choques.

Em um livro publicado em 2010, o neurologista Frank Webbe chegou a aconselhar pais e mães a proibirem seu filho de cabecear a bola em um dos seguintes casos: se tiver menos de 13 anos, se sua cabeça for proporcionalmente maior que o corpo, se tiver histórico de trauma craniano ou dificuldades de aprendizado e de manter a atenção.

A CABEÇA DE BELLINI

Mas no que se refere ao risco de cabeçadas na bola levarem, por si sós, a graves doenças neurológicas não há provas conclusivas (nem para um lado, nem para o outro), e os cientistas envolvidos afirmam que é preciso estudar mais para um veredito definitivo.

Com o que todos os especialistas ouvidos por esta reportagem concordam é que os árbitros deveriam endurecer a punição para quem atinge deliberadamente ou por imprudência a cabeça de um adversário.

“Na nossa cultura futebolística”, afirma o neurologista Ricardo Nitrini, “mesmo uma entrada com força desproporcional é punida pelos árbitros. Mas vejo que não existe a preocupação da arbitragem de punir com muito rigor as entradas violentas em que há trauma de crânio. Quando o jogador nitidamente projeta-se sobre o espaço do outro e ocorre o choque entre as cabeças ou quando um jogador atinge o crânio do outro com cotovelada, a punição deveria ser a expulsão. Acho que para isto não deveríamos esperar por mais provas.”

Nitrini, que é professor titular do departamento de neurologia da faculdade de medicina da USP, entrou nas páginas esportivas dos jornais há algumas semanas quando o campeão mundial Bellini morreu e sua família decidiu doar o cérebro para pesquisa.

É a equipe de Nitrini quem vai analisá-lo para saber se o capitão da seleção brasileira de 1958 tinha Alzheimer, como fora pré-diagnosticado, ou ETC, a doença causada pelo acúmulo de impactos na cabeça. Bellini dava cabeçadas em uma época em que as bolas eram de couro e muito mais pesadas do que hoje.

De acordo com os resultados desse estudo, que devem ser publicados no final do ano, poderemos ter mais pistas para entender se o jogador que imortalizou o gesto de erguer uma Copa do Mundo sobre a cabeça também sofreu no fim da vida consequências de suas aventuras no campo de futebol.

Os médicos preveem que muita coisa pode mudar no esporte nesse caso. “Quando você individualiza a questão”, afirma Pagura, “quando uma pessoa importante sofre com uma doença desconhecida, fica mais fácil convencer as instituições a se prevenirem contra ela.”