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No Grêmio, Felipão já foi o futuro. E isso ainda afeta o futebol brasileiro

Guilherme Costa

Do UOL, em São Paulo

30/07/2014 10h00

“Onde não estamos é que estamos bem. Já não estamos no passado, e então ele nos parece belíssimo”. O texto atribuído ao russo Anton Tchekhov tem tudo a ver com o atual momento do Grêmio, que pela segunda vez em pouco mais de um ano recorreu a um ídolo para forjar um técnico. Após ter apostado em Renato Gaúcho, um dos maiores jogadores da história do clube, que foi treinador tricolor até dezembro de 2013, a diretoria fechou nesta semana com Luiz Felipe Scolari. Comandante vitorioso na equipe durante a década de 1990, ele fará nesta quarta-feira (30) o primeiro treino no retorno. A atividade será aberta ao público e oferecerá uma medida inicial do quanto as marcas de Felipão são indeléveis. Em campo, isso é muito mais claro: para o bem e para o mal, Scolari mudou o futebol brasileiro – ou pelo menos a percepção que se tem dele.

Zagueiro modesto de times como Caxias, Juventude, Novo Hamburgo e CSA, Scolari começou a carreira de treinador no início da década de 1980. Perambulou por times do Brasil e do exterior e teve até uma passagem apagada pelo Grêmio em 1987 (ano em que venceu um Campeonato Gaúcho). Nem o título da Copa do Brasil de 1991, conquistado com o Criciúma, foi suficiente para consolidá-lo entre os principais técnicos do país.

A situação só mudou radicalmente a partir de 1993, quando Scolari foi contratado pelo Grêmio. A segunda passagem dele pelo time tricolor foi até 1996 e deixou seis troféus (Copa do Brasil de 1994, Campeonato Gaúcho de 1995 e 1996, Copa Libertadores de 1995, Recopa de 1996 e Campeonato Brasileiro de 1996). Mas deixou marcas que vão muito além.

“Foi criado algo que os times do Sul só jogavam na força e na garra, mas não era isso. Nós atacávamos e defendíamos como todos os outros, mas tínhamos um poder de marcação maior. Depois daquele time do Felipe, todo mundo começou a diminuir espaços. Nós tínhamos essa fama de jogar na retranca porque encurtávamos os espaços, mas times da Europa também faziam isso. Aí ninguém chamava de retranca. Diziam que éramos retranqueiros, mas depois todo mundo começou a jogar igual”, avaliou o ex-volante Dinho, um dos líderes do Grêmio de Scolari.

Em âmbito tático, o Grêmio de Scolari fazia na época o que ainda hoje a maioria dos times mundiais persegue: era uma equipe compacta, que jogava em uma curta faixa do campo e que oferecia pouco tempo para o adversário pensar.

“A gente ganhava quase tudo, mas diziam que era um time retranqueiro. Depois, todo mundo começou a fazer igual. Foi um espelho para outros times mudarem o estilo de jogo, e aquele Grêmio influencia até hoje. O futebol exige muita marcação. É preciso ter técnica, mas a marcação é fundamental”, opinou Dinho.

Só que o aspecto tático não foi o único marcante no Grêmio de Scolari. Naquele período, o time que ele havia montado era a antítese do Palmeiras de Vanderlei Luxemburgo. Turbinada por recursos oriundos da Parmalat, a equipe alviverde tinha craques como Edmundo, Edilson, Evair e Roberto Carlos. Também tinha uma proposta ofensiva, de toque de bola e prioridade ao ataque.

O Grêmio de Scolari não era como o Palmeiras de Luxemburgo. Tampouco como o São Paulo de Telê Santana, outro time marcante no futebol brasileiro do início dos anos 1990.

No entanto, o Grêmio também não era moldado na mesma forma da seleção brasileira que conquistou a Copa de 1994. O time de Carlos Alberto Parreira tinha padrão europeu (linhas bem postadas, transição em velocidade e definição de lances em espaços curtos). Luxemburgo e Telê eram mais a essência do futebol clássico que o país idolatrava. Scolari criou uma equipe que não se aproximava de nada disso. Nem europeu, nem brasileiro, o time gaúcho era copeiro como os grandes sul-americanos.

E essa é outra marca que o Grêmio de Scolari deixou para o futebol brasileiro. É possível ser alma antes de técnica ou tática. É possível ter o tal espírito copeiro que sobrava naquela equipe. “O Felipe monta muito bem os times dele. É uma característica que não é igual aos times do Telê ou do Luxemburgo, que são considerados ‘técnicos’, mas ele tem o perfil correto para trabalhar aqui”, finalizou Dinho.

O Grêmio passional de Scolari foi o auge de uma década extremamente vitoriosa para o clube. Hoje, a história é bem diferente: a equipe tricolor não conquista um título nacional de expressão desde a Copa do Brasil de 2011, período agravado por uma série de vitórias do Internacional.

O próprio Scolari também mudou muito. Depois do Grêmio, teve outro período vitorioso no Palmeiras. Montou a seleção que foi campeã mundial em 2002. Passou anos longe do Brasil e voltou em 2010 para dirigir novamente o Palmeiras. Ganhou a Copa do Brasil em 2012, mas fez parte da campanha que rebaixou o clube alviverde à segunda divisão do Campeonato Brasileiro no mesmo ano.

Após ter deixado o Palmeiras, Scolari voltou à seleção brasileira. Conquistou a Copa das Confederações de 2013 e chegou às semifinais da Copa deste ano, mas perdeu por 7 a 1 para a Alemanha. O resultado foi o pior da história da equipe canarinho.

Nas últimas passagens, Scolari conseguiu abalar a idolatria que havia construído em Palmeiras e seleção brasileira. No Grêmio, reencontrará Fábio Koff, que era presidente do clube na década de 1990, voltou ao cargo em 2012 e tem mandato até o fim do ano.

Scolari será o quarto treinador em 19 meses da nova gestão Koff (com ele, o time já teve Vanderlei Luxemburgo, Renato Gaúcho e Enderson Moreira, demitido neste ano). No caso dele, a aposta no passado não tem a ver apenas com a imagem que ele deixou. Assim como o técnico, o que o Grêmio quer é retomar o espírito.

“Passado é o futuro, mas usado”, escreveu o brasileiro Millôr Fernandes. O que o Grêmio tentará provar a partir desta quarta é que é possível reviver algo que tem a ver com toda a conjuntura. Scolari montou na década de 1990 um time adequado aos jogadores que tinha, aos elencos adversários e até ao futebol praticado no país.

Naquela época, a compactação, a alma sul-americana e até a criação de um grupo de jogadores de confiança fizeram de Scolari um treinador que usava métodos à frente do tempo. A goleada para a Alemanha, sofrida com a seleção brasileira neste ano, sepultou qualquer resquício disso. Felipão pode ter sido o futuro, mas hoje tenta provar que não ficou no passado. Até isso o trabalho dele no Grêmio precisará derrubar.