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Conflito está destruindo até o futebol na Palestina, diz capitão da seleção

Peto Kettlun, capitão da seleção palestina de futebol, critica influência de Israel - Acervo pessoal / Peto Kettlun
Peto Kettlun, capitão da seleção palestina de futebol, critica influência de Israel Imagem: Acervo pessoal / Peto Kettlun

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

31/07/2014 06h00

O meio-campista Peto Kettlun, de 33 anos, nasceu no Chile, é neto de palestinos e capitão da seleção do país, que ele defende desde 2002. No dia 30 de maio deste ano, antes da série de ataques israelenses que já mataram mais de mil pessoas na Faixa de Gaza, a seleção palestina conseguiu o maior feito de sua história: o título da AFC Challenge Cup, um torneio continental entre seleções de menor escalão. No ano que vem, eles disputarão pela primeira vez a Copa da Ásia, na Austrália.

Mas a alegria conquistada nos campos não durou muito tempo. No mês seguinte, Kettlun estava no Brasil para relatar as dificuldades impostas pelas autoridades israelenses para o desenvolvimento do futebol na Palestina. Jogadores têm sido presos ou tido seus vistos de saída negados por Israel, que os acusa de usarem a seleção para manter ligações com terroristas.

Na série de ataques das últimas semanas, alguns esportistas do país morreram ou tiveram a casa destruída em Gaza. Kettlun, que vive em Ramallah com a família, está relativamente distante do conflito, mas como todos os palestinos conserva o luto pela morte de inocentes.

Em entrevista por telefone ao UOL Esporte, ele conta como as ações do Estado israelense vêm impedindo o esporte no país árabe de se desenvolver: “Israel não quer reconhecer a Palestina como um Estado e trata de negar o direito de existência do esporte aqui.”

Veja outros trechos da entrevista:

Qual é a situação dos jogadores da seleção palestina hoje?

Faleceu um atleta da seleção sub-17 e um treinador que não era da seleção [Ahed Zaquot], mas era muito querido por todos. E está desabrigado um ex-capitão histórico da seleção, Saeb Jendeya, que hoje é assistente técnico da equipe adulta. Tem um jogador que teve 90% da casa destruída. E tem muitos outros cujas famílias estão em Gaza e tiveram que abandonar suas casas por medo dos ataques.

Quais são as principais dificuldades para praticar futebol aí?

Antes de começar essa série de ataques atual, era a ocupação. Nós temos duas ligas, uma em Gaza e outra na Cisjordânia. Não se pode fazer um campeonato unificado por causa da proibição de traslado entre os dois territórios. Israel não permite que haja nenhum tipo de atividade social nem desportiva que una as duas partes.

Outra dificuldade mais estrutural é que Israel não permite que se construam equipamentos esportivos, como estádios, alegando que os locais escolhidos são territórios em disputa. Existe uma zona dentro do território palestino que é controlada pelo governo israelense, e ele não dá autorização para construir não apenas estádios, mas também hospitais, escolas...

Outra dificuldade é que é o governo israelense quem decide quem vai sair para disputar partidas ou não. Quando temos que jogar fora, muitos companheiros são impedidos de sair e, por causa disso, precisamos improvisar para montar um time em cima da hora.

Israel argumenta que os esportistas que têm o visto negado têm ligações com o Hamas ou com a Jihad Islâmica, que são grupos que eles consideram terroristas. Isso é verdade?

Não em todos os casos. Há um companheiro que jogou comigo na seleção, se chama Sameh Murabah, tem 23, 24 anos, é muito bom jogador e boa pessoa. Em maio, a seleção vinha do Catar depois de um treino, e ele foi levado a interrogatório pela polícia de Israel e preso no que eles chamam de “prisão administrativa”. É um novo termo usado para prender pessoas sem acusação, sem motivo, sem direito de defesa e por um período de três meses. E ele até hoje está na cadeia, ninguém sabe por quê.

Israel fala muito do Hamas, mas eu te asseguro que nem os rapazes mortos em Gaza nem os jogadores presos, nem 80% da seleção palestina tem nada a ver com o Hamas. Baseados nesses argumentos, eles continuam fazendo o que fazem e prejudicando todos, tenham ou não tenham ligação com o Hamas.

Alguns analistas esportivos dizem que para Israel é importante impedir o crescimento do esporte na Palestina porque o esporte seria uma via para sedimentar a identidade nacional palestina. Dizem que o ataque a uma seleção nacional é um ataque também à própria ideia de nação. Você concorda com isso?

Concordo. Mas também há uma intenção discriminatória e opressora. Desde que a Palestina se tornou um membro da Fifa [em 1998], Israel vem tentando boicotar sua atuação esportiva. A Fifa vê a Palestina como um membro qualquer, como o Brasil, como Israel, e é um dos poucos organismos internacionais que encara o país assim. Já que Israel não quer reconhecer a Palestina como um Estado, trata de negar o direito de existência do esporte aqui.

Por que vocês tentam a exclusão da seleção israelense da Fifa? Me parece que o problema de vocês é com a polícia e as forças armadas e não com a associação de futebol, nem com a seleção israelense em si.

Nós não queremos que Israel seja expulso da Fifa, mas sim fazer valer nossos direitos como membros da Fifa. A Fifa tem um estatuto, e a autoridade israelense desrespeita muitos pontos importantíssimos desse regulamento.

Por exemplo?

Um dos temas da Copa no Brasil foi o combate ao racismo. Boa parte do que os israelenses fazem com os palestinos é motivado por um racismo contundente, opressor. Nós, como seleção nacional, temos que lutar contra isso. E também lutamos pela liberdade de ir e vir, e pela liberdade de desenvolvimento, que está ligada à possibilidade de se movimentar.

E tem um ponto específico do estatuto da Fifa que diz que nenhuma federação ou governo pode impedir o desenvolvimento de uma federação de outro país. Recentemente a associação de futebol de Israel soltou um documento sugerindo que a federação palestina fosse subordinada à israelense. Seria um insulto à autonomia do país, e a Palestina, logicamente não aceitou.

A princípio não gostaríamos nem que a Fifa impusesse nenhuma sanção ao futebol israelense, desde que o nosso direito de existir e nos desenvolver fosse respeitado. Mas é claro que, se só uma sanção garanta esse direito, nos colocaríamos a favor.    

O que vocês ouviram da Fifa em junho quando sua situação foi apresentada no congresso técnico em São Paulo?

Antes já havia sido feito um acordo entre Fifa e as federações dos países, mas os israelenses alegavam que não podiam fazer nada para atender as demandas porque não têm autonomia para suplantar decisões tomadas pelo governo de Israel [no que se refere às limitações de trânsito dos jogadores]. E nós perguntamos: “Não podem ou não têm interesse?”

Para nós, esse acordo foi apenas um papel assinado, que não mudou nada. No congresso de São Paulo, apresentamos nossa situação aos outros países, e [Joseph] Blatter, inteligentemente, criou um comitê independente para reavaliar o cumprimento ou não do acordo.

Como é a relação entre palestinos e israelenses no futebol?

Na liga israelense, há pouquíssimos palestinos [cerca de 20% da população de Israel é palestina]. Tem um clube que é só de árabes e tem outro, o Beitar Jerusalém, que veta a contratação de qualquer jogador árabe, a parte mais radical da torcida não permite. Mesmo que a direção comece conversas com algum jogador, a organizada de ultradireita chamada La Famiglia faz pressão e os dirigentes voltam atrás.

Eu acredito que seja a mesma coisa que acontece com a federação israelense na hora de compor a seleção. Mesmo que eles queiram convocar um árabe, sofrem pressão tanto da torcida quanto do governo, e essa intenção acaba sufocada.

[nota da redação: as seleções israelenses adultas e de base já convocaram alguns atletas palestinos com cidadania israelense. Abbas Suan, o mais famoso deles, marcou um gol importante nas eliminatórias para o Mundial de 2010 e se tornou uma espécie de herói nacional.]

Há conflitos?

Há, mas é preciso que se esclareça uma coisa importante sobre essa região que se reflete também no futebol. Há certos grupos na população, nichos, guetos, empresas, hospitais e mesmo clubes de futebol em que árabes e judeus convivem, senão harmonicamente, respeitosamente.  Podem não ser os melhores amigos, mas conseguem coexistir. Então, se de um lado você pode ver muita discriminação e sofrimento, em alguns casos específicos você também vai encontrar um ambiente agradável entre árabes e judeus.

Esse é o melhor momento da historia a seleção da Palestina. Vocês conseguiram a melhor colocação no ranking da Fifa, 85º lugar, depois do inédito título da AFC Challenge Cup. Como o país recebeu esse título?

Houve uma euforia e uma alegria geral nas ruas, em Ramallah e em Gaza. No dia da final havia telões gigantes nas ruas, como se fosse uma Fan Fest, buzinas, festa. Quando a seleção voltou houve uma recepção especial no palácio presidencial com Mahmoud Abbas, os jogadores foram recebidos como heróis.

Foi um sucesso muito importante em um momento político muito delicado. A seleção permitiu à população festejar um pouco e sair do estresse que é viver aqui. E também foi um jeito de mostrar para o mundo que a Palestina existe, que sabe fazer as coisas bem, que tem condições de não apenas disputar um torneio de futebol como também vencê-lo.  

Mesmo com todos os problemas que o futebol local enfrenta, é possível sonhar com uma boa participação na Copa da Ásia, ano que vem na Austrália?

Temos que ver como as coisas vão acontecer. Agora o futebol está totalmente parado aqui. Na Cisjordânia até seria possível começar o campeonato, mas com tudo o que está acontecendo em Gaza, com o luto que estamos vivendo, não tem clima para futebol. E o desenvolvimento do esporte está sempre dependente do desenvolvimento humano. Com todas as mortes, a supressão de direitos, as tragédias que esse conflito nos traz, me parece muito difícil que algum desenvolvimento esportivo aconteça.