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Ricardo Teixeira, ditadura e rixa com Maradona: tudo passou por Grondona

Morto aos 82 anos, o poderoso Grondona carregou seu bordão de vida em um anel - Natacha Pisarenko/AP e Reprodução
Morto aos 82 anos, o poderoso Grondona carregou seu bordão de vida em um anel Imagem: Natacha Pisarenko/AP e Reprodução

Bruno Freitas

Do UOL, em São Paulo

31/07/2014 06h00

Um anel vistoso no dedinho da mão esquerda, que poderia ser usado por um Corleone da vida real, carregava o lema: "tudo passa". Julio Humberto Grondona comandou o futebol argentino com mão de ferro por 35 anos até o dia da sua morte, nesta quarta-feira, aos 82 anos, em decorrência de uma insuficiência cardíaca. Por mais de três décadas, o cartola concentrou poder, teve o nome ligado a escândalos na Fifa (Federação Internacional de Futebol) e viveu uma relação de amor e ódio com Diego Maradona, o maior craque de seu país.

No conjunto da obra, Grondona ficou mais tempo em evidência e teve mais poder internacional do que Ricardo Teixeira, cartola que comandou a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) por 23 anos e saiu de cena após denúncias de corrupção. Foi homem forte dentro da Fifa, chefe das finanças da entidade e um dos dois únicos homens a ter a informação de quanto o presidente Joseph Blatter ganhava mensalmente.

"Tudo passa, menos Grondona", costumavam dizer os adversários políticos de Don Julio no futebol argentino, em menção a seu lema famoso. O cartola prometia encerrar sua passagem pela AFA (Associação de Futebol da Argentina) em 2015, mas não conseguiu concluir seu mandato. Um dos últimos atos deveria ser a nomeação do substituto de Alejandro Sabella no comando da seleção.

A carreira de Grondona como dirigente de futebol começou em 1956, quando fundou ao lado do irmão o Arsenal de Sarandí, clube na região metropolitana de Buenos Aires. Mais adiante foi cartola do Independiente, onde se projetou nacionalmente graças a conquistas na Libertadores.

Na gestão Grondona, a seleção argentina disputou três finais de Copa, ganhou dois ouros olímpicos e conquistou o Mundial Sub-20 em seis oportunidades. Em contrapartida, o dirigente teve que lidar com oito greves de jogadores e com o fortalecimento dos grupos de torcedores violentos conhecidos como barra-bravas.

Pelos detratores, Grondona era acusado de ter erguido uma AFA rica, mas com clubes na penúria. Por exemplo, o tradicional Independiente, que teve Don Julio na presidência na década de 70, hoje amarga na segunda divisão a maior crise de sua história.

RELAÇÃO COM A DITADURA

Julio Grondona (à direita) em reunião com o presidente Jorge Videla: relação estreita com a ditadura argentina - Reprodução - Reprodução
Grondona (à direita) em reunião com Videla: relação estreita com a ditadura
Imagem: Reprodução

Em 1979, Grondona foi eleito para presidir a AFA, mesmo inicialmente sem a predileção da ditadura de Jorge Videla. Venceu com apoio dos clubes, mas logo atuou nos bastidores para conquistar a confiança do regime militar. Hoje em dia a internet guarda em seus arquivos virtuais fotos de Don Julio bajulando um dos piores criminosos da América Latina no último século, condenado por uma série de crimes contra a humanidade.

Quatro anos mais tarde, em 1983, Grondona usou o argumento de ser filiado à Unión Cívica Radical, partido do primeiro governo civil da Argentina, para se autoproclamar um democrata. Os assessores do presidente Raúl Alfonsín não o queriam no comando do futebol, mas não encontraram meios para remover o cartola.

Mais adiante, o novo presidente Carlos Menem também não desejava Grondona no comando do futebol do país. No entanto, aliado do grupo do principal grupo de mídia local, o dirigente conseguiu se acertar politicamente com a cúpula do governo.

Recentemente, em 2009, Grondona atuou no processo de estatização da transmissão de TV do campeonato argentino, junto à presidente Cristina Kirchner. O projeto é conhecido como "Futebol para Todos".

ESCÂNDALOS NA FIFA

Julio Grondona comandou as finanças da Fifa e teve acesso aos rendimentos do presidente Joseph Blatter - AFP PHOTO/Fabian GREDILLAS - AFP PHOTO/Fabian GREDILLAS
Grondona comandou finanças da Fifa e teve acesso aos rendimentos de Blatter
Imagem: AFP PHOTO/Fabian GREDILLAS

Paralelamente ao melhor momento do futebol argentino no cenário internacional, Grondona ingressou como membro do Comitê Executivo da Fifa em 1988. Em alguns anos foi nomeado presidente da Comissão de Finanças da entidade, tendo Jack Warner, de Trinidad e Tobago, como seu vice.

De acordo com investigações do jornalista inglês Andrew Jennings para a BBC, Grondona fez vistas grossas para o "saque" que Warner promoveu nos cofres da Fifa. O dirigente da Conmebol se afastou da entidade em 2011 e, desta forma, se livrou de investigações sobre compra de votos para levar a Copa de 2022 para o Qatar e sobre um escândalo de ingressos no Mundial de 2010.

No livro "Jogo Sujo – o mundo secreto da Fifa", Andrew Jennings disseca o modus operandi dos caciques da entidade e se refere ao dueto Grondona-Warner como "provavelmente os dois homens menos dignos de confiança no futebol mundial".

O argentino também enfrentou acusações de estar envolvido na compra de votos para levar a Copa ao Qatar, com o nome de Grondona presente em investigações promovidas pela revista "France Football". O cartola seria um dos membros do Comitê Executivo da Fifa a ter embolsado propina de US$ 20 milhões para eleger o país do Oriente Médio.  

Mas ao contrário dos brasileiros Ricardo Teixeira e João Havelange, que deixaram a Fifa em razão de implicações no escândalo ISL, Grondona conseguiu se manter na entidade. O argentino ainda viu o colega paraguaio Nicolas Leoz (presidente da Conmebol) sair de cena, pedindo afastamento pouco depois de também ser envolvido em denúncias de compra de votos para beneficiar a candidatura do Qatar.

No mesmo momento, dispensando a moderação diplomática, Grondona afirmou que não havia votado na Inglaterra na eleição para a Copa de 2018 por causa da disputa pelas Ilhas Malvinas. Depois, acabou escrevendo uma carta para se desculpar pela bravata.

Em âmbito nacional, Grondona foi acusado nas últimas eleições da AFA de administração fraudulenta e lavagem de dinheiro. As denúncias partiram de seu principal rival político, o empresário Carlos Ávlia.

Recentemente, durante a Copa do Mundo no Brasil, veio o último ato de uma vida pública pontuada por polêmicas. Humberto, um dos filhos de Grondona, admitiu a venda ilegal de ingressos que pertenciam à AFA.

Mas Don Julio nunca perdeu a pose na vida pública, mesmo em instantes de dificuldades. "Nos 32 anos que tenho na AFA tive mais denúncias que Al Capone e nunca recebi uma multa por essas denúncias", disse, em 2003.

RELAÇÃO COM MARADONA: DOR E PRAZER

Grondona teve relação de amor e ódio com Diego Maradona. Ídolo jogou e treinou a Argentina na gestão de Don Julio - REUTERS/Marcos Brindicci - REUTERS/Marcos Brindicci
Amor e ódio com Maradona. Ídolo jogou e treinou a Argentina na gestão de Don Julio
Imagem: REUTERS/Marcos Brindicci

Há quem atribua a ascensão de Grondona na Fifa ao grande momento do futebol argentino nos anos 80, liderado por Diego Maradona. Esta é a tese contida no livro "El último Maradona: cuando a Diego le cortaron las piernas", que relata o episódio da Copa de 1994 quando Dieguito foi excluído do torneio por doping - segundo a obra, com uma traição de Don Julio nos bastidores.

O livro dos jornalistas Andrés Burgos e Alejandro Wall relata que Grondona cedeu à pressão do então presidente das Fifa, João Havelange, para excluir Maradona da Copa antes mesmo do resultado do exame antidoping, feito após a partida contra a Nigéria.

Meses antes, com a seleção argentina em dificuldades na classificação para a Copa, Grondona permitiu que Maradona levasse à comissão técnica seu preparador físico particular, Daniel Cerrini, um personagem obscuro saído do mundo do fisiculturismo. Na Argentina atribui-se comumente a esta relação o doping de Dieguito nos Estados Unidos.

Grondona e Maradona reataram no ciclo para a Copa de 2010, quando o campeão do mundo de 1986 foi escolhido como treinador da seleção. Mas, após a frustração da eliminação nas quartas de final na África do Sul, Dieguito foi demitido e saiu disparando contra o cartola na imprensa.

O último episódio da relação aconteceu no Brasil há poucas semanas. Durante a Copa, Grondona e Maradona trocaram farpas pela imprensa. Tudo começou quando o presidente da AFA chamou o ídolo de "pé frio", ao relatar que o gol de Messi contra o Irã só saiu depois que o ex-jogador abandonou o Mineirão. Depois, na televisão, o antigo camisa 10 da seleção fez um gesto obsceno e disparou: "a Grondona eu digo que o que eu tenho na vida, conquistei trabalhando. O que ele tem, é da Fifa".