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Atleta da seleção tetracampeã de futebol só lembra que é amputado no ônibus

Rogerinho Almeida, da seleção brasileira de amputados - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Bruno Doro

Do UOL, em São Paulo

07/09/2014 06h00

William Farias é jogador da seleção brasileira tetracampeã do mundo de futebol. Você não conhece? Deveria. Seu esforço diário para poder defender o país é bem maior do que o de Neymar, por exemplo. Afinal, o jogador do Barcelona tem as duas pernas. Willian, só uma.

Em janeiro de 2011, ele sofreu um acidente de moto em uma estrada no litoral norte de São Paulo. Fratura exposta na perna direita. O atendimento foi precário, o local contundido gangrenou e, em dois dias, ele teve de ser amputado, logo abaixo do joelho.

Depois de três anos e meio, a vida de William mudou muito. Para melhor, pelo menos esportivamente. Antes, era um jogador amador que tinha fracassado nas divisões de base de times como Juventus e Corinthians. Hoje, está pré-convocado para a seleção brasileira de amputados que vai disputar o Mundial do México, no final de novembro. O país é tetracampeão mundial da modalidade, que tenta a inclusão nas Paraolimpíadas - a seleção tem até apoio da CBF.

Sabe quando William se lembra dos problemas de ser amputado? Quando sobe no ônibus. E o motivo é exatamente o oposto do que você está pensando. “Quando eu perdi a perna, a primeira coisa que fiz foi conseguir uma prótese. Quando subo no ônibus, com calça social, as pessoas não percebem a prótese. Eu cansei de aguentar olhar torto, ouvir `levanta, menino`. Hoje, nem sento mais. Não levanto mais a barra da calça para mostrar a prótese. Fico em pé”.

É uma maneira de olhar a vida. De frente, não dando importância aos obstáculos que aparecem. Superando os problemas sem aumentar o tamanho da barreira. Afinal, para que ouvir reclamação? Só para sentar na cadeira reservada? Ele não precisa disso.

Rogerinho Almeida, colega de William no Smel Mogi, um dos poucos times de futebol de amputados de São Paulo, e chamado de R9 por sua facilidade em fazer gols, não tem a mesma sorte. Com uma má formação congênita, não tem a perna esquerda. Sempre andou de muletas. “Quando andava de ônibus, parecia que tinha uma doença grave. Era só entrar que começava: ‘Filho, senta aqui’, `Nossa, tão novinho e sem a perna...’, ‘Olha, o que foi isso?’. Entrava um, saía outro e era sempre a mesma coisa. Algumas vezes, eu não sentava. Só de raiva. Era divertido”, lembra.

As duas reações têm a mesma origem: na sociedade brasileira, quem tem mobilidade reduzida é coitadinho. Não são. Rogerinho tem uma série de histórias que mostram isso. Na escola, por exemplo, não queriam permitir que ele se matriculasse. O sim só veio em um acordo entre o pai e o diretor: ele poderia estudar, mas não desceria as escadas para o recreio. A escola temia algum acidente, nas escadas ou na correria do intervalo. “No terceiro dia, eu não aguentava mais. A inspetora que ficava na sala comigo foi buscar minha merenda e eu saí correndo. No pátio, todos os amigos vieram brincar comigo. Nunca cai na escola”.

Adulto, trocou as travessuras pelo empreendedorismo. Em 2008, foi campeão e artilheiro da Copa América, na cidade de Crespo, na Argentina. Ao voltar, tinha chamado atenção do prefeito de Mogi das Cruzes e o projeto de criar um time saiu do papel. Hoje, 41 jogadores defendem a cidade. Vários passaram pela seleção brasileira.

Quem assiste aos treinos comprova: na quadra, eles não têm nada de coitadinho. Dribles inacreditáveis, lançamentos precisos e chutes acrobáticos são esperados de atletas que estão entre os melhores do país. O que surpreende é ouvir as provocações, sempre em tom de brincadeira, dos companheiros. “Quando alguém perde um gol, pode esperar. Alguém sempre grita ‘Esse até um aleijado faria’. Quando o goleiro leva um frango, todo mundo manda ele usar a outra mão”, diz Rogério. Detalhe: goleiros do futebol de amputados não tem um dos braços.

“Ao longo dos anos, eu aprendi que são os outros que me veem como deficiente. São eles que criam a deficiência. Eu sou normal. Não sou aleijadinho, coitadinho e não é preciso ter pena. Somos diferentes esteticamente, mas somos normais. Hoje, digo que nós fomos escolhidos para vencer. Somos diferentes, mas somos tão fortes quanto vocês”.