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Racismo no futebol do RS vem desde a Liga da Canela Preta

Luís Augusto Simon

Do UOL, em São Paulo

18/09/2014 06h00

Aquele “ma-ca-co”, soletrado de maneira bem alta por Patrícia Moreira, torcedora do Grêmio, em direção ao goleiro Aranha, na fria noite de 28 de agosto em Porto Alegre, serviu para explicitar – como nunca antes – a questão racial permeando as relações futebolísticas no Rio Grande do Sul.

Patrícia diz que não é racista. Muitos outros disseram o mesmo há muito tempo. Desde os anos 20, quando o futebol gaúcho fez a trajetória comum em todos os estados: deixou de ser um esporte de elite para ser dominado pelo povo.

Foi então que vilas próximas ao centro de Porto Alegre começaram a ver os seus times nascerem. Eram equipes como 8 de Setembro, Riograndense e Porto, que sonhavam jogar com os grandes como Internacional, Grêmio, América e Ferroviário, do centro.

O convite nunca era aceito. “Os clubes importantes, do centro, não aceitavam negros. Recusavam-se a jogar contra negros”, conta o jornalista Jones Lopes da Silva, estudioso do assunto.

Nas vilas, a coexistência era pacífica. Brancos e negros jogavam no mesmo time. E na mesma liga. “A Liga da Canela Preta”, contra Jones. Esse era o nome não oficial do campeonato que reunia os clubes populares.

Há poucos registros sobre a época, o que se permite a criação de história sem confirmação. Uma delas foi contada anos a fio pelo compositor Lupicínio Rodrigues, que explicava sua predileção pelo Grêmio.

Ele contava que seu pai, Francisco Rodrigues, era presidente do  8 de Setembro e tentou inscrever seu time na liga dos clubes grandes. Teria sido vetado pelo Inter. “Lupicínio era um contador de histórias e alimentava muita lenda sobre si mesmo. Difícil saber se é verdade”, conta Jones.

Em 1931, o Inter construiu seu estádio dos Eucaliptos e começou a absorver jogadores negros. Nos anos 40, chegou o maior deles: Tesourinha, que, já no Vasco, só não jogou a Copa do Mundo por estar contundido. Tesourinha era o condutor do Rolo Compressor, que dominou o futebol nos anos 40 no Rio Grande do Sul. O Inter ganhou seis títulos seguidos. E o Grêmio? “Sem ter argumentos, a torcida desdenhava, dizia que o Inter era campeão, mas que tinha negros no time”, conta Jones.

Surgiram então os primeiros gritos de macaco. Racismo? Os gremistas de então, como Patrícia Moreira, juravam que não. E os argumentos eram falhos. Diziam que o símbolo do Inter era um saci, um garoto preto, um macaquinho. E que muitos torcedores colorados se penduravam nos galhos das árvores para ver os jogos. Como macacos.

Um argumento semelhante surgiu em 2000. Escurinho, um ídolo colorado, vendeu ao clube os direitos de usufruir de sua imagem. Foi criado então um bonequinho como aqueles dos esportes dos EUA. Um macaquinho chamado Escurinho. “Se eles mesmos se assumem como macacos, por que não podemos dizer o mesmo?”, diziam os gremistas.

Patrícia Moreira, que teve sua vida devassada após o ato e até a casa incendiada,  tinha em seu Instagram um macaco Escurinho em um dos braços. Com a outra mão, tampava o nariz, como se estivesse se defendendo do mau cheiro.

Para o professor Ruy Carlos Ostermann, filósofo e jornalista, a questão racial não é exclusividade do futebol, nem do Rio Grande do Sul. “O racismo não é do futebol, é dos grupos humanos. A necessidade de afirmação leva a essa atitude dramática, drástica e lamentável”.

E um campo de futebol, ao receber grupos humanos distintos é o palco ideal para que a necessidade de afirmação apareça. “São pessoas que pensam diferentemente reunidas no mesmo local. Aí, aparece o comportamento inadequado”.

E por que no Rio Grande, as contradições se acirram? “Por que somos um estado dividido. É uma dualidade futebolística. É um ou outro. Um querendo anular o outro. Um querendo suplantar o outro. Mesmo que seja com injúria racial”.

Mas, por que o torcedor gremista é que busca a injúria racial, mesmo tendo o Grêmio admitido negros a partir de 1952? E quem foi o primeiro? Tesourinha. Sim, grande craque colorado dos anos 40, voltou ao Sul para encerrar a carreira. E foi no Grêmio.

Para Jones Lopes Silva, a explicação está no arraigamento dos preconceitos. “Em 1952, o presidente Saturnino Vanzelotti terminou com a proibição de negros no Grêmio. E vieram jogadores maravilhosos e inesquecíveis como Tesourinha, Juarez, Vieira e Airton Pavilhão, o maior zagueiro da história do Grêmio. Eles foram ídolos, mas você não termina com o preconceito de décadas com um canetaço, com um decreto. Por isso, resiste até hoje”.

Para o professor Ruy Carlos, Saturnino Vanzelotti foi um visionário e também um pragmático. “Ele percebeu que muitos negros torciam para o Grêmio. Então, não havia motivos para não haver jogadores negros no elenco”.

Mas como negros torciam para o Grêmio, que não admitia negros. “Ora, isso é a prova da grandeza do futebol, da confirmação do futebol como algo democrático. A paixão não se explica”.

E o componente racial continuou a ser um argumento em um estado futebolisticamente dividido. Nos anos 50, só deu Grêmio. Em 68, o Inter inaugurou o Beira Rio e se estruturou para ganhar três títulos brasileiros. O Grêmio reagiu ganhando o título mundial de 81. “E assim vai”, diz Jones Lopes. “E com as relações exaltadas, cada hora com um na frente, não é de se estranhar que a injúria racial sirva como argumento”, diz Ostermann.