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Fuga da guerra e racismo na Europa. O 'croata' do Flamengo abre o jogo

Vinicius Castro

Do UOL, no Rio de Janeiro

23/09/2014 06h10

Eduardo da Silva é o nome da vez no Flamengo. O atacante, que se naturalizou croata em 2002, superou expectativas e marcou cinco gols fundamentais com a camisa rubro-negra depois de passar ao menos 15 anos fora. O desejo de atuar em seu país de nascimento era antigo, mas foi graças aos problemas geopolíticos da Europa que o jogador desembarcou em terras brasileiras.

Mesmo com dificuldades em alguns momentos na língua portuguesa, o atacante aceitou falar com o UOL Esporte. Na conversa, fez um balanço sobre os dois meses de Flamengo, revelou ter sido vítima de racismo no país pelo qual disputou a última Copa do Mundo e contou como o conflito armado da Ucrânia teve papel determinante na decisão de voltar ao Brasil para reconstruir a carreira aos 31 anos.

Confira a íntegra da entrevista:

UOL Esporte: Você sempre teve propostas para atuar no Brasil, mas relutou algumas vezes em aceitá-las. Por que topou o desafio apenas depois de tanto tempo na Europa?
Eduardo da Silva: Sempre tive curiosidade em jogar no Brasil, recebi propostas, mas os clubes nunca liberaram nas condições definidas. Achava distante a possibilidade. Fiquei metade da vida na Europa. Saí daqui praticamente pelado e voltei com roupa. Hoje já moro em outro lugar, ando de carro. Mas o principal motivo foi a guerra na Ucrânia. Morava em um lugar que virou uma cidade fantasma. Recebi informações de que a situação não iria melhorar. Estava com o contrato na mão e decidi sair. Foi a minha escolha. Quem pôde fugir, fugiu.

UOL Esporte: Muitos jogadores brasileiros não quiseram voltar para lá. Você realmente correu riscos ao lado da família na Ucrânia?
Eduardo da Silva: Vi tumultos, saques nos mercados, uma coisa horrorosa. Até vivi momentos tranquilos, mas o problema foi a ocupação da sede do governo. Os separatistas andavam pela cidade e os protestos aconteciam nos fins de semana. Antes da Copa do Mundo piorou ainda mais. Bombas eram lançadas e aconteceram coisas mais delicadas. O país é maravilhoso, moderno, mas ficou insustentável.

UOL Esporte: O racismo tornou-se tema recorrente no futebol. O último episódio de destaque envolveu o goleiro santista Aranha. Você sofreu insultos raciais na Europa?
Eduardo da Silva: Vivi isso com mais três colegas no meu começo lá na Croácia. O clássico entre Dinamo Zagreb e Hajduk envolve dois rivais. Quando jogavam os moreninhos, meio escurinhos, a torcida não perdoava. Eles não tacavam bananas, mas faziam sinais de racismo e imitavam macaco. Não levava isso de forma séria. É até chato lembrar. Sempre ignorei as manifestações. As pessoas devem entender que não faz qualquer sentido. Precisamos amar todas as cores.

UOL Esporte: Considera surpreendente o seu início no Flamengo?
Eduardo da Silva: As coisas estão acontecendo de forma muito rápida. Fiquei três meses sem fazer praticamente nada depois que disputei a Copa do Mundo pela Croácia. O Vanderlei Luxemburgo arriscou comigo, me colocou em jogos difíceis e com um pouco de sorte ocupei o espaço. Já me sinto bem melhor. Ainda está cedo para falar que deu certo. No futebol, ficamos em cima e embaixo muito rápido. Convém sempre esperar.

UOL Esporte: Acha que a manutenção do bom rendimento pode transformá-lo em ídolo na Gávea?
Eduardo da Silva: Não trabalho para ser ídolo. Para alcançar esse status é obrigatório conquistar títulos. É assim que se vira ídolo, com o coletivo. Não é uma questão individual. Essa é a mentalidade que aprendi na Europa. Sempre briguei por títulos, mas o Brasileirão é diferente. São muitos concorrentes e sem favoritos. Voltei para ajudar, jogar na minha cidade e no maior clube do Brasil. Era também o desejo antigo de provar um pouco do futebol brasileiro. Recebi o convite e não pensei duas vezes por tudo o que aconteceu. Cheguei ao Flamengo em um momento difícil, mas viria mesmo se a situação fosse pior. Abracei a proposta de coração.

UOL Esporte: Você aparenta timidez nas entrevistas e ainda tem dificuldades com o português. Estranhou algum aspecto do futebol brasileiro?
Eduardo da Silva: Os jornalistas europeus me perguntavam sobre o futebol brasileiro e sempre citava a situação dos repórteres entrarem em campo. Lá fora tudo é diferente. Passamos por uma zona mista e nada mais. Agora é tudo ao contrário. Estranhei no começo, tomei até susto e quase neguei entrevista no campo do Maracanã. Me assustei bastante, mas lembrei que funcionava de forma diferente aqui no Brasil.

UOL Esporte: Qual o desejo para a sequência da carreira? A aposentadoria já faz parte dos planos?
Eduardo da Silva: Tenho 31 anos. Vai depender do meu corpo. Se pudesse, jogaria até depois dos 40 anos. Atualmente, a minha prioridade é ficar aqui no Rio de Janeiro o maior tempo possível. Vivo um dos melhores momentos e estou realizando um sonho. Quero ficar no Flamengo até quando o meu corpo aguentar. Não tenho previsão para parar.

UOL Esporte: Você consegue aproveitar o Rio de Janeiro nos momentos de folga? Já se atualizou depois de tantos anos na Europa?
Eduardo da Silva: Ainda não tive tempo para reparar em muita coisa. A minha rotina está ligada aos treinos e viagens. Percebi algumas mudanças no trânsito e nos programas de violência na televisão. Você fica preocupado com tanta barbaridade. Penso até que uma coisa dessas não poderia existir. Isso me incomoda bastante.

UOL Esporte: Você ficou marcado pela grave lesão em 2008 quando defendia o Arsenal [fratura exposta na fíbula e no tornozelo]. A contusão ainda assusta? Temeu não jogar mais futebol?
Eduardo da Silva: Senti bastante receio nos primeiros dois anos depois do ocorrido. Falaram até que poderia amputar a perna e muitas histórias surgiram. Disseram também que não voltaria se tivesse me machucado na África, pois o atendimento seria demorado, outros médicos... Ouvi de tudo e muitas coisas absurdas. Corri risco de não jogar realmente nos primeiros dez dias depois da cirurgia. Poderia ter uma infecção ou rejeição. Deu tudo certo e voltei apesar da gravidade.

UOL Esporte: Como um atleta que participou da Copa do Mundo enxergou a goleada por 7 a 1 aplicada pela Alemanha no Brasil? E qual a repercussão enquanto esteve na Europa?
Eduardo da Silva: Acho que não foi um vexame como muita gente falou. A Copa aconteceu no Brasil, mas reparei muita emoção, choro e tensão desde o início. A coisa só explodiu contra a Alemanha. Não considero uma tragédia. Foi um acidente. Tem outras seleções de países menores que sofrem um resultado desse de dez em dez anos. Isso não vai acontecer novamente. Não se ganha uma Copa do Mundo de quatro em quatro anos. A Alemanha demorou mais de 20 anos para isso. O Brasil sempre vai ser favorito.