Topo

Só honestos: time paulista não contrata jogador que engana o juiz

Dado Oliveira, presidente do Manthiqueira, clube que quer um futebol mais honesto - Divulgação/Manthiqueira
Dado Oliveira, presidente do Manthiqueira, clube que quer um futebol mais honesto Imagem: Divulgação/Manthiqueira

Adriano Wilkson e Vanderlei Lima

Do UOL, em São Paulo

01/10/2014 06h00

Há três anos, um pequeno clube do interior de São Paulo tenta silenciosamente expulsar a desonestidade do futebol. Para jogar no Manthiqueira, da quarta divisão paulista, um jogador não pode cavar pênaltis, faltas e nem reclamar do juiz. Não pode simular lesões, nem fazer cera. Também é proibido catimbar, provocar ou ofender o adversário. Se o árbitro assinalar um pênalti inexistente a favor do Manthiqueira, o capitão do time deve tentar convencer o juiz a desmarcar a infração.  Se ela for mantida, ele deve chutar o pênalti para fora.

“Nós estamos, acima de tudo, querendo fazer o bem”, afirma o volante e capitão Raílson, de 23 anos.

Para o clube, que manda suas partidas na cidade de Guaratinguetá, jogar limpo é mais importante do que vencer. Dado Oliveira, o presidente, costuma dar lições de ética e moral a seus jovens jogadores. Depois de trabalhar por 30 anos no setor de comunicações da Aeronáutica, ele resolveu entrar em uma faculdade de Filosofia, onde se encantou pelas ideias do alemão Immanuel Kant.

“O que o Kant fala é que você tem que ter um comportamento ético sem se importar se alguém está vendo”, afirma o cartola, que obriga seus jogadores, desde o primeiro dia no clube, a seguirem aquilo que ele considera um comportamento de fair play.

Quem não se encaixa na doutrina é convidado a se retirar. Uma vez, conta o cartola, um jogador discordou publicamente da orientação da diretoria e disse que a equipe estaria errada caso se aproveitasse de um erro do juiz a seu favor. Ele não teve o contrato renovado na temporada seguinte. “Era um bom jogador, mas não seguia a nossa filosofia”, diz o presidente.

Ele também vê problemas na linguagem usada no esporte. Em seu time, jogador nenhum pode roubar a bola. “Aqui não é um time de ladrões, ninguém vai roubar nada. Disputar a bola, tudo bem, mas roubar é errado.”

É claro que tanta honestidade cobra seu preço. O Manthiqueira já deixou de se classificar para um campeonato porque teve um gol legal mal anulado. Os jogadores não protestaram, nem a direção. “Erros da arbitragem fazem parte do pacote. Assim como o atacante perde um gol feito e o goleiro toma um frango, o juiz pode errar, acontece”, diz o presidente.

A treinadora Nilmara Alves, uma das poucas mulheres comandando times de futebol masculinos, também tem uma cartilha a seguir. Nem ela pode reclamar da arbitragem. E está proibida de ficar gritando à beira do campo para seus próprios jogadores. O argumento de Dado Oliveira é que os atletas devem ser tratados como artistas e, como artistas, ter liberdade para criar.

Nilmara Alves, treinadora do Manthiqueira, de Guaratinguetá - Divulgação / Manthiqueira - Divulgação / Manthiqueira
Nilmara Alves, treinadora do clube, que deve tratar seus jogadores como artistas
Imagem: Divulgação / Manthiqueira

Liberdade religiosa e sexual também estão garantidos pela direção. Na cartilha do clube, está previsto que antes de cada partida o elenco tenha dois minutos de silêncio nos vestiários para que cada um reze individualmente para seu deus. A ideia é que ninguém seja coagido a rezar o Pai-Nosso em voz alta e em grupo, como normalmente acontece. “Temos jogadores católicos, evangélicos, espíritas, se tiver macumbeiro também será bem-vindo, o clube está aberto a todos”, diz o presidente.

A gays também. Em um tempo em que muito se discute a homofobia do mundo do futebol, o cartola prega a aceitação da diferença. Diz que se um dia tiver um jogador homossexual no elenco, dará todo o apoio para que ele revele sua orientação e que faça disso uma bandeira para combater o preconceito no esporte.

A única liberdade que jogadores e comissão técnica não têm é a de subverter o esquema tático. O Manthiqueira só pode jogar no 4-3-3, o mesmo da histórica seleção holandesa de 1974. O motivo é que o presidente é fã daquele time (é também por isso que ele fez do laranja a cor do clube e colocou o nome do técnico Rinus Michell no escudo da agremiação).

Triguinho

O jogador mais conhecido a defender o Manthiqueira é o lateral esquerdo Triguinho, que já passou pelo São Caetano e até pelo time B do Barcelona. Apesar de ser o bastião da experiência do elenco, ele recebeu um dos poucos cartões vermelhos da equipe na quarta divisão.

De acordo com o capitão Raílson, a expulsão foi fruto da catimba dos jogadores adversários. “Os outros times vêm jogar com a gente sabendo que temos essa filosofia de fazer o bem e tentam se aproveitar”, afirma o volante. “Então o moleque se jogou na frente do Triguinho e ficou dizendo pro juiz que tinha quebrado o braço. Era mentira, mas o juiz caiu na dele e expulsou o nosso jogador.”

Alguma chance de o Manthiqueira usar do mesmo expediente em um hipotético novo jogo contra um time que abuse da malandragem? “Nenhuma, isso está fora de cogitação”, diz Raílson. “Ter a consciência tranquila é mais importante do que vencer a todo custo”, completa o presidente.

Manthiqueira, clube paulista que homenegeia a Holanda e só quer jogadores honestos - Manthiqueira/Divulgação - Manthiqueira/Divulgação
Imagem: Manthiqueira/Divulgação