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Bolivianos adotam times paulistas e usam futebol para preservar identidade

Milton Pinto foi ídolo do The Strongest nos anos 70 e agora quer ajudar os bolivianos de São Paulo - UOL - UOL
Imagem: UOL

Bruno Freitas

Do UOL, em São Paulo

18/12/2014 06h00

"Infelizmente a mídia quando fala de Bolívia fala de trabalho escravo. É uma coisa real? Uma coisa que existe? É, mas não é uma coisa exclusiva dos bolivianos. A Bolívia tem muita coisa bonita, que pouco é falado", diz Willen Gutierrez. Filho de mãe de Cochabamba e pai de La Paz, o estudante de odontologia faz parte da segunda geração de bolivianos de São Paulo, um grupo já mais enraizado na vida brasileira, graças a instrumentos de identidade comum aos dois povos, como o futebol.

"Todos os bolivianos têm um clube no Brasil, mas também têm um time de lá. É uma coisa que une bastante", afirma Willen, torcedor do Jorge Wilstermann, mas fanático de verdade pelo São Paulo Futebol Clube. Já sua namorada, Amanda, divide a paixão pelo San José de Oruro e pelo Corinthians. E, apesar do impacto do trágico caso Kevin Espada em 2013, o time mais popular de São Paulo é justamente o preferido entre os imigrantes da Bolívia. 

Willen conversa com a reportagem na Praça Kantuta, a feira dominical que reúne a comunidade desde 1999, bem perto do estádio da Portuguesa. O espaço no bairro do Canindé serve para manter ativa a identidade nacional da colônia, que hoje é considerada a segunda maior entre os estrangeiros de São Paulo, atrás apenas dos portugueses. Segundo o Consulado da Bolívia na cidade, o número de imigrantes flutua hoje na casa de 100 mil. Extraoficialmente, no entanto, se fala que o contingente na região metropolitana pode superar 350 mil.

Ali na Praça Kantuta, em meio a barracas que vendem a salteña (tipo de pastel) e de artesanato, o futebol surge como elemento central de expressão. Neste pequeno território boliviano na maior metrópole brasileira, imigrantes caminham com camisas de Corinthians, Santos e São Paulo, os mais populares na comunidade. Um deles é Hugo Fernández, que orienta garotos na quadra de futsal usando um modelo listrado santista: "lembra o time da minha cidade. Por ser das mesmas cores, fiquei apaixonado".

No dia da visita da reportagem, no final de novembro, os imigrantes organizam um torneio de futsal para crianças e adolescentes. Os líderes da comunidade dizem acreditar que o esporte serve como ferramenta de preservação da identidade, a milhares de quilômetros de casa.     

"O esporte dentro da comunidade é praticamente o pilar, o tronco fundamental para desenvolver as diferentes atividades da cultura e do social", diz Jorge Gutierrez, radialista e líder de comunidade.

"É uma maneira de se manter ligado à comunidade. E mostrar para nossos filhos a raiz dos clubes de lá. Porque muitos nasceram aqui no Brasil. A gente mostra as cores dos nossos times, os nomes deles", emenda Gutierrez, radicado há 29 anos no Brasil.

BOLIVIANOS SÃO ATIVOS NA VÁRZEA PAULISTANA

Torcedores de Bolívar e The Strongest se reúnem para confraternização de imigrantes bolivianos em São Paulo - UOL - UOL
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Jorge Gutierrez também é o idealizador da Copa Vimart, um torneio de várzea no Bom Retiro que congrega a comunidade boliviana já há alguns anos. Ela é organizada como uma liga, com turno e returno, e tem até site na internet. A disputa geralmente vai de março a dezembro e oferece R$ 800 ao campeão. Recentemente o torneio virou multinacional, abraçando times de imigrantes paraguaios, peruanos, e sul-coreanos.

A atuação como cartola e comunicador de rádio comunitária faz Jorge circular na comunidade como uma espécie de personalidade. Entre uma série de cumprimentos e acenos, ele recomenda que a reportagem visite um jogo de várzea na Mooca, no mesmo domingo em que o futsal ferve na Praça Kantuta. Deixamos então o Canindé, em direção à Zona Leste, onde o esporte continua a ser um elemento pulsante da vida do imigrante. Ali, em sua 9ª edição, a festa anual no terrão do campo da subprefeitura opõe torcedores de Bolívar e The Strongest, os clubes mais populares de La Paz. E em campo, os craques da altitude mostram mais amizade do que categoria com a bola.

"Esse jogo aqui é para confraternizar. É também para tirar o estresse do dia a dia que nós vivemos aqui no Brasil", comenta Franclin Castro, profissional de confecção, com mais de vinte anos na cidade.

"Por isso que quando vêm aqui jogar Bolívar e The Strongest, os dois (torcedores) vão, não tem briga. Na Bolívia é um costume poder confraternizar times bolivianos assim. Aqui, eu sou palmeirense. Quando a gente vai, o são-paulino joga xixi. É costume aqui, não podemos brigar", afirma Cristóbal Poma, empresário do ramo de confecção.

IMIGRANTES VEEM MORENO COMO HERÓI E CASO KEVIN SUPERADO

Boliviano torcedor do Corinthians participa da feira dominical da comunidade em São Paulo - UOL - UOL
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Para a maioria boliviana de São Paulo que luta por inclusão social e oportunidades de trabalho, o êxito recente do compatriota Marcelo Moreno no futebol é uma inspiração poderosa. O campeão brasileiro pelo Cruzeiro é hoje uma espécie de herói para os imigrantes, um símbolo de que é possível dar certo no país que escolheram viver.

Moreno é um ídolo para as crianças bolivianas de São Paulo e sucede outros compatriotas que não se saíram tão bem em times brasileiros, como Carlos Aragonés (Palmeiras) e Juan Carlos Arce (Corinthians). Por isso, o sonho do diretor da feira da Kantuta, René Quisbert, é trazer o jogador do Cruzeiro para as finais do torneio de jovens na praça.

Mas se hoje Moreno aproxima o imigrante do Cruzeiro, o caso Kevin Espada não chegou a afastar aqueles que apreciam o Corinthians. Apesar do episódio de 2013 na Libertadores, quando o adolescente de Oruro morreu alvejado por um sinalizador disparado por torcedores organizados brasileiros, o time de Itaquera continua sendo o mais popular entre a comunidade.

"Não mudou nada. O laço, o entendimento continua o mesmo. A gente sabe diferenciar as coisas, que é um incidente lamentável (…) mas isso em determinado ponto ajudou para nos unir (no Brasil). O próprio corintiano viu que tem que ter um pouco de respeito pelo imigrante", diz o radialista Jorge Gutierrez.

A maioria alvinegra entre os imigrantes precede o incidente em que 12 torcedores organizados ficaram presos por meses na Bolívia. "Quando o Arce jogou no Corinthians, só tinha corintiano aqui", relata o são-paulino Willen. 

ÍDOLO EM LA PAZ, EX-JOGADOR BRASILEIRO QUER AJUDAR EM SP

Dentre a comunidade no Brasil, já há gente que conseguiu algum progresso social, com oportunidades de emprego melhores. No entanto, as situações degradantes de trabalho ainda são comuns. Em outubro passado, por exemplo, um grupo de 20 bolivianos foi encontrado pela polícia em condições análogas à escravidão, em duas confecções do bairro de Cidade Ademar.

Essa realidade incomoda brasileiros ligados afetivamente ao país do presidente Evo Morales. Um exemplo disso se dá na presença de Milton Pinto no jogo anual de várzea dos bolivianos, na Mooca. Funcionário das categorias de base do Corinthians, o paulista foi jogador do The Strongest nos anos 70 e é um ídolo venerado em La Paz, onde conheceu a mulher e teve um filho. Hoje, diz que espera retribuir a oportunidade do passado ajudando imigrantes em São Paulo.

"Esta gente que vem aqui trabalhar, é difícil viver em São Paulo. Mas tem muitas coisas que os bolivianos podem fazer aqui. São trabalhadores, gente boa, humildes. Eu me coloquei à disposição. Se eu puder ajudar, será um prazer grande. Depois da Copa São Paulo (de juniores), um rapaz pode querer treinar no Corinthians. Talvez Palmeiras ou São Paulo, posso aproximar, posso ajudá-los também. Vou estar à disposição para que encontrem um espaço melhor", declara Pinto.  

Time preferido dos filhos de La Paz de São Paulo, o Corinthians também faz a cabeça de Amanda Campero, outra integrante da segunda geração de bolivianos no país. Filha de um ex-jogador do San José de Oruro e da seleção, a brasileira lamenta o caso Kevin, mas diz entendê-lo como um incidente isolado.

Amanda integra uma ala mais favorecida dentro da numerosa comunidade, ainda minoria. A jovem teve oportunidade de ir à universidade e hoje, médica formada, tem o desejo de ceder seu tempo para auxiliar os bolivianos que chegam a São Paulo em situação de precariedade.

"Acho que a gente está aqui tendo um papel de receber os bolivianos menos favorecidos que vêm para cá. Acho que a gente tem uma missão mesmo, social", conta Amanda.

O alvo da missão que inspira Amanda passa pelas ruas de Bom Retiro, Brás e Pari. Estes bairros são o epicentro da saga andina em São Paulo, de luta por oportunidade de vida e contra o estigma do trabalhador em condições sub-humanas. O futebol muitas vezes ajudou a transformar cenários sociais adversos mundo afora. Se por acaso servir para atenuar a aventura boliviana no Brasil, terá triunfado mais uma vez.