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Como as novas regras da Fifa podem afetar o seu clube no dia a dia

CBF, de Marin, começou o ano tentando implantar novidades que afetarão futebol brasileiro - Divulgação/Mowa Press
CBF, de Marin, começou o ano tentando implantar novidades que afetarão futebol brasileiro Imagem: Divulgação/Mowa Press

Gustavo Franceschini

Do UOL, em São Paulo

15/01/2015 06h00

A CBF publicou, na última terça, o seu regulamento de transferências, que cria parâmetros para todas as negociações do futebol nacional. São 26 páginas de artigos, termos jurídicos e muitas regras que parecem distante da discussão de bar entre rivais. Ledo engano. As novidades apresentadas pela entidade podem (e vão!) interferir no jogo de bola que você costuma ver.

O Regulamento de Transferências reúne regras que já estavam nos livros da Fifa, na Lei Pelé ou no próprio Regulamento Geral de Competições da CBF. Só que a entidade, além de uniformizar essas diferentes fontes, ainda avançou em algumas áreas específicas em que havia discordância. O movimento de mudança é tão forte que a entidade falou até em fair play financeiro, ainda que não tenha explicado como fará isso. 

Por isso, o UOL Esporte ouviu advogados especializados em direito esportivo, reuniu as principais novidades do regulamento e tentou explicar, em sete tópicos, as principais mudanças:

- Fim dos investidores:

A maior novidade é o banimento aos investidores. Ele já havia sido definido pela Fifa em dezembro do ano passado, é verdade, mas a CBF foi a primeira entidade a incorporar as novas regras internamente. São elas:

A partir de maio, só clubes poderão ter direitos econômicos dos jogadores. Empresários, investidores e os próprios jogadores estão proibidos de ter percentuais. Isso deve, em um futuro próximo, acabar com os “jogadores fatiados”.

No momento, o mercado está em uma espécie de período de transição. De 1º de janeiro de 2015 até 1º de maio, os investidores ainda estão permitidos, mas todos os contratos nesses moldes devem ter no máximo um ano de duração.

Isso não significa que aquela estrela do seu time agora não é mais dividida em várias fatias. Todos os contratos assinados de 2014 para trás seguem inalterados, ou seja, os clubes seguirão devendo para os investidores que o ajudaram a assinar com os atletas. Nenhum desses acordos antigos, porém, poderão ser renovados ou prorrogados.

Exemplo e aplicação da regra – Petros, volante do Corinthians, tem seus direitos econômicos divididos entre Corinthians (50%) e Elenko Sports (50%) e contrato até o fim de 2018. Até o fim do compromisso, os percentuais terão de ser respeitados e cumpridos.

Se ele tivesse sido comprado sob as novas regras, porém, o Corinthians teria de pagar pelo jogador com dinheiro do próprio bolso. Em compensação, o clube lucraria sozinho no futuro caso ele fosse negociado.

- Novas regras para empréstimos:

Alexandre Pato recomeça temporada de 2015 no segundo ano de empréstimo do Corinthians - Rubens Chiri/saopaulofc.net - Rubens Chiri/saopaulofc.net
Imagem: Rubens Chiri/saopaulofc.net
De acordo com o novo regulamento da CBF, o clube que empresta não pode mais proibir (ou estipular multa) para impedir que o jogador atue contra si. Esse é um posicionamento novo da entidade, que modifica os termos de boa parte dos contratos feitos no país.

Como é comum que o clube cedente pague parte dos salários do jogador durante o empréstimo, normalmente se coloca uma cláusula de impedimento, que pode ou não estabelecer uma multa. A partir de agora isso é proibido.

Em compensação, o clube que empresta um atleta agora está um pouco mais protegido em outro aspecto. Se os dirigentes que receberam o jogador decidirem que não o querem mais antes do fim do contrato, terão de pagar aquilo que foi acertado integralmente.

Exemplo e aplicação da regra – Até a implantação da nova regra, cada caso era avaliado separadamente, de acordo com o contrato firmado. Em várias oportunidades, jogadores foram barrados contra seus ex-clubes e os dirigentes que cederam os atletas tiveram de recebê-los de volta antes do prazo definido inicialmente.

Quem assinar contrato de empréstimo a partir de agora terá uma vida diferente. Alexandre Pato, por exemplo, não poderia ser impedido de atuar pelo São Paulo contra o Corinthians, ainda que o clube do Parque São Jorge pague parte do seu salário.

Da mesma forma, um jogador emprestado não poderá ser devolvido de qualquer forma. Thiago Carleto, por exemplo, assinou contrato com o São Paulo em 2010, e desde 2011 tem sido cedido para diferentes times, em vários tipos de negociação. No ano passado, a Ponte Preta devolveu o atleta antes do combinado após um problema de indisciplina.

Na nova regra, os campineiros não poderiam simplesmente parar de pagar sua parte no acordo e devolvê-lo. Para rescindir o contrato de empréstimo, agora o cartola terá de obter a concordância do clube cedente e do próprio atleta. Além disso, precisará pagar tudo que combinou quando assinou o contrato, inclusive os salários, mesmo que não conte mais com o jogador.

- Proteção para atletas jovens

Oscar corre chorando após marcar o gol do Inter em cima do Caxias, pelo Gauchão (06/05/12) - Agência Freelancer - Agência Freelancer
Imagem: Agência Freelancer
A CBF aumentou o prazo máximo dos contratos que podem ser assinados pelos jogadores menores de 18 anos que quiserem se tornar profissionais. Até agora, uma promessa de 16 anos só poderia firmar compromisso por até três anos. Essa limitação permitia que os clubes ficassem expostos aos assédios dos rivais no começo da carreira dos jogadores.

Agora, os clubes podem assinar por até cinco anos. Até os 21 anos do atleta, portanto, o clube formador estaria protegido contra aqueles que quiserem “roubá-lo” antes dele explodir. O problema é que essa regra só vale para o âmbito nacional.

Apesar de a CBF dizer que o prazo máximo é de cinco anos, a Fifa segue dizendo que é de trás. Como é a entidade-mor do futebol que regula o mercado internacional, um clube estrangeiro segue podendo aproveitar a fragilidade do contrato de um garoto de 18 anos, que acabou de surgir em um time profissional e em poucos meses poderia firmar um pré-contrato sem pagar nada ao lugar onde se formou.

O próprio regulamento da CBF aponta essa disparidade, indicando que, em cumprimento às normas da Fifa, o prazo de cinco anos não se aplica a clubes estrangeiros.

Exemplo e aplicação da regra – Oscar tinha 18 anos quando entrou na Justiça para romper com o São Paulo, no fim de 2009. O jogador alegou que seu contrato, de cinco anos de duração, era irregular. O argumento? Ele e seus advogados diziam que, de acordo com a Fifa, ele só poderia firmar compromisso por três anos.

A disputa se arrastou por dois anos, sendo que nesse meio tempo ele conseguiu, via decisão preliminar, transferir-se para o Inter. A briga só acabou com um acordo entre as partes que deu ao São Paulo parte da venda do meia para o Chelsea. Oscar, no entanto, nunca brilhou em campo pelo time que o formou.

Na regra atual, não seria assim. O novo regulamento da CBF permite que o contrato seja de cinco anos. Oscar não poderia reclamar disso na Justiça e, assim, não ficaria livre para mudar para o Inter. Se o Chelsea tivesse assediado o meia diretamente, porém, poderia levá-lo com base na Fifa.

- Notificações em pré-contratos

Wesley comemora gol do Palmeiras contra Chapecoense - Cesar Greco/Ag. Palmeiras/Divulgação - Cesar Greco/Ag. Palmeiras/Divulgação
Imagem: Cesar Greco/Ag. Palmeiras/Divulgação
A regra da Fifa diz que qualquer jogador pode assinar um pré-contrato com outro clube a seis meses do fim do seu compromisso atual. A CBF concorda, mas estabeleceu que o atleta deve avisar seu empregador que está negociando sua saída.

A notificação não implica concordância, ou seja, o clube que está perto de perder o jogador não precisa aceitar a proposta. Ele deve, no entanto, estar ciente do que está ocorrendo, para dar transparência ao processo.

Exemplo e aplicação da regra – Wesley tem contrato com o Palmeiras até o fim desse mês. Insatisfeito no clube, iniciou uma negociação às escuras com o São Paulo e acertou sua transferência. Todos os envolvidos, porém, negam até que o acordo possa finalmente ser firmado.

Pela nova regra, essa conversa devia ser do conhecimento do Palmeiras, ainda que ele não precisasse opinar no negócio. A ideia é preparar o clube que está prestes a perder o jogador para que ele se planeje para uma possível substituição.

- CBF como fiscal
A CBF decidiu adaptar seu sistema de transferências ao da Fifa, que exige documentos detalhados de cada contrato, todos armazenados online. Antes, os clubes só eram obrigados a ceder informações em caso de negócios internacionais. Agora, o farão em todos os casos.

Além disso, a CBF promete adotar uma postura de fiscalização das transferências, cobrando respeito ao veto aos investidores e investigando a existência dos clubes-empresas. Ao menos foi essa a promessa de Reynaldo Buzzoni, diretor de registros e transferências da CBF, em entrevista ao Arena Sportv.

Exemplo e aplicação da regra – Se cumprir a promessa, a CBF ajudará a combater um dos dribles mais prováveis que os investidores podem tentar para se manterem no esporte. Os chamados clubes de aluguel, que não disputam competições e servem apenas de ponte para disfarçar os investimentos dos empresários.

Clubes como o Rentistas, do Uruguai, constantemente foram usados em negociações sem que os atletas nunca tivessem entrado em campo por ele. Juan Figer, empresário de jogadores, contratava jogadores pela equipe estrangeira e os emprestava ou revendia. Dessa forma, lucrava pelos direitos econômicos como uma parte interessada e não como um terceiro, como proibiu a Fifa.

Com as informações de cada transferência em mãos, a CBF pode fazer essa verificação e impedir que a proibição aos investidores não seja driblada.

- Responsabilidade é dos clubes

10.out.2013 - Héverton comemora após marcar para a Portuguesa contra o Goiás pelo Brasileirão - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Imagem: Simon Plestenjak/UOL
Em seu novo regulamento de transferências, a CBF deixa claro que a responsabilidade pela verificação de eventuais irregularidades na escalação dos jogadores é dos clubes. Essa noção já era reconhecida no direito esportivo, mas nem sempre foi aplicada a ferro e fogo. Com o novo texto, a tendência é que fique mais difícil escapar da responsabilização que pode acarretar em perda de pontos.

Paralelamente a isso, a CBF anunciou uma modernização em seu sistema de registros, com o objetivo de evitar os casos recentes que criaram turbulência no futebol brasileiro. Agora a entidade estabelece que o jogador estará apto a atuar somente 48 horas depois de acertar sua condição na entidade. Além disso, ela se compromete a fazer uma dupla checagem dos dados enviados pelas federações estaduais.

Exemplo e aplicação da regra – A nova regra diminui a margem de argumentação de clubes como a Portuguesa, que em 2013 tentou se eximir de responsabilidade no caso Héverton, perdeu e foi rebaixada. Ao mesmo tempo, deve piorar as coisas para clubes como o Corinthians, que também se disse inocente no imbróglio com Petros no ano passado – a defesa apresentada pelo clube do Parque São Jorge, porém, saiu vencedora do STJD.

O caso Petros, aliás, também explica a mudança de procedimento da CBF. O volante teve seu contrato renovado pelo Corinthians durante o último Brasileiro. Seu contrato foi registrado na FPF em um sábado, mas entrou no sistema da CBF um dia antes. A suposta irregularidade despertou a ira de Inter e Grêmio, que entendiam que o clube paulista deveria perder pontos por isso.

Pela nova regra da CBF, a quarentena de 48 horas impediria problemas do tipo.

- Câmara de litígios

16.04.14 - Arouca, volante do Santos, em campo no jogo contra o Mixto pela Copa do Brasil - Marcello Zambrana/VIPCOMM - Marcello Zambrana/VIPCOMM
Imagem: Marcello Zambrana/VIPCOMM
Atendendo determinação da Fifa, a CBF estabeleceu a criação de uma Câmara Nacional de Resolução de Disputas para resolver pendências diversas envolvendo clubes e jogadores. O escopo de atuação do grupo vai de divergências em transferências a questões laborais, como disputas por direitos e imagem e salários atrasados.

A Câmara substitui um órgão similar que, nos últimos anos, tinha se ocupado apenas de disputas mais simples, como a de divisão de valores do mecanismo de solidariedade, que premia os clubes formadores com percentuais de transferências. Seu escopo inchado, porém, desperta dúvidas.

Três dos cinco advogados ouvidos pelo UOL Esporte apontam que a Câmara pode ter problemas para julgar casos trabalhistas. O regulamento da CBF diz que, para que questões laborais sejam arbitradas pelo órgão, é necessário que jogador e clube concordem. Ainda assim, é possível que a decisão não seja definitiva.

“Se o atleta não concordar com a decisão, ele pode tentar uma ação na Justiça do Trabalho como se nunca tivesse tido uma discussão na Câmara. Essas questões são de ordem pública. É uma situação de conflito com a legislação nacional, que diz claramente que é da competência da Justiça do Trabalho resolver situações laborais”, disse Leonardo Andreotti, especialista em direito esportivo.

Exemplo e aplicação da regra – Endividado e com salários atrasados, o Santos vê uma debandada judicial, com Arouca, Aranha, Mena e Leandro Damião pedindo rompimento dos contratos por conta das pendências financeiras.

Pelo regulamento da CBF, eles poderiam tentar resolver essa questão na Câmara, que é composta por dois representantes dos atletas, dois dos clubes e um da CBF. A vantagem seria uma resolução mais rápida – hoje, pendências de atrasos salariais podem durar anos ou até mais de uma década na Justiça comum.

O problema é que, como explicam os advogados, a decisão da Câmara poderia ser questionado no Judiciário.