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Raí lembra que até torcida do Corinthians vibrava quando ele tocava na bola

Bruno Doro

Do UOL, em São Paulo

13/02/2015 06h00

Imagine a cena: estádio do Morumbi lotado para um São Paulo e Corinthians, ainda nos tempos de clássicos com torcidas divididas. O grande nome do elenco são-paulino dá um passe surpreendente e todos os espectadores vibram com a genialidade. Inclusive os corintianos.

Raí foi campeão da Libertadores. Do Mundial de Clubes. Da Copa da Uefa. Da Copa do Mundo. Mas quando o UOL Esporte perguntou qual lance mais marcava sua memória, ele até falou de gols e comemorações de título. Mas a única jogada que narrou, com riqueza de sensações, envolveu a reação de uma torcida que não era a dele.

Não poderia ser diferente. Desde a aposentadoria, há quase 15 anos, o ex-camisa 10 do Morumbi manteve uma trajetória bem diferente daquela típica de um jogador de futebol. Nunca pensou em ser técnico. Dirigente? Dispensou as oportunidades que apareceram. Preferiu, também, não ser comentarista. Hoje, é sócio de uma empresa que administra, entre outros negócios, uma sala de cinema.

Além disso, mantém a Gol de Letra, uma ONG que trabalha com crianças carentes, e é um dos fundadores da Atletas pelo Brasil, uma organização que luta por mudanças na estrutura do projeto esportivo brasileiro. Superou o futebol, tornou-se influente politicamente. Ele falou com o UOL sobre futebol, projetos políticos e, claro, o São Paulo. Confira:

TORCIDA DO CORINTHIANS JÁ SE RENDEU A MINHA HABILIDADE

Qual o lance mais marcante da sua carreira?
Eu lembro de lances diferentes. Claro que tem aqueles que se repetem na TV pela importância. Mas tem muito lance diferente que vem à cabeça. É uma coisa muito louca e muito gostosa. Quanto mais tempo distante dos gramados, mais você percebe o tamanho do privilegio que representa ter tido o dom de jogar. Um que eu me lembro foi em um São Paulo x Corinthians. Eu estava de frente para a torcida do Corinthians, perto da linha lateral. Foi um lance de jogo, não um gol, mas são os prazeres que a gente lembra... Eu estava de frente para a torcida do Corinthians. A bola subiu, tinham dois jogadores chegando para me caçar. E eu percebi que tinha um jogador do São Paulo chegando. Fingi que iria matar no peito e toquei de cabeça para trás. E aí ouvi a torcida do Corinthians gritar "oh". Surpreendi até a torcida... São exemplos de momentos que, vira e mexe, passam pela cabeça.

São 15 anos de aposentadoria, certo? Porque não voltou a trabalhar diretamente com o futebol nesse período?
São 15 anos [após o fim da carreira] no meio do ano. Tive algumas propostas [para voltar ao futebol], mas, por vontade própria, quis passar dois anos longe do universo do futebol. Sempre tive interesses diferentes e o futebol consome. Tive algumas participações, no São Paulo e no Paris St. Germain, como consultor, mas a minha vida e as novas experiências foram me levando para outros projetos. Não necessariamente fora do esporte, mas fora de um clube. Tive uma experiência em um projeto social, que foi muito rica, no Gol de Letra, que começou há 16 anos. É um projeto bem-sucedido, que influenciou politicas públicas e ajudou milhares de crianças e adolescentes. E a isso me levou a ser um dos fundadores da Atletas pelo Brasil, que é uma ação para influenciar politicas públicas por meio da força de mobilização dos atletas. É minha maneira participar. Comecei a perceber que se tivesse envolvido com um clube, com um projeto apenas, ia ficar muito restrito. Com meu perfil, acho que posso contribuir muito mais para a sociedade da forma como atuo. E quero investir ainda mais. Quero estudar, me formar, ter mais experiências práticas e colocar isso em parte da minha carreira e ação politica.

Mas, como ex-jogador, você deve acompanhar o futebol. Como você vê a situação atual do esporte no Brasil?
Existe um caminho sem volta para o profissionalismo na gestão dos clubes. Quanto mais tempo demorar, mais tempo o futebol brasileiro vai ficar patinando. Pode até mesmo regredir. Não falo nem em discutir um modelo maior, com maior responsabilidade dos clubes. O Gustavo [Oliveira, seu sobrinho que é gerente executivo no São Paulo] é um exemplo dessa modernização. E você vê a gestão no Palmeiras mudando, chegando com outra visão, tentando ser mais responsável. A mesma coisa acontece no Flamengo. Os clubes estão falidos porque o sistema todo está falido. Na estrutura atual, as decisões em um clube são tomadas por poucas pessoas. E essa pouca transparência [nas decisões] inibe investimentos. E isso tem impacto econômico. Se você existir profissionalismo, transparência e um novo modelo associativo, político e de gestão do futebol profissional, vai continuar inibindo investimento. O impacto na gestão causa impacto esportivo e também econômico.

Mas dentro de campo também existe um atraso? Muitos falam de caos tático, principalmente após o que aconteceu na Copa do Mundo...
Você vê uma evolução muito grande lá fora, que não vê aqui. São ciclos centrados em treinadores que revolucionaram o esporte nos últimos anos. E o Brasil ficou fora disso. Você tem o Mourinho, desde o Porto. O Guardiola, o Del Bosque. São técnicos que mudaram o futebol. Olhe o Guardiola: mesmo sem ser treinador de uma seleção, foi duas vezes campeão do mundo. A base da Espanha era o Barcelona. E a base da Alemanha era o Bayern. Tudo bem que ele não fez o Bayern sozinho, mas influenciou muito, na movimentação, no entrosamento. A gente ficou muito longe dessa evolução tática. E mais do que isso: não conseguiu ainda enxergar renovação, novos treinadores. E isso também é reflexo falta de investimento em novos profissionais.

O Brasil não tem novos treinadores, então?
Uma pessoa de quem gosto muito, e que está acrescentando algo novo, é o [técnico da seleção olímpica Alexandre] Gallo. Joguei com ele e sempre conversei sobre o que ele pretendia. Sei o quanto ele investiu, o quanto estudou. Está tentando fazer seu trabalho na CBF, mas é uma exceção. Vários da nova geração não vingaram. E não se vê novos [nomes]. Existem grandes treinadores no Brasil. Mas são poucos. São os mesmos há 20, 30 anos. Quando você pega o número de jogadores brasileiros com sucesso no exterior e compara com o número de treinadores brasileiros com sucesso lá fora, não precisa de muita análise para tirar uma conclusão. Nenhum futebol no mundo evolui sem bons treinadores. E voltamos a uma discussão longa e repetitiva de que não existe plano de formação de profissionais para trabalhar no futebol, incluindo treinadores.

Mas você não vê isso apenas nos técnicos. O fato do Brasil ter mais defensores com destaque do que atacantes no futebol europeu também é sintomático, certo?
Isso não é novo. O Brasil começou a ter grandes defensores já na minha época, com Ricardo Gomes, Ricardo Rocha, Aldair, Mozer... Dava para escalar dez defesas para a seleção. Mas não deixávamos de ter grandes jogadores no ataque. Eu tenho uma teoria de que, com a crise econômica [dos clubes] e a carência de atletas, qualquer jogador de exceção chega ao profissional com 17, 18 anos. Isso é diferente da minha época. No juvenil, o Botafogo de Ribeirão Preto tinha quatro, cinco jogadores com potencial de chegar à seleção brasileira. Eu e o Boiadeiro, por exemplo, chegamos. Mas tinha um time com muitos bons jogadores, e, mesmo assim, demorava-se muito para chegar ao profissional. Então, a gente jogava com um time de bom nível técnico durante toda a nossa formação. Mas hoje, se o cara tem potencial, a carência é tão grande que ele chega ao time profissional com 17 anos. E o que acontece? A qualidade do jogo nos campeonatos juvenis e juniores cai muito, já que os melhores já subiram. Quando você tem um time de qualidade técnica baixa nas categorias menores, muda estilo de jogar. Tem de ser um jogo defensivo, de contra-ataque, truncado. Você tem de botar mais empenho na marcação do que na criação. Aí acaba fazendo com que o nível técnico como um todo caia bastante.

O ideal é adiar a promoção dos atletas, então?
A formação dos novos jogadores profissionais é prematura. Têm treinadores que trabalham melhor isso, tem os craques, jogadores de exceção, como o Neymar. Depende muito da estrutura do clube. Mas, com certeza, muitos jogadores, por subirem muito rápido, acabam prejudicados. Se não for excepcional, não consegue. Se for de qualidade média e chegar ao profissional com 17, 18 anos, pode comprometer a carreira como um todo. Se você não é genial, vai ter de se adaptar ao jogo mais duro do profissional, mudar suas características. Se ficasse mais tempo entre os juvenis, existiria uma evolução mais natural, mais voltada ao talento, menos à sobrevivência em um ambiente avançado demais.

Falando de um caso concreto: como você vê o São Paulo atual?
Se você pegar a média dos clubes no Brasil, [o São Paulo] é o que menos se desfez de jogadores. Já tinha uma base boa, que vinha de um bom campeonato, que tinha sido melhor do que nos últimos anos. E tentou investir em alguns pontos fragilizados. Desde o ano passado, tem uma boa politica de contratações, de buscar o equilíbrio do time. Sem dúvida entra como favorito. Mas daí a ganhar, é um trabalho duro. Não é longo, porque Brasil tudo é a curto prazo. Mas é um trabalho duro, que tem de mostrar evolução.

E qual sua opinião sobre a aposentadoria do Rogério Ceni?
O Rogério é uma exceção. A autocrítica dele é tão grande que não o deixaria continuar se não sentisse que poderia seguir em bom nível. E ele continua em um bom nível. Foi um dos melhores do São Paulo no ano passado, com atuações decisivas. E vai fazer isso nos campeonatos que disputar. Isso é o mais importante. Enquanto ele tem prazer e capacidade para fazer o que faz, ele segue. E goleiro é uma posição que permite isso. E ele continua eficiente e muito bom. É um dos melhores do São Paulo. Ele sabe que [o adeus aos campos] está próximo. Mas espero que os últimos campeonatos sejam como ele merece. E, se possível, com grandes títulos.

Você foi campeão por onde passou. Com o São Paulo foi campeão mundial e da Libertadores. Com o PSG tem o título da Copa da Uefa. Com a seleção ganhou a Copa de 1994. Faltou alguma coisa?
Talvez não ter jogado outra Copa. Durante a carreira, eu não pensei nisso. Mas hoje, vendo jogadores, como Kaká, como vai ser o Neymar, grandes atletas, que jogaram três, quatro Copas do Mundo, eu penso que só tive uma. Estou com 100% de aproveitamento, então não dá pra dizer que é frustração, mas ficou faltando uma. Talvez a da França de 98. Eu jogava lá, a minha história era com a França. Seria a cereja no bolo.

Hoje, você faz parte de um momento novo do esporte, em que os atletas estão mais ativos na luta pela evolução do esporte, um movimento que tem no Bom Senso e no Atletas pelo Brasil suas faces mais atuantes. Porque aconteceu agora?
Isso faz parte do amadurecimento da democracia, em qualquer setor. O esporte tem uma dificuldade a mais. Em qualquer outra carreira, você tem 40 anos. No esporte, são 15. E qualquer pessoa que esta envolvida com o esporte sai aos 35 anos. Existe a dificuldade de continuidade. Mas essa cultura, que começou lá atrás, mesmo antes do Sócrates, vai formando uma geração com visão diferente. Ainda bem que existem pessoas como a Magic Paula, a Ana Moser, o Lars Grael, que sempre se posicionaram e tem ações concretas junto à população menos favorecida. São experiências práticas combinadas com as de atleta. É uma visão mais ampla. Nós, do Atletas pelo Brasil, esperamos influenciar outra geração, assim como o Bom Senso vai influenciar. O que queremos é que esse pessoal que está na Taça São Paulo veja o Bom Senso e o Atletas Brasil ganhando força e pense em, também, participar. Para que isso crie uma cultura. Vamos fazer com que esse trabalho tenha uma participação mais ativa e, principalmente, mais efetiva.

O Atletas, recentemente, criticou a nomeação do ministro do Esporte, George Hilton. E o resultado foi uma promessa do próprio ministro de que vocês seriam ouvidos...
Foi uma questão de critérios. Em um momento importante do esporte nacional, em que pensamos maneiras para aprofundar a discussão sobre a organização do esporte nacional, da politica de esporte nacional, de como ter legado pós-Olimpíada e Copa, um cargo tão importante foi definido por critérios políticos. O esporte tem de ser encarado de forma diferente. É importante no desenvolvimento do país, no desenvolvimento humano, na educação, na saúde. Existem bons projetos por todo país. Mas em termos da estrutura, de pensar global, pouco avançamos. É positivo esse início de conversa com o novo ministro. Com o [Rebelo, ex-ministro do Esporte], existiu a conversa, mas ele estava no meio da preparação da Copa, sofrendo pressão, e nosso diálogo não caminhou. Agora, conseguimos o compromisso de que seremos ouvidos. Deixamos claro quais eram as nossas propostas e o que queremos. São condições que devem ser cumpridas para que a gente continue conversando.

Essa conversa com o Ministério é um exemplo de que aquela imagem do atleta alienado, apolítico, está mudando?
Isso está mudando porque estamos mostrando maturidade. O Atletas, por exemplo, existe há sete anos e passou por um processo de amadurecimento interno. Descobriu como se organizar enquanto associação. E tivemos conquistas concretas. A partir do momento em que esse amadurecimento se mostra sólido, as posições ficam mais firmes, os objetivos são definidos e são estabelecidas metas, que é o que a gente sempre viveu no esporte, sendo traduzido para a ação política. Temos de mostrar nosso peso no meio politico e para a opinião pública, mostrar que estamos colocando nossa "expertise" e nossa vontade de colaborar em prol do esporte nacional. E a partir do momento em que isso ganha força, em que mostramos conteúdo, começamos a ser ouvidos. Agora, é visibilidade a isso. Quais são as nossas propostas? E como vamos avançar? Acredito que tem de haver discussão sobre o esporte no país. E nós temos de participar. Se isso não acontecer, vamos ter uma visão crítica. Estamos mostrando preparo para participar de maneira propositiva e mais contundente.