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Ele esteve na Copa. Hoje, joga segundona inglesa com preleção de Elton John

Justin Setterfield/Getty Images
Imagem: Justin Setterfield/Getty Images

Caio Carrieri

Do UOL, na Inglaterra

23/02/2015 12h00

Por fora, o acanhado Vicarage Road é apenas mais um estádio de futebol no norte de Londres. Pequenas lojas, lanchonetes e bares movimentam o comércio da região. Por dentro, a casa do Watford, da Segunda Divisão inglesa, carrega muita história desde 1922, ano de sua construção, e presta homenagem ao seu torcedor mais ilustre: Elton John. O cantor britânico foi proprietário da agremiação entre as décadas de 70 e 80, quando o time atingiu seu auge ao ser vice-campeão nacional em 1983. Atualmente, o ícone pop é presidente de honra dos Hornets, onde o goleiro Gomes, convocado por Dunga para a Copa de 2010, voltou a ter a chance de jogar com frequência no ano passado após perder espaço no Tottenham, equipe que defendeu por seis temporadas.

O jogador de 33 anos recebeu a reportagem do UOL Esporte em um dos camarotes do estádio. Mesmo há mais de uma década atuando na Europa, com passagens por PSV (HOL), Tottenham (HOL) e Hoffenheim (ALE) depois de despontar no Cruzeiro, Gomes mantém o simpático sotaque mineiro de João Pinheiro (MG). Na entrevista a seguir, ele revela detalhes do dia em que Elton John deu preleção para a equipe, chama de "covardia" o tratamento do Tottenham a Paulinho e entrega uma história hilária de Romário nos tempos do PSV.

UOL Esporte: Como você veio parar num time da segunda divisão?
Gomes: Não encontrei uma proposta que me chamasse tanta atenção como essa. Não digo financeiramente. Recebi propostas melhores fora da Inglaterra. Me motivaram o projeto que eles têm aqui para o clube, e o desafio diferente de tirar um time da Segunda para a Primeira Divisão. Estou do outro lado da rua também. Do Tottenham, da onde eu morava para onde eu moro é praticamente do lado. As minhas crianças também estão adaptadas na escola, e acho que eu não estava preparado ainda para sair da Inglaterra de uma hora para outra. Tive uma proposta do próprio Tottenham para renovar o contrato por mais alguns anos e disse não, porque eu queria jogar.

Olhando daqui do camarote dá para ver o nome do Elton John na tribuna do outro lado. Você já encontrou com ele?
Gomes
: Já, ele esteve aqui no estádio para a inauguração de um dos “stands” com o nome dele. Falou que segue o time da onde ele estiver, seja pela TV ou pelo celular. Ele sempre está com o time. Deu até uma preleção para nós. É um cara muito simpático e é muito bom tê-lo como torcedor.

Como e onde foi essa preleção?
Gomes
: No vestiário. Nós chegamos para uma partida contra o Wigan em dezembro e, antes de entrarmos para um jogo, ele já estava lá nos esperando. Fez questão de cumprimentar um por um, sabia o nome de todo mundo. Ele costuma ligar toda semana para o treinador para saber como que está o time. Ele é muito próximo do clube e tem bastante contato com o pessoal.

Como foi o seu contato com ele?
Gomes: Ele falou para mim “O seu país é incrível” (risos). Ele ainda comentou que havia tocado no Brasil há pouco tempo, em Brasília, Porto Alegre. Eu respondi “Muito obrigado! Ouvir isso de você me deixa ainda mais feliz”.

Você costumar ouvir as músicas dele ou não é muito o seu estilo?
Gomes: Não é muito do meu gosto, mas quando tocam as mais famosas eu sei que são dele. É um cara conhecido mundialmente.

Como que é para você jogar no time dele?
Gomes: Todo mundo fala comigo “Você joga no time do Elton John, né?”. Essa é a conexão. É muito legal, uma satisfação muito grande poder fazer parte de um clube ligado a um ícone da música.

Pelo o que ele falou, deu para perceber que ele entende mesmo de futebol?
Gomes: Ele entende muito, sim. Ele já foi o presidente de fato, já esteve a frente das contratações. Não deu tempo de ele dar muitos indícios, mas pelo o que ele falou para nós, percebi que ele está muito por dentro do futebol.

Seu contrato vai até maio. Pensa em renovar?
Gomes: Quando eu assinei, eles queriam me oferecer quatro anos de contrato, mas eu falei que eu queria um, porque o principal objetivo é subir para a Primeira Divisão. Se eu conseguir isso, a renovação é muito fácil. Pelo o que eu vi aqui, pela forma que eu fui recebido e como as coisas andam, eu renovaria toda hora. Mas meu primeiro objetivo da cabeça é a Primeira Divisão.
Nota da redação: A 14 rodadas do fim do campeonato, o Watford está na sexta posição, com 56 pontos. O líder é o Derby, com 62. Os dois primeiros têm acesso direto para a Premier League. A última vaga é decidida em mata-mata disputado entre o terceiro, quarto, quinto e sexto colocados. O Watford saiu da elite em 2007.

Existe a chance de uma aposentadoria no Watford ou é muito precoce?
Gomes: É uma possibilidade. Eu acho que eu tenho uns quatro, cino anos de futebol ainda, mas a gente nunca sabe. É precoce falar de aposentadoria, porque não sei como meu corpo vai reagir daqui um ano ou daqui a alguns jogos.

É a primeira vez que você joga a Segunda Divisão na carreira. O que tem de novo?
Gomes: É um desafio diferente, cara. O meu desafio é voltar para onde eu pertenço. O nível que estou jogando hoje é de Primeira Divisão, com todo respeito à Segunda, que é um campeonato fantástico, disputadíssimo. Os seis primeiros colocados estão bem próximos um do outro.

Como que você compararia um acesso com o Watford com os outros títulos que você tem na carreira?
Gomes: Eu colocaria como uma das minhas conquistas também, com os cinco títulos que eu ganhei com o PSV, os quatro jogando pelo Cruzeiro, duas Copa das Confederações que ganhei com a seleção. É claro que cada uma com um sabor especial. Tem muitas equipes tentando, com projeto, mas imagina eu subir logo no meu primeiro ano no clube?

Você está há 11 anos na Europa, num clima totalmente diferente do Brasil. Como goleiro, você tem algum segredo para manter as mãos aquecidas, principalmente durante o inverno europeu?
Gomes: Luva cirúrgica. Eu uso desde o Tottenham. Eu não tinha descoberto isso ainda e tentei um dia. No jogo eu não uso tanto porque você tem que sentir mais a bola. É complicado. Eu me acostumei com tudo fora do país. Na Inglaterra, a dirigir do lado direito, acostumei com as línguas diferentes em todos lugares que eu joguei, mas não me acostumei com o frio. Infelizmente é muito difícil lidar com isso, principalmente para mim, que preciso estar 100% aquecido.

Como surgiu a ideia da luva?
Gomes: Eu tentei. Eu estava no centro de treinamento do Tottenham, vi a luva no departamento médico e resolvi usar. Deu certo, porque consigo manter a temperatura da mão. Antes, ela estava congelando e eu não podia passar mais frio.

Como você compara o treino de goleiros na Europa e no Brasil?
Gomes: Nós estamos muito avançados. O melhor que eu já tive foi no Cruzeiro, o Flávio Tênius, que hoje está no Vasco. Peguei o Wendell na seleção brasileira, excelente também. Mesmo velhinho daquele jeito, ainda dava treinos maravilhosos. Estamos bem à frente da escola inglesa, por exemplo.

O que há de diferente?
Gomes: Eu estava conversando com o Júlio César esses dias, quando estive em Portugal. Estávamos comentando que os goleiros brasileiros têm técnica, os outros não têm, eles fazem defesa. Essa técnica se deve muito aos treinadores de goleiro, o tipo de treinamento. Hoje eu tenho a felicidade de treinar com um cara italiano, mais ou menos com o mesmo estilo da escola brasileira. O goleiro tem que treinar a dinâmica, fazer situação de jogo, e muitas vezes eu peguei alguns treinadores de goleiros na Europa que eram robóticos. Você faz muitos treinos que não vão acontecer no jogo, então você mais mantém a forma física do que evolui a parte técnica. Nós somos goleiros muito técnicos e ágeis, por isso temos de tentar manter isso.

Você já teve alguns apelidos na carreira: Homem-Elástico no Cruzeiro, Goleiro Grande no PSV...Algum outro?
Gomes: Octopus também. É o polvo, que tem vários tentáculos, e a bola não passa. Isso começou com Ronald Koeman, na minha época do PSV. Em uma entrevista após uma grande partida minha contra o Vitesse, ele falou “O Gomes é fenomenal, parece um octopus. Não passa nada! Todo lugar em que a bola vai, a mão dele tá lá”. Até tive uma camisa com meu desenho e vários braços na época do Tottenham.

Como você vê o trabalho do Koeman no Southampton? Mesmo num time modesto, ele bate de frente com os grandes por vaga na Liga dos Campeões.
Gomes:  Treinador holandês, cara. Eles sabem fazer futebol. Você vê o Van Gaal. Ele está acertando o Manchester depois de um ano péssimo do clube. O Koeman para mim é um talento, e eu já sabia disso, por causa da minha época na Holanda. Eu tive outro holandês, Gus Hiddink. O cara é gênio. Além de viver o futebol, ele sabe fazer o futebol. Futebol não é só gastar dinheiro, você tem que saber fazer os caras jogarem. O Mourinho gasta, mas sabe fazer os caras jogar.em É o caso do Koeman. Saiu a galera toda do Southampton, ele remontou a equipe e está jogando melhor do que na época do (Mauricio) Pochettino (atual técnico do Tottenham).

Além do Koeman e do Hiddink, você também teve o Luxemburgo naquele Cruzeiro fantástico de 2003. Qual foi o melhor?
Cara, eu admiro demais o Luxa, muito mesmo. Ele me lançou e me bancou em todos os momentos. Chegava para mim e falava “Os caras tão falando aí que vou contratar Marcos ou outro goleiro, não liga. Você é meu goleiro e pronto”. Ele é um grande entendedor de futebol e nos fez ganhar os títulos mais importantes pelo Cruzeiro, a Tríplice Coroa que só o Cruzeiro tem. E tem o Gus Hiddink, que me recebeu e me colocou para jogar no PSV. Ele me ajudou muito com a língua também, porque falava espanhol. Na hora que ele sentia que eu estava sob pressão, ele me tirava um pouco. E ele foi muito importante na minha vida, porque, quando eu cheguei no PSV, eu descobri que o meu pai tinha câncer de próstata. Fiquei muito abalado. Ele falou “Meu filho”, lembro bem que ele me chamou de meu filho. “Você quer voltar para o Brasil? De quantos dias você precisa para ficar com o seu pai e sua família? Te dou o tempo que você precisar”. Eu disse que só precisava visitar a minha família, ver como o meu pai estava e já voltava. É um craque dentro e fora de campo.

Por que você acha que o Luxa decaiu tanto nos últimos anos? Você fala com ele ainda?
Falei com ele três vezes: duas em Belo Horizonte (MG), quando ele estava no Atlético-MG, e por telefone uma vez. Ele nunca deixou de ser o treinador que é. Talvez a circunstância e a situação das equipes não permitiram que ele fosse bem. Mas ele tirou o Flamengo do rebaixamento no ano passado. Era um forte candidato a cair, mas ele salvou.

Quando ele te ligou, ele queria te levar para qual clube?
Para o Grêmio, mas na época o Tottenham bloqueou a minha saída, como muitas vezes.

Nesse tempo todo na Europa, você ficou perto de voltar para o Brasil em qual clube?
Conversei com o Atlético-MG uma vez, em 2012, mas naquele momento era muito difícil. Acho que em qualquer momento, porque fazer a história que eu fiz no Cruzeiro...Respeito o Atlético-MG como respeito qualquer outro time, mas naquele momento não era importante para mim. E eu não estava preparado para voltar. Em 2013 conversei com o Ricardo Gomes, no Vasco, mas eles não tinham dinheiro para pagar o Tottenham, que não iria me liberar por empréstimo. E agora com o Santos na última janela, mas não poderia deixar meu time não.

Nesse tempo na Europa, qual foi a maior loucura que você fez para matar a saudade do Brasil?
Fiquei um dia no Brasil e voltei. Eu estava no PSV, minha esposa tinha voltado para o Brasil para ganhar menina e eu não aguentei. Em três dias, eu fui e voltei. Fiquei 24 horas no Brasil. A gente tinha três dias de folga, e fui nesse período. Só de eu pisar no Brasil...a saudade é muito grande. A minha família inteira está lá e ainda dá vontade de fazer loucuras assim.

Sobre o Tottenham, você ficou sem espaço, e o Paulinho não vem tendo muitas oportunidades. Por quê?
É uma covardia o que os caras fazem com ele, como foi covardia o que eles fizeram com vários jogadores. Eles matam a carreira do jogador que tem potencial. O Sandro também teve que sair para jogar de novo. Eles deveriam ter respeitado mais o Paulinho. O jogador nunca é maior do que o clube, em nenhuma situação, mas você tem que respeitar, pô. O Paulinho saiu do Corinthians, era o cara, estava na seleção, chegou jogando muito bem enquanto o André Villas-Boas estava lá, mas depois por um motivo que eu desconheço começaram a colocar ele de lado. Nem ele mesmo sabe. Só porque o cara (técnico Mauricio Pochettino) é argentino? Essa rixa não pode existir mais no futebol. O Paulinho não pode ficar no banco, porque ele faz as coisas diferentes. O Tottenham também atrapalhou ele na seleção, tenho certeza disso.

Na sua visão, quem atrapalha é a diretoria ou o treinador?
O jeito que é o clube, né? Tanto que, se você colocar no papel, o Tottenham não pior do que o Southampton. Nunca. Com os jogadores que tem ali você pode montar uma equipe para ganhar o Campeonato Inglês. Mas as coisas não funcionam lá, por todos os lados.

O seu problema foi com treinador ou diretoria?
O meu problema foi com o então treinador, Harry Redknapp, e depois com a diretoria que não me deixou sair (risos).

Lá você perdeu posição para o Brad Friedel, goleiro americano de 40 anos na época. Como foi?
Ele era amigo do treinador, né? (risos). Eu nunca tive problema com Friedel, porque a decisão não era ele que estava tomando. Eu sabia que eu poderia estar jogando, e esse é o pior. Comecei a temporada super motivado. Quando cheguei no vestiário antes de um jogo contra o Manchester United, o Harry vem para mim, 20 minutos antes de começar a partida, e fala “Você não vai jogar hoje, quem vai jogar é o Friedel”. E eu tinha jogado no meio de semana pela Europa League. Foi frustrante. Eu não quis aceitar e isso me atrapalhou muito. Eu recusei até o banco de reservas. Falei para o Harry “Para você eu não jogo mais”.

Antes, você estava no PSV. Ao menos três figuras do Brasil jogaram lá: Romário, Ronaldo e Vampeta. Qual a história mais marcante te contaram sobre eles?
Do Romário (risos). O PSV ia viajar duas horas de ônibus numa sexta-feira para o jogo mais longe fora de casa, mas o Romário se recusou a ir. No dia seguinte, ele foi de carro, chegou na hora da preleção, jogou e fez dois gols. Na segunda-feira, ele foi na sala da diretoria e apresentou o recibo do combustível e do McDonald's. É um fenômeno (risos)!

Dos times que você defendeu, qual foi o jogador mais inteligente em campo?
Difícil, hein? Joguei com um monte de fera. O Alex jogou muito no Cruzeiro, decidia todas as partidas. Outro cara que eu admiro muito é o Phillip Cocu. Ele mudava o jogo em um passe. Era um volante que marcava muito bem, mas decidia lá na frente. Já estava mais velho na época, mas extremamente inteligente. Ainda posso falar do Ronaldinho, do Kaká, do Modric e do Bale no Tottenham.

Quais são as suas principais lembranças da seleção? E a volta do Dunga, que te levou para Copa da África?
O Dunga voltou para o lugar de onde ele não deveria ter saído. Só que no momento estava muito turbulento para ele. É um cara que conhece demais a seleção, pela história que ele tem lá dentro. Foi bom esse tempo para ele, porque serviu para amadurecimento. Fico feliz de tê-lo como treinador da seleção de novo. Claro que é precoce dizer, porque foram apenas alguns amistosos, mas já dá para falar que a seleção está com a cara dele.

O que você mudaria na seleção na Copa de 2010?
Nada. A nossa preparação foi excelente. O Dunga tentou isolar a gente e foi muito bom para a cabeça. Aquilo ali contra a Holanda foi um apagão, não acontece todo dia pelo nível de jogadores que nós tínhamos. O vestiário parecia um velório depois da eliminação.

Se na África foi apagão, o 7 a 1 foi o quê?
Aquilo ali não pode acontecer. É inaceitável. É o futebol brasileiro que está em jogo. Não tínhamos jogadores experientes suficientes para poder segurar a onda quando o negócio começa a pegar. Copa do Mundo é totalmente diferente. A seleção era muito jovem para um Mundial. Todos os brasileiros sofrem com aquilo. Nós, jogadores brasileiros que estamos fora do país, sofremos. Todo mundo faz o sete toda hora (sinaliza com as mãos): adversário em campo, os caras do clube. Vou fazer o quê? Não posso fazer nada.