Topo

Como um chefe odiado por craques e "anti-família" reconstruiu o Barcelona?

Luis Enrique e Neymar se desentenderam. Agora, o primeiro abraço aconteceu - Paco Puentes/EFE
Luis Enrique e Neymar se desentenderam. Agora, o primeiro abraço aconteceu Imagem: Paco Puentes/EFE

João Henrique Marques

Do UOL, em Barcelona

22/05/2015 06h00

Dez meses. Foi esse o tempo que durou parar Neymar dar o primeiro abraço em Luis Enrique durante o convívio de ambos no Barcelona. A cena comum no futebol, sobretudo em "elencos fechados e família", só aconteceu depois da conquista de um título, na comemoração do Espanhol, no último final de semana. Já com o maior craque da história do clube, então, é ainda pior. Lionel Messi e seu chefe jamais passaram de um aperto de mãos. Quem sabe o primeiro abraço venha após a eventual conquista da Liga dos Campeões.

Mas isso de nada importa para o treinador contratado para reestruturar uma equipe vencedora nos últimos anos, mas que vinha na descendente e de uma temporada com apenas um título (a Supercopa, em dois jogos). Luis Enrique é quase que odiado dentro do elenco e totalmente avesso ao estilo "paizão". Quase não conversa com os pupilos além de das instruções táticas, e incomoda os comandados a vigia do treinador na vida pessoal de cada um.  Ainda assim, o elenco venceu o Nacional e pode conquistar a famosa tríplice corôa, já que está nas finais da Copa do Rei e Liga dos Campeões. Mas como o comandante consegue resultados expressivos sem existir o famoso "tete a tete"?

A explicação está na junção de fatores antes questionados e que deram resultado positivo. Principalmente a insistência em trabalhos táticos exaustivos e a obsessão por que cada um cuidasse da parte física fora das quatro linhas. As condutas que tanto incomodavam, trouxeram resultados ao time e fizeram com que os questionamento esfriassem.

Os trabalhos específicos e exaustivos de bola parada é um exemplo do que irritava e passou a ser admirado pelo elenco por conta dos vários gols. Além disso, alterar e poupar jogadores a contragosto com foco na plenitude física também não pode ser mais questionado. O time está sem desfalques para encarar os três jogos finais da temporada. O fato de não aceitar ver uma ordem descumprida e penalizar com banco de reservas se for preciso também gerou ódio. Só que o fez ganhar respeito, mesmo que originado de um pavor. 

“Não vou alimentar polêmicas. Só que não preciso ser amigo de ninguém”, disse Luis Enrique em janeiro deste ano logo após ver na briga com Messi o ápice do mau relacionamento com o grupo.

O treinador, de fato, não é amigo de Messi. Pouco conversa com o argentino, e o irritou demais ao castigá-lo com banco de reservas por atraso em treinamento e exigir que ele atue na faixa central do campo quando o craque achava melhor jogar pela direita. O relacionamento agora, ao menos, é pequeno, só que o argentino viu o treinador o mudar de posicionamento pouco depois.  
 
Com Neymar a irritação máxima aconteceu quando foi substituído pela 14ª vez na temporada. Desde então, o brasileiro chegou ao melhor momento da temporada atuando os 90 minutos de dez jogos seguidos, e marcando dez gols.
 
“O Luis Enrique manda mais que Messi, obviamente. Ele é o treinador e não há ninguém que consiga se importa a ele. É o chefe, ainda que o Leo (Messi) tenha muito peso no vestiário”, comentou Piqué. 
 
O zagueiro foi outro que teve problema grave de relacionamento como o técnico. Em um vídeo amador, Piqué foi flagrado alcoolizado discutindo com guardas de trânsito na saída de uma discoteca em Barcelona. Luis Enrique não só o multou, como o colocou em time reserva. Nem mesmo Guardiola tinha sido tão duro na conduta com os jogadores.
 
Luis Enrique não tolera atrasos, vida noturna em semana de jogos importantes e controla o peso de cada jogador do elenco. Para ele, o cardápio da nutricionista do clube tem que ser seguido à risca. O técnico que pratica triátlon por puro hobby leva a intensidade do esporte para o trabalho. Os longos treinamentos muitas vezes irritavam os jogadores. Quando tudo parecia terminado lá estava Luis Enrique posicionando os atletas para atividade de bola parada. Jogadas eram repetidas exaustivamente, e muitas vezes uma mistura de titulares e reservas que atordoavam o elenco. Deu certo.
 
“Bola parada: de debilidade do Barcelona a recurso chave”, diz a manchete de uma reportagem que analisa o título espanhol do Barça no jornal espanhol Marca. Foram 14, dos 108 gols do time vindos desta forma. Como os do zagueiro Mathieu de cabeça após cobrança de falta nas vitórias chave em sequência contra o Real Madrid por 2 a 1 e o Celta de Vigo por 1 a 0.
 
Aos poucos, o elenco do Barcelona foi ganhando admiração por Luis Enrique. O treinador solitário, que se abraçava somente ao preparador físico para comemorar os gols, tomou banho de champagne no vestiário após o triunfo do título contra o Atlético de Madrid (1 a 0, no Vicente Calderón).    
 
“Sem abaixar a cabeça, sem admitir erro, o Luis Enrique foi gerindo egos e, aos poucos, fazendo o que os jogadores queriam. Parece incrível que tenha chegado até aqui desse jeito: como um dos maiores responsáveis pelo sucesso do time na temporada”, disse o jornalista catalão Brunno Alemany, da rádio Cadena Ser.
 
Ver Luis Enrique consagrado por mídia e torcedores era algo muito improvável até alguns meses atrás. A imprensa local não gostava do tom irônico e muitas vezes rabugento nas entrevistas. Todos trabalhavam com notícia de demissão ao fim da temporada mesmo com a possibilidade de títulos. Os fãs do Barça o vaiaram em jogos no Camp Nou na época em que o atrito com Messi era forte. Hoje, tudo mudou.    
    
Ao chegar no clube na madrugada de segunda-feira, pouco após a festa do título em Madri, o comandante desceu do ônibus do Barça e correu para o carro. Ele não esperou um bloqueio policial ser posicionado na rua para deixar o estacionamento. Saiu sozinho, buzinando, comemorando. O veículo foi parado por vários fãs que gritavam o seu nome. O atual Barça viu um ídolo improvável nascer.  
 
“Ele é o melhor treinador que eu já vi no Barcelona. Não tem craque que possa com ele. É o Luis Enrique, homem de coragem e ambicioso. Obrigado. Muito obrigado”, exagerou o torcedor Albert Lorrea, um dos fãs que parou o carro de Luis Enrique na rua.