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Equipe de Berlim escala refugiados e mulheres contra o preconceito

Time na Alemanha escala refugiados contra o preconceito - Divulgação
Time na Alemanha escala refugiados contra o preconceito Imagem: Divulgação

Rafael Nardini

Do UOL, em São Paulo

30/05/2015 06h00

No dia 26 de junho de 2014, cerca de 40 refugiados - a maioria deles africanos - acabaram em uma enrascada. Após meses vivendo em um acampamento improvisado em Oranienplatz, no distrito berlinense de Kreuzberg, eles haviam decidido transformar em moradia a escola Gerhart-Hauptmann, a mais próxima aos antigos abrigos improvisados.

Cerca de mil policiais se revezaram na operação que se tornaria a mais custosa aos cofres da capital alemã em toda a história. À medida que a truculência crescia contra os manifestantes, mais gente aderia à causa dos refugiados. Litros de spray de pimenta e diversos lombos marcados com cassetetes depois, marchas passaram a tomar cidade. Dias após o início da ocupação, o poder político começava a enxergar o vespeiro que havia criado. Hans-Christian Ströbele, do Partido Verde, se tornou o elo entre as partes e figura ativa nas negociações. Em discurso em frente à escola, ele diria que o Parlamento alemão via com grande interesse “uma solução que privilegiasse os refugiados”. Era o sinal de que a população havia conseguido chegar lá. O veredito sairia no dia 2 de julho, sete dias depois de tudo começar: os desterrados haviam conquistado o direito de ocupar o terceiro andar do colégio.

Não é de se estranhar que no mesmo distrito de Kreuzberg tenha surgido o Champions ohne Grenzen (Campeões sem Fronteiras). A equipe foi formada por expatriados é uma das inúmeras categorias abraçadas pelo FSV Hansa 07, clube que disputa a Kreisliga, espécie de campeonato distrital. O centenário aurinegro oferece oportunidades para diversas faixas etárias e também dá enorme atenção às equipes femininas. Outros esportes, como o judô, também recebem a devida atenção. Dentro da programação para a divisão comum do espaço, as quartas-feiras são do Champions Ohne Grenzen. Turcos, sírios, iranianos fazem do gramado sintético das instalações do Wrangelritze sua segunda morada na capital germânica. Como quase tudo na cidade, o acesso de transporte público é fácil e indolor. Para chegar aos treinos, os atletas expatriados podem usar o metrô (a estação mais próxima é a Schlesisches Tor) ou trem (estação Warschauer Strasse).

“No estádio de Lehrter Strasse, no distrito de Moabit, em Berlim, aconteceu um maravilhoso confronto entre o Champions Ohne Grenzen e o Grünen Tulpen. Os verdes e os refugiados entraram em campo no 4-4-2 para um confronto de oportunidades iguais”. O texto assinado por Andreas Rauch, volante da equipe principal do Hansa 07, dá o tom de apreço que os membros da equipe têm pelos “Campeões”. Na partida disputada na tarde de 27 de maio de 2013, os expatriados começaram perdendo por 2 x 0, mas fecharam o jogo com a vitória por 5 x 2. Conta Andreas, que o primeiro gol foi marcado pelo defensor Hamid. O segundo viria dos pés do meio-campista Hussein. Eri e Reza são outros que refugiados que deixaram suas marcas na partida. O iraniano Iman Kasan, hoje com 29anos, era o goleiro da equipe. Ele está embaixo dos paus do time desde abril de 2012. Ele deixou o país quatro anos atrás, alegando perseguição religiosa. “Me converti do xiismo para o zoroastrismo, o que me causou problemas”, contou à publicação alemã Exberliner, no começo de março.

O fotógrafo brasileiro Rodrigo Erib, 33, costuma fazer turismo futebolístico. Busca informações dos times amadores que admira e corre atrás para armar um encontro. “Procurei e acabei encontrando o Hansa 07 num campo público de Berlim. A recepção deles foi excelente, acho que os alemães até acharam que eu era refugiado também. Depois treinei também com o que parecia ser o time principal, aí com uma proporção invertida: muito mais alemães e alguns imigrantes”, conta, sobre uma viagem à terra do Hansa  07 realizada em 2014. Quando está por São Paulo, é um dos que vestem a camisa do Autônomos FC, coletivo que mistura futebol e política nas várzeas da capital paulista.  Segundo ele, apesar das realidades diferentes, o que une os berlinenses e os varzeanos paulistanos é “a visão do futebol como instrumento de transformação social, como fio-condutor para aprendizados, discussões e ativismo”. 

Como acontece especialmente na Espanha e na Itália, na Alemanha também é comum as equipes de futebol – profissional ou amadoras – acabarem se tornando importantes porta-vozes de demandas civis, de princípios regionalistas, culturais ou políticos. Na cidade de Hamburgo, a segunda maior do país, bradam felizes os torcedores do St. Pauli. Por lá, sexismo, fascismo ou homofobia são banidas por estatuto. De maneira semelhante, o FSV Hansa 07 também carrega consigo uma boa carga de politização. Fundado em 1907, o desportivo da classe trabalhadora de Kreuzberg acabou banido pelo regime nazista. A bandeira branca, amarela e preta só voltaria a tremular tranquilamente após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, em 8 de maior de 1945.

Nas décadas de 1970 e 1980, a equipe de Kreuzberg passou a representar a cena alternativa da cidade e ganhou o respeito dos alemãs ocidentais alinhados com as práticas dos direitos humanos. Nos anos 1990, já com a derrocada do Muro de Berlim, surgiria o slogan “Catenaccio Against Racism” (Catenaccio Contra o Racismo), uma referência tanto à questão racial quanto à discriminação sofrida pelos berlinenses da porção soviética que tentava se reintegrar socialmente no cenário de reunificação do país. “Ainda hoje, Hansa 07 é um clube de futebol de Kreuzberg. Assim, somos pobres como um rato de igreja, mas também coloridos e interessantes quanto o próprio bairro”, diz um comunicado no site oficial da equipe. A equipe U32 é formada por idosos, enquanto o departamento de jovens equipes em cinco categorias diferentes, cobrindo praticamente toda as faixas etárias, de crianças a adolescentes. Em 2010, surgiu a primeira equipe feminina, hoje repleta de descendentes de árabes e muçulmanos entre 170 garotas e mulheres que participam das oito diferentes categorias que o Hansa 07 dá suporte. Segundo reportagem do veículo Exberliner, 16 técnicos - metade deles do sexo feminino - orientam as atletas.

Time de Berlim escala mulheres para vencer o preconceito - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

A vida de refugiado na Alemanha ou em praticamente qualquer lugar é feita de paciência e saber esperar. Condições climáticas desfavoráveis, familiares sob pressão na terra natal, o medo de não conseguir dar um novo rumo à vida e as dificuldades linguísticas são só o começo. O tédio, o baixo acesso a serviços culturais e educacionais e as restritas possibilidades financeiras são outros adversários que precisam ser driblados constantemente.

O Escritório de Migração e Refugiados alemão recebeu 173 mil novos pedidos para asilo político ano passado, número 58% maior que em 2013. Há três anos, havia 77,5 mil pedidos de abrigo nas mesas do órgão estatal. Os números levantados pela Deutsche Welle revelam um enorme crescimento na demanda. Naturalmente o país mais importante da Zona do Euro é o mais procurado por quem já não pode viver dignamente no próprio mais. França e Suécia são, nessa ordem, os outros ocupantes do pódio no "Eldorado dos refugiados".

Os pedidos de asilo são garantia de uma longa espera. O processo todo chega a tomar oito meses, mas, claro, não há nenhum garantia de que serão concedidos. Casos muito específicos - como o ocorrido com os sírios - se resolvem mais rápido. Mas a burocracia pode estender o processo também. Segundo dados do governo, em média, dois terços dos pedidos de asilo acabam negados pelas mais diversas razões - que vão de falsificação de documentos até as prioridades por cidadãos de países em conflito.

Nos primeiros nove meses de residência no país, poucos locais aceitam os refugiados como trabalhadores. Na Bavária, terra do Bayern de Munique, aqueles que vêm de outros países não ganham permissão sequer para deixar o distrito onde ganharam domicílio. Licenças para voltar ao país de origem são sempre muito raras.

Além de Rodrigo Erib, o fotógrafo brasileiro que conseguiu jogar com o Hansa 07 durante as férias, o time de Kreuzberg tem outro brasileiro na sua história: o paraense José Rodrigues Alves Antunes, o Fumaça. Após o início de carreira na Catuense, modestíssima equipe do interior baiano, o meia voou ao Velho Continente. Girou por Portugal, República Tcheca, Inglaterra – onde jogou por Newcastle e Crystal Palace – até chegar à Alemanha. Foi lá que aos 33 anos acabou convidado a assumir o cargo de treinador da equipe juvenil do Hansa, em 7 em dezembro de 2009. A chegada de Fumaça ganhou anúncio elogioso e crédito dos torcedores. “Contar com estrelas do Brasil? Isso já não é o meu clube!”, brincaria um internauta identificado apenas como Marcel. O bom trabalho com os garotos do clube o alçaria ao comando da equipe principal na temporada 2012-2013. Depois de terminada a campanha na liga regional, Fumaça deixaria o cargo no dia 18 de outubro de 2013. Naquele momento, o treinador e ex-atleta passaria a ser brasileiro mais importante da equipe que rompe preconceito atrás de preconceito há mais de 100 anos. Convenhamos, é uma vitória tão grande quanto a faturar o próprio Campeonato Alemão.