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Copa de refugiados em SP tem xará de Pelé e até jogador profissional

Daniel Lisboa

Em São Paulo

03/08/2015 09h58

O Centro Esportivo, Recreativo e Educativo do Trabalhador (CERET) fica em uma das regiões mais nobres da zona leste paulistana. Neste final de semana, o agradável espaço no bairro do Tatuapé recebeu um público bem diferente do habitual. Isso porque seus frequentadores, muito provavelmente, nunca tinham topado com alguém de Burkina Faso durante a caminhada matinal. Ou do Mali. Do Afeganistão. Do Iraque...

Não, não houve uma conferência da ONU na zona leste de São Paulo, e sim a 2ª edição da Copa dos Refugiados. O evento é organizado por refugiados e solicitantes de refúgio e recebe apoio da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e da Prefeitura de São Paulo, entre outras instituições. Neste ano, 18 seleções participam do torneio e a presença do Haiti é a novidade em relação ao ano passado. As outras equipes que começaram a disputa, além das já mencionadas, são Nigéria (atual campeã), Guiné-Bissau, Gana, Angola, Costa do Marfim, Síria, Togo, Camarões, República Democrática do Congo, Guiné, Gâmbia, Serra Leoa e Paquistão (eliminado por W.O.). Os jogos eliminatórios deste primeiro final de semana definiram as equipes que farão as semifinais e finais no próximo sábado (08): Nigéria x Costa do Marfim e Camarões x Guiné-Bissau. 

As partidas de sábado e domingo, aliás, tiveram tudo o que se espera de um torneio de futebol. Goleadas (5 a 0 da Nigéria sobe Burkina Faso), jogos equilibrados (vitória nos pênaltis de Mali sobre Congo), confusões com empurra-empurra e dedo na cara, gols bonitos, gols feios e lances ríspidos – o goleiro da Síria chegou a desmaiar depois de levar um chute na cara em uma disputa de bola no confronto contra o Afeganistão.

Sendo um campeonato de refugiados, ou seja, de gente que foi obrigada a deixar sua terra natal por causa de guerras ou questões políticas, não faltaram no CERET pessoas com histórias de vida tristes e complicadas. Uma delas é o angolano José Pelé. O nome é uma homenagem ao nosso maior jogador, mas José, que já passou dos 40 anos e não tem mais idade para ajudar seus compatriotas em campo, fez as vezes de técnico. Ele era jornalista em Angola, diz que tinha um ótimo padrão de vida, mas precisou fugir para o Brasil após trabalhar como fiscal das eleições locais em 2012.

“O governo fraudou as eleições. Eu sabia disso e eles tentaram de tudo para me fazer ficar quieto, me ofereceram carro, apartamento. Eu recusei, e as ameaças começaram”, conta José. No Brasil, ele trabalha como caixa em um supermercado e espera trazer para cá seus sete filhos de cinco mulheres diferentes.

Jean Katumba, do Congo, é um dos responsáveis por organizar a Copa dos Refugiados. É ele quem faz o contato com os líderes de cada comunidade de refugiados, que por sua vez ficam encarregados de selecionarem os jogadores entre os compatriotas. Jean acredita que o torneio é importante para que o brasileiro conheça melhor quem são aquelas pessoas que estão ali jogando. “Brasileiro não conhece refugiado, ainda não entende direito o que é. Acha que é alguém que matou uma pessoa no seu país”, diz ele, que está no Brasil há três anos.

“Além disso, muitos refugiados que jogavam bola em seus países chegam aqui e não têm mais um lugar para jogar”, lamenta Jean, para quem muitos desses estrangeiros têm potencial para se tornarem profissionais, mas não recebem chances de times brasileiros.  “Nós precisamos ter mais voz, e esse evento serve para isso também”, diz o congolês.

Se é verdade que é ainda mais difícil para um refugiado jogar profissionalmente no Brasil, Harrison Uche e Lacine Sanogo são exceções. Os dois já chegaram a jogar em times profissionais no país. Harrison, que é nigeriano mas jogou pela Costa do Marfim, chegou mais longe: este ano, foi vice-campeão sergipano pelo Estanciano. Sem contrato no momento, ele espera pela próxima oportunidade depois de romper com o antigo empresário. “Rompi porque ele não cumpriu com o acordado, que era de me ajudar financeiramente quando eu não estivesse em algum clube”, explica Harrison. “Eu ligava, ligava e ele não me atendia”. O meia-atacante de 23 anos treina para manter a forma e, por enquanto, procura por um novo clube por conta própria.

Se Harrison chegou a ser vice-campeão estadual, Lacine não foi tão longe. Mas a sorte também não ajudou. O marfinense, também de 23 anos, conta que chegou a treinar e disputar amistosos pela Inter de Lages, de Santa Catarina, no ano passado. Seu nome chegou até a ser mencionado nas rádios da cidade como uma nova atração do time local. Só que ele machucou o joelho, e o sonho de jogar profissionalmente teve que esperar. “É uma lesão de menisco. Eu teria que operar, mas tenho que ter condições (financeiras) para isso”, diz o jogador. Lacine garante que, mesmo sem a cirurgia, seu joelho vem melhorando e já não dói para partidas recreativas como a de sábado. “Na Costa do Marfim, eu treinava no mesmo lugar onde treinaram o Gervinho (atacante da Roma) e o Yaya Touré (volante do Manchester City)”, conta o marfinense.

Entre as partidas de abertura, talvez uma das mais curiosas tenha sido a disputada entre Síria e Afeganistão. Diferentemente dos quase sempre atléticos e habilidosos jogadores africanos, os times tinham alguns integrantes gordinhos ou com pouca intimidade com a bola, o que trouxe um ar de pelada de churrasco. O que não quis dizer, porém, ausência total de habilidade: no primeiro gol da vitória síria, o jogador bateu de primeira e a bola pegou nas duas traves antes de entrar. No segundo, o mesmo jogador costurou por dentro da área e bateu no contrapé do goleiro. Detalhe: ele, o atacante, jogava de calça.

Raça também não faltou. O goleiro sírio que ficou desacordado foi devidamente atendido e substituído. Mas aporrinhou o técnico e, para desespero de sua namorada brasileira que assistia a tudo da arquibancada, voltou ao jogo. Para atuar na linha.