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Tite revela maior arrependimento no futebol e o dia em que recusou esquema

Tite caminha na Arena Corinthians - Daniel Augusto Jr/Agência Corinthians - Daniel Augusto Jr/Agência Corinthians
Em seu retorno, Tite ajudou a colocar Corinthians na briga pelo título do Brasileiro
Imagem: Daniel Augusto Jr/Agência Corinthians

Dassler Marques

Do UOL, em São Paulo

05/08/2015 06h00

Tite carregou um peso na consciência por nove anos. O travesseiro ficou mais leve, como o treinador do Corinthians costuma dizer, graças a uma ligação que, nesta entrevista exclusiva ao UOL Esporte, ele revela ter feito. 

O experiente técnico Procópio Cardoso recebeu um telefonema surpreendente de Tite. Mais do que isso, era um pedido de desculpas por ter negociado e assumido o Atlético-MG enquanto Procópio comandava a equipe, em 2005. Acabou por ser não apenas o pior trabalho da carreira de Tite em clubes grandes, mas um fardo. 

"O Tite teve a honradez e eu tive esse privilégio", conta Procópio. "Eu nem sabia do fato (ocorreu em 2005), e o Tite cresceu no meu conceito de homem. Como treinador, é um dos melhores do Brasil", conta o veterano técnico. 

Foi assim, com conceitos renovados e outros intactos, mas principalmente mais leve, que Tite voltou ao Corinthians para tentar ganhar tudo mais uma vez. Nesta entrevista, o treinador campeão do mundo fala sobre o momento da equipe e sobre passagens importantes da carreira e da vida, ambas pautadas por princípios rígidos. A ponto de ter recusado, segundo ele mesmo confirma, inúmeras propostas indecentes que o futebol apresentou em quase 40 anos. 

Confira a entrevista exclusiva com Tite na íntegra:

UOL Esporte - Mano Menezes diz que o fato de o Corinthians ter defesas muito fortes nos últimos anos está relacionado ao fato de que o clube não tolera três derrotas seguidas. Você concorda com esse raciocínio?
Tite - Três jogos é (crise em) Corinthians, é São Paulo, é Grêmio, é Inter, é Flamengo (risos). É um pouco da cultura do futebol brasileiro. Ouvi um comentário legal de uma pessoa...foi do Gian Oddi (comentarista da Espn). Será que nós enquanto imprensa não devemos nos pautar e não levantar possibilidades de saída após três derrotas? Os editores não ficarem pautando, levantando a possibilidade? Temos que mexer com a cultura e dar tempo de trabalhar. Parece que você fica com a faca no peito para ter desempenho. 

Mano e Tite se abraçam em Corinthians x Flamengo de 2013 - Terceiro Tempo - Terceiro Tempo
Mano e Tite se abraçam em Corinthians x Flamengo de 2013
Imagem: Terceiro Tempo

UOL - Você se considera um treinador de ideias conservadoras?
Tite - 
Um meio-campista. Um armador. As pessoas perguntam por onde eu começaria a montar a equipe, se pela defesa ou pelo ataque. E as pessoas acham que eu era volante, mas eu era armador. O talento era mais na cabeça do que no corpo. Eu era um jogador lento, e aí fica mais difícil. Traduzindo, um meio-campista, que pudesse equilibrar as ações.

UOL - Mudando de assunto. A que você atribui a melhora da disciplina do Corinthians após a Libertadores? Foi a cobrança que você fez, pedindo para os jogadores se cobrarem sobre isso?
Tite - 
Foi a primeira pergunta que me fazem esse comparativo. Um dos problemas que enfrentamos foi disciplinar, sim. Não é da cobrança, mas é da conscientização. Os atletas tinham que se conscientizar que não poderíamos perder jogadores e que tinha que ter uma mudança de comportamento. Hoje somos a equipe mais disciplinada do Brasileiro. Fomos campeões mais disciplinados da Libertadores. Fomos campeões mundiais com um cartão amarelo. Fizemos 1 a 0 e não ficou fazendo falta, antijogo com o Chelsea. É uma equipe que se orgulha por ser melhor.

UOL - Um dos jogadores expulsos na Libertadores foi o Emerson Sheik. A relação entre vocês é muito forte e vocês são pessoas muito diferentes, que encaram o mundo de forma muito diferente. O que explica essa sinergia? 
Tite - 
Temos uma coisa em comum. Eu tenho 54 anos e ele tem 30 e alguma coisa. Ele é extremamente corajoso. Encara um jogo em São Brás, onde nasci, ou na Bombonera, de maneira igual. Aprendi a ser corajoso. Mesmo tendo meus fantasminhas, os meus medos do lado. É o passo à frente, o encarar a adversidade que faz parte do jogo. Por isso a gente se identificou.

UOL - Ele é uma das lideranças que você perdeu. Quem são os líderes que emergiram após as saídas do Emerson, do Guerrero e do Fábio Santos?
Tite - 
Saíram os principais líderes, sim. Um líder de coragem e competitivo, que é Emerson. Um líder matador, entre aspas, que transformava em gol o desempenho da equipe. E um líder no plano tático, das observações e do influenciar no vestiário, de conduzir, chamar e orientar, que é Fábio Santos. Há outras emergindo...Gil, Renato Augusto, Elias e o Cássio. É uma oportunidade para aflorar lideranças.

UOL - Você tem uma carreira marcada por trabalhos quase sempre de longo prazo. O Vagner Mancini e a associação liderada por ele tentaram regulamentar a troca de treinadores, mas aparentemente isso não foi adiante. Você é a favor?
Tite - 
Vagner (Mancini) e Dorival são agentes de manifestação de uma associação de técnicos. Estou aproveitando para colocar que a gente tenha legislação para técnico de futebol. Não precisa 18 meses de média como no Campeonato Inglês. Mas dê uma temporada para que se possa trabalhar e que não possa contratar o profissional que já tenha saído de outro clube. Vai se selecionar melhor as pessoas, os dirigentes vão selecionar melhor quem querem trabalhar. Essa associação dos técnicos é importante para que todo processo futebol possa vingar.

UOL - Você costumava dizer que aceitaria ganhar menos se tivesse mais estabilidade. Você recusou o Inter e veio para o Corinthians, que tinha proposta menor, por conta da estabilidade?
Tite - Não gosto de ficar cantando marra e escolhendo situações. Uma coisa vou dizer de forma bem clara: a possibilidade de sucesso e crescimento profissional, de ser bem quisto em lugar onde tem relação pessoal, pesa muito para mim. O dinheiro é consequência de trabalho. Não sou ingênuo de não saber que é importante porque te dá uma série de atributos importantes, mas não é essência para mim. Essência é possibilidade de crescimento e de ser bem quisto no local de trabalho.

UOL - Quem é teu grande amigo no futebol?
Tite - Meu irmão.

UOL - Mas ele é do futebol?
Tite - É da vida toda no futebol. É desde eu como ex-atleta, e aí brinco um pouquinho que dormíamos no mesmo quarto. Eu ia dormir à noite e viajava (Tite grita, como se estivesse sonhando): 'toca, segura, me dá dois tempos que eu vou passar. Segura pra ti, pô!'. Daqui a pouco eu via meu braço balançar e era meu irmão do lado. 'Pô, cara! Já foi para o jogo, eu quero dormir e você narra o jogo de madrugada. Me deixa dormir, cara (gargalhadas)'. Momentos, atividade profissional, momento desempregado, possibilidade de crescimento, interações e ideias de futebol...meu irmão é meu grande amigo.

UOL - Você se encontrou com Zagallo, Carlo Ancelotti e Carlos Bianchi em 2014. Se você pudesse convidar um jogador para jantar, para bater papo, qualquer um, quem teria esse prazer?
Tite -
Pô, cara. Bela pergunta. Em termos técnicos é Andrea Pirlo. O maior jogador da Copa de 2006. Que jogador!  Zidane, para pegar de fora também. Estou pegando pelo que eram dentro de campo. Falcão e Zico. Júnior. Criatividade, a luz do meio-campista é fascinante. Eu fui com o Ancelotti, primeiro pela abertura que se deu, mas ele é meio termo entre escola Mourinho e escola Guardiola.

Tite no Atlético-MG em 2005 - Divulgação - Divulgação
Em 2005, Tite dirigiu Atlético-MG que lutou contra o rebaixamento
Imagem: Divulgação

UOL - Há algo que você se arrependa de ter feito, ou deixado de fazer, no futebol?
Tite - 
Me arrependi de ter acertado com o Atlético-MG quando tinha um técnico. Quando o Procópio Cardoso era técnico e negociei. Por ímpeto, não me informei da situação dele, que ele continuava técnico do Atlético, e negociei. Ao longo do tempo, liguei para ele e me coloquei dessa forma. Se tem uma coisa que não faço e me orgulho muito, e ali errei, é ter ética profissional. Independente que goste do outro profissional ou não. Tem muitos que não me dou, outros que são inimigos, outros que são meus amigos. Faço por mim, por me sentir bem. Se pudesse voltar atrás, não negociaria com Atlético com o Procópio.

NR.: Treinador por quase quatro décadas, Procópio não trabalha desde 2008. Hoje, aos 76 anos e recuperado de cirurgia na coluna, gostaria de treinar alguma equipe. 

UOL - Já fizeram isso com você?
Tite - 
Não sei, mas aí é o autojulgamento. Quero que meu travesseiro fique leve. Já tenho que julgar atleta pra caramba que é uma dificuldade (risos).

UOL - Você acha que errou com o Marquinhos?
Tite - 
A minha opinião é que acertei! O único daquela fase que botei para jogar? Marquinhos. Quem botei para jogar clássico de volante com o Palmeiras? Marquinhos. Chamei ele de lado (em clássico com o Santos) e disse assim, 'vai jogar de lateral um pouco porque se o Neymar vier e trabalhar, tu vai jogar porque tu é muito veloz e vai ter a condição de marcar'.

UOL - Muita gente acredita que a saída dele foi prematura. 
Tite -
A saída dele, bom, é outra história. Não posso julgar valor investido, quanto foi pago, a necessidade do clube...não é minha atribuição. Aliás, na final da Taça (São Paulo de 2012), o Antonio Carlos fez dois gols e o marmitão aqui (expressão para se classificar uma carne de pouca qualidade) botou o Marquinhos, que não fez gol. Só pra brincar um pouco (risos). 

UOL - Você apoiaria a criação de uma torcida gay?
Tite - Torcida de qualquer gosto, cor, sexo... da mesma forma como não vejo restrições a estrangeiro ou nacional, vejo a qualidade. Ali cada um com seus gostos pessoais.

UOL - Você já dirigiu algum jogador gay?
Tite -
Deixa eu viajar no tempo. Cara, que eu me lembre, assumidamente gay, não. É preconceito. Não lembro quem tenha assumido no Brasil, acho que não teve.

UOL - O que te emociona no futebol?
Tite -
O esporte como veículo de educação e de estabelecer princípios. É ver um garoto de outra torcida olhar para mim e dizer ‘eu gosto de ti, cara’. Isso transcende o lado de vencer ou perder. Tem o lado educacional que cada um traz. Posso vibrar, torcer pra caramba, tomar minha caipira, curtir, vibrar... mas respeitando a dor do outro porque, quando perco, gosto que me respeitem. Isso é fascinante. Quando a gente consegue educar um menino através do esporte eu me sinto feliz.

UOL - Aliás, uma pergunta fora do dia a dia. Você é a favor da maioridade penal?
Tite - 
Todo investimento que poderíamos ter nos gastos e no ônus que vai ter em função da maioridade penal, (deve se) reverter para educação na base. Para não ter marginal e delinquente ali na frente. Investimento no professor e na educação. O Brasil carece de educação e de punição à corrupção. Esses dois fatos.

UOL - Em programa recente na Espn, o Vagner Love disse que um dirigente do São Paulo, quando ele era garoto, pediu R$ 50 mil de propina para o presidente do clube. São essas coisas que escutamos no futebol. Você já recebeu uma proposta indecente?
Tite - Já. Já. Já recebi inúmeras. Só que agora, que tive visibilidade maior, as pessoas já conhecem e não vêm. Isso vem de forma subliminar, sutil, mas vem.

UOL - Você pode contar uma dessas?
Tite -
Eu estava em uma equipe grande e um atleta que tinha jogado comigo, e era técnico das categorias de base, ligou pra mim e disse: 'Tite, tem esse atleta assim entrando, a gente vai ver, ele é da categoria de base. E seguinte, olha: 'se ele vingar e bater na equipe de cima, tu vai ter tua parte'. (Tite responde) 'Como é que é? Eu não entendi. Parceiro - já mudo o tom da voz e mudo meu linguajar -, acho que tu não tá entendendo, parceiro. Pega e faz o seguinte, cara. Faz teu trabalho e vou fazer minha avaliação técnica dele. O que tu vai ganhar e de que forma vou fazer, pega e fica pra ti, beleza?' Nunca mais me ligou.

UOL - Alguma pergunta que você gostaria de ter respondido e não foi feita?
Tite -
(Ele pensa, pergunta aos assessores se têm uma sugestão). A minha esposa fala assim, que a gente é muito feliz em toda nossa atividade. O que gostaria de modificar, fora esse lado do do Atlético, é de não ter machucado os joelhos antes e ter parado aos 27 anos. Gostaria de ter jogado pelo menos até os 30, ter apresentado um pouquinho melhor, para não ter que procurar vídeos de gols para mostrar que eu tinha jogado futebol (risos).