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Chefe da seleção conta bastidores pré-7x1: "Neymar na UTI de avião chocou"

Comissão técnica dá entrevista depois do 7 a 1. Andrade está ao lado de Felipão - Eduardo Knapp-9.jul.2014/Folhapress
Comissão técnica dá entrevista depois do 7 a 1. Andrade está ao lado de Felipão Imagem: Eduardo Knapp-9.jul.2014/Folhapress

Napoleão de Almeida

Especial para o UOL, em Curitiba

08/07/2016 12h34

Há dois anos, um homem descia as escadas dos camarotes do Mineirão para os vestiários com a missão de botar os atônitos 23 jogadores e a comissão técnica nos eixos. Eram pouco mais de 19h e a Alemanha acabara de aplicar a maior derrota da história do esporte contra a seleção brasileira.

Ex-presidente do Coritiba, o advogado Vilson Ribeiro de Andrade era o chefe da delegação brasileira na Copa 2014. Aos 67 anos, tendo enfrentado um câncer, confessou: “Foi o caminho mais longo da minha vida.”

Longe do futebol desde que deixou a presidência do Coxa ao final de 2014, Andrade recebeu a reportagem em seu luxuoso escritório no coração de Curitiba para uma conversa de mais de uma hora sobre o 7 a 1. E falou sobre a famosa carta de Dona Lúcia: “Foi um erro do Professor [Parreira].”

O Neymar veio numa espécie de UTI móvel dentro do avião. Ele tinha muitas dores... Aquilo abalou muito o grupo."

Dois anos depois, por que o Brasil levou 7 a 1?

O 7 a 1 começou bem antes. Quando estivemos na Copa das Confederações, vencemos um torneio mais simplificado e nós acreditamos naquela seleção. Felipão confiou muito naquela equipe e fomos para a Copa com uma esperança muito grande. Mas durante a Copa nós tivemos jogadores com muitas dificuldades. Não estavam no mesmo nível de antes. E o jogo contra a Alemanha foi inexplicável. Você pode assistir o jogo quantas vezes quiser, sob qualquer ponto de vista, ninguém entende.

A noite (pós o 7 a 1) foi muito difícil. Eu não dormi, o meu quarto era ao lado do Felipão. Eu ouvi soluços do Felipão"

Quando você diz que “jogadores não estavam no mesmo nível”, você diz tecnicamente?

Sim, os jogadores que vinham bem nos campeonatos europeus chegaram a seleção e tiveram dificuldade de entrar no nível que a competição exigia.

E o 7 a 1?

É difícil... nós tivemos um início difícil na Copa e entendíamos que iriamos crescer na competição. Todos os clubes são assim. O Brasil de 70, que foi a que começou num nível bom e terminou excelente. Todas as demais seleções do penta começaram meio mal e foram crescendo. Em 2014 nós entendemos que depois da primeira fase a equipe cresceria. Mas aconteceu o inverso. Tivemos aquela partida fatídica em que o Neymar se machucou [nas quartas de final, contra a Colômbia], foi uma contusão seríssima... e depois um cartão bobo para o Thiago Silva... e prejudicou o nosso grupo. A entrada do Dante era normal, porque ele era o reserva imediato. Mas tem determinadas coisas que a torcida talvez não saiba.

Quais?

Antes do jogo contra a Alemanha, uns dois dias antes, nós tivemos um jantar, eu e o Carlos Alberto Parreira. Ficamos um tempo conversando. Com a contusão do Neymar, eu perguntei pra ele: “Parreira, o que você acha que o Felipão vai fazer contra a Alemanha?” Aí ele disse, “Olha, não sei, cabeça é dele... mas acho que ele vai povoar o meio. Talvez ele entre com o Ramires, talvez ele fortaleça o meio.” Na preleção, o Felipão foi alertado pelos assessores de que 80% dos gols da Alemanha saiam de bolas aéreas. E eles tinham uma saída pela lateral, o lateral [Phillip Lahm] deles apoiava muito, saía muito. Nós mostramos os gols da Alemanha. Repetimos oito vezes o vídeo de uma jogada em que eles faziam uma espécie de uma barreira na área e jogavam a bola no segundo pau, para alguém fechar e finalizar sem marcação. Oito vezes. E nós levamos o primeiro gol da mesma forma. Então... o treinador alerta! Mas se o jogador não cumpre, é complicado.

Felipão levou jogadores que já não estavam tão bem e deixou outros que mereciam ir."

E a escalação?

Ah, no dia seguinte o Felipão se fechou com o grupo, nós não entrávamos. No ônibus eu sentei ao lado do Murtosa e perguntei quem ia entrar no lugar do Neymar. ‘Vai entrar o Bernard’, ele me disse. Aí eu falei, ‘Pombas, o Felipão tá convicto disso?’, no que ele me disse, ‘Sim. Primeiro porque a gente tem que ganhar. Segundo porque o lateral deles sobe muito, o Bernard é veloz e vai jogar nas costas dele.’ Confesso que ali eu não falei nada. Mas fiquei preocupado. O forte da Alemanha era o padrão de jogo, uma operação tática consistente com um meio-campo muito forte. E eu achei que a gente estaria vulnerável no meio. Lamentavelmente, levamos aquele primeiro gol da forma que foi, com tudo que foi dito, explicado, repetido... e aí foi um desastre em cinco minutos. Levamos mais quatro.

Já tinha visto algo assim em futebol profissional?

Olha... nem nas minhas peladas. E eu estava com o chefe da delegação alemã, porque antes do jogo nós íamos até o camarote e fazíamos a parte diplomática. A partir do segundo gol ele começou a ficar constrangido, olhando pra mim. Um olhar... bem, no primeiro gol ele vibrou, no segundo também. Mas no terceiro já não vibrou mais. Ele só olhava pra mim e dizia, ‘Sorry, sorry’, um sentimento de tristeza por que achava que era uma humilhação. E era mesmo. Dentro do conceito europeu, menos passional, mas equilibrado, não como nós latinos, ele pedia desculpas pra mim. No segundo tempo ele saiu de perto de mim, deixou um assessor. Ao final, veio e apenas me abraçou [N.R.: Vilson Andrade mareia os olhos ao contar], e eu com os olhos com lágrimas. E aí eu desci para o vestiário e foi o caminho mais longo da minha vida. Muito triste.

Uma das pessoas que eu senti que estava muito abalado, mas abalado mesmo, foi o Júlio César"

Você falou em passionalidade. Foi uma Copa com muita pressão em cima dos jogadores. O que faltou para controlar isso?

Primeiro eu acho que a nossa seleção era muito jovem. Embora alguns tivessem experiência na Europa, era jovem. Depois a contusão do Neymar e a viagem dele com a gente para a Granja Comary. Foi uma decisão de toda a comissão técnica e da diretoria da CBF naquele momento, mas foi equivocada.

Por quê?

Porque ele... claro, ali eu concordei também, mas ele veio numa espécie de UTI móvel dentro do avião. Ele tinha muitas dores. E aquele aspecto, como os jogadores não podiam vir todos pela limitação de espaço, e vinham dois a cada vez ver ele, aquilo abalou muito o grupo. O nível de pressão, de exigência... a obrigação de ganhar uma Copa do Mundo em casa, e um problema do jogador que era símbolo para todos, com uma contusão gravíssima, em que ele correu risco de ficar tetraplégico, aquilo tudo abalou. Agora... eu nunca vi, num jogo de futebol, você ter assim todos os jogadores muito mal. Foram cinco minutos nos quais todos os jogadores se perderam. É impossível. Às vezes você tem um erro individual, o goleiro ou um zagueiro falham. Mas o time inteiro falhar e ficar amortecido, é inexplicável. Depois do jogo eu entrei no vestiário e o sentimento dos jogadores era de revolta com eles mesmos. Não era apenas tristeza, era um sentimento de revolta, de raiva deles mesmos. De um estar tomando banho aos prantos e berrando de ódio, outro revoltado consigo mesmo.

David Luiz chora após o 7 a 1 - Eddie Keogh-8.jul.2014/Reuters - Eddie Keogh-8.jul.2014/Reuters
David Luiz chora após o 7 a 1
Imagem: Eddie Keogh-8.jul.2014/Reuters

Quem te chamou mais a atenção nessas reações no vestiário?

Uma das pessoas que eu senti que estava muito abalado, mas abalado mesmo, foi o Júlio César. Ele estava desolado. Embora tenha sido o cara com a cabeça mais bem feita pra falar com o grupo. O David Luiz então, esse estava inconsolável. Todos, todos, todos... é difícil dizer se alguém estava mais tranquilo. A ida para o ônibus, a viagem pra Granja... um martírio. A noite foi muito difícil. Eu não dormi, o meu quarto era ao lado do Felipão. Eu ouvi soluços do Felipão. Levantamos para tomar café, ele estava arrasado.

Ele botou o prestígio em jogo...

É... e aí tomamos uma decisão de irmos todos fazer a coletiva. Toda a comissão técnica. E isso vai ficar marcado para o resto da vida. Foi uma vergonha. Os jogadores se superam, uma vitória depois da outra, vai superando... Mas para o Felipão e Parreira, pessoas que tinham algo a perder, foi muito difícil.

Eu acho que faltou um pouquinho mais de malandragem (na semifinal)"

Voltando ao Neymar, como foram os momentos seguintes da contusão dele?

Eu tive uma reunião com o doutor [José Luiz] Runco, que tinha ido a uma clínica especializada para montar a UTI no avião. E ele me chamou e disse, ‘ele tá fora’. Falamos com o pai dele, mostramos as radiografias e ele se convenceu que não tinha condições. Ele estava com muitas dores. Dormiu na Granja e no outro dia apareceu na cadeira de rodas para tomar café com o grupo...

Neymar deixa a Granja Comary de helicóptero - Leo Correa-5.jul.2014/AP - Leo Correa-5.jul.2014/AP
Neymar deixa a Granja Comary de helicóptero
Imagem: Leo Correa-5.jul.2014/AP

Na cadeira de rodas? Isso não chocou o grupo?

Chocou. Chocou sim. Você sabe, eles são jovens e vivem do corpo. Não tem uma estrutura de chegar, olhar e dizer, “amanhã ele já está andando”. Eles são muito preocupados com essas coisas. Eu tive um caso no Coritiba com o Triguinho. O jogador fraturou a perna pouco antes do fim do contrato. Renovamos o contrato dele no hospital, por que era a única forma de tranquilizar o atleta e a família. Ele depois foi embora, mas deixou um clima muito pesado para todo mundo.

Você mantém contato com a comissão técnica?

O Felipão é um amigo muito querido. Essa coisa de Felipão bravo, não existe. É um cara exigente, mas muito amigo e leal. E talvez tenha pagado o preço por essa lealdade, levou jogadores que já não estavam tão bem e deixou outros que mereciam ir.

Nossos técnicos não são estudiosos, são ex-jogadores que evoluíram para esse cargo na carreira. Uma exceção é o Tite."

Quem por exemplo?

Acho que embora o Henrique [zagueiro, hoje no Fluminense] fosse homem de confiança dele, o Miranda estava muito melhor. E aí não teríamos jogado com posições trocadas quando o Dante entrou. O Miranda casaria melhor com o David Luiz, que saiu da posição dele.

O David Luiz acabou marcado como um dos símbolos dessa derrota. Havia descompromisso dos jogadores?

Não, descompromisso não, de forma alguma. Eles eram meninos, né? Meninos alegres, com uma visão... não infantil, mas de pessoas felizes, de estarem ali defendendo o país, com o carinho da torcida... para eles era uma alegria.

Faltou um “bandido” naquela seleção?

Eu acho que faltou um pouquinho mais de malandragem. Por exemplo, quando saiu o segundo gol, o Júlio César poderia ter simulado uma contusão, esfriado o jogo. Ele tinha ali dois minutos para colocar as coisas no lugar, para o Felipão ter oportunidade de fazer alguma coisa. Mas não. Tanto é que o segundo tempo foi diferente. ‘Ah, mas estava 5 a 0’, mas não importa: foi 2 a 1, mas o Brasil criou, pressionou mais. Eles deram três chutes a gol. Faltou essa malandragem de esfriar o jogo. Nós levamos 2 a 0 e corremos para o meio para sair para o jogo. Aí o Fernandinho errou, saiu o terceiro. Corremos de novo, erramos de novo, saiu o quarto. Quer dizer, não é assim que se faz futebol. É inteligência, tem que respirar.

Julio Cesar durante a semifinal contra a Alemanha -  FRANCOIS XAVIER MARIT-8.jul.2014/AFP -  FRANCOIS XAVIER MARIT-8.jul.2014/AFP
Julio Cesar durante a semifinal contra a Alemanha
Imagem: FRANCOIS XAVIER MARIT-8.jul.2014/AFP

O Felipão subestimou a Alemanha?

O futebol brasileiro sempre foi criativo, alegre, técnico. Mas enfrentou uma Alemanha que se preparou 12 anos para esse título. E nós nos preparamos seis meses, nem isso. Então esse foi o maior erro. Se você pegar individualmente os brasileiros, duvido que qualquer seleção seja melhor que a do Brasil. Temos jogadores excepcionais. O que nos falta é padrão técnico, com raras exceções. Nossos técnicos não são estudiosos, são ex-jogadores que evoluíram para esse cargo na carreira. Uma exceção é o Tite.

É o melhor nome para a seleção?

Eu acho que sim. Ele se preparou para isso. Quando foi escolhido o Dunga, já foi um equívoco da CBF. O Tite viajou, estudou. Técnico da seleção não pode ficar só no local, tem que estar em sintonia com o mundo. Acho que, com o Tite, vamos ter essa oportunidade. A safra é boa. Veja aí Gabriel Jesus, Lucas Lima, Gabriel... estamos revelando, mas precisamos jogar como equipe. A Alemanha só foi campeã do mundo por que tinha padrão tático.

Na final você torceu por quem?

Pra Alemanha, claro. Não dá para torcer pela Argentina (risos). Até por que se a Argentina ganha ia ganhar uma seleção que mostrou um futebol feio. A Alemanha merecia.

A gente falou de como o futebol alemão se desenvolveu e como o Brasil perdeu essa oportunidade pós 7 a 1. Você foi dirigente de clube. Hoje nós temos um presidente da CBF indiciado pelo FBI e nada parece mudar. Por que a CBF não sentiu os 7 a 1?

Eu acho que sentiu, sim. O problema mesmo é a estrutura do futebol brasileiro. Eu fui presidente de clube por paixão. Não conhecia o sistema do futebol. E a lei tá equivocada. Hoje temos dois problemas graves. O primeiro deles é a forma de eleger os presidentes das federações. Não tem voto de qualidade. Um clube amador ter o mesmo poder de voto do Coritiba, do Atlético, é um absurdo. Os amadores elegem os presidentes das Federações, que elegem o da CBF. Foi uma briga muito grande pra melhorar isso, agora com os 40 clubes das séries A e B votando com as 27 federações.

Mas na primeira eleição, mantiveram Del Nero.

Porque havia ainda uma dependência muito grande de alguns setores do futebol. Por exemplo, ninguém sobrevive sem a verba da televisão. Eles investiam até 2014, quando saí do futebol, 1,8 bilhão de reais. Essa dependência cria um sistema de que, como o presidente tem mandatos de 3, 4 anos por conta da Lei Pelé, ele quer é ser campeão e ir embora. Isso é um erro. Os clubes precisam ter independência. E a Lei Pelé tirou o passe, com o qual ninguém concordava, ninguém quer aquela escravidão, mas tirou e deu para o empresário.

O jogador jogou para o empresário.

Mas jogou por que ele não tem proteção nenhuma. Se você analisar, o jogador vem jovem, você tem apenas 20 clubes privilegiados. Tem jogador que não ganha salário mínimo. A média nacional de salário não dá nem mil reais. Da Série B em diante é só prejuízo.

Esse é um discurso afinado com o que o movimento Bom Senso prega. Você trabalhou com Alex, um dos líderes desse movimento. Por que o Bom Senso não vingou?

Porque eles defendiam alguns interesses de uma determinada classe. O calendário, por exemplo. Há reivindicações justas, mas eles queriam que os clubes jogassem X jogos, e não que os jogadores individualmente fizessem X partidas. Os clubes precisam jogar para faturar. Os clubes admitiriam que o jogador tivesse limites de jogos, mas os clubes não. Afinal os clubes precisam dos eventos para faturar. Eles queriam acabar com os estaduais. Você precisa reformular, deixá-los com times até 23 anos, sem os clubes da elite, para manter revelação. O Coritiba teve prejuízo de 2 milhões num dos estaduais comigo. Aí o Estadual passa a ser cabide de emprego para veteranos e não revela mais. Isso é ruim para o futebol brasileiro.

E como isso reflete nos 7 a 1?

Você não tem a proteção aos clubes formadores. É o maior pecado da Lei Pelé. Você investe muito no jovem e ele vai embora quando começa a despontar.

Você vendeu o lateral direito Abner, que era da seleção, antes dele jogar pelo profissional do Coritiba.

Por que os clubes precisam de receita. A melhor é a venda de jogadores. A bilheteria é um desastre, os clubes não mantêm, tentam com os sócios de todas as formas. Você tem produtos, patrocínios na camisa e, principalmente, a TV. Então a venda é buscar alternativas. Nós tínhamos 40% do passe dele, fizeram uma oferta irrecusável e ele está tentando se recuperar de uma contusão no Real Madrid B. Ele é talentoso, mas vai terminar a formação na Europa.

Pra gente encerrar: e a carta da Dona Lúcia?

[Silêncio]...Ah, eu nunca vi, se existiu ou não, eu não sei. O Parreira chegou com aquilo na coletiva... foi um erro do Professor, um erro (risos).