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Torcedor diz que foi agredido por policiais por ser trans; PM nega

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Imagem: Reprodução

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

13/05/2017 04h00

Danilo* foi ao Morumbi no domingo de Páscoa assistir São Paulo e Corinthians pela semifinal do Paulistão, mas diz que encontrou preconceito por parte da PM (Polícia Militar). De acordo com seu relato, primeiro os policiais foram racistas. Aumentaram a dose de violência ao saberem que o torcedor é transexual.

Danilo conta que viu um enorme ponto de interrogação na testa dos policiais militares quando revelou que é homem trans. Explicar que nasceu mulher, mas se considera e vive como homem mudou o comportamento dos cinco homens que estava na sala da PM no Morumbi. Levantavam a camiseta dele e perguntavam: é menino ou menina? Gargalhadas completavam a cena.

O torcedor disse que a confusão ocorreu depois de ter se negado a apagar um cigarro. Alegou que estava no lado de fora do estádio. A PM tem outra versão e enviou nota afirmando que agiu 'por questões de segurança e ordem pública'. O texto ressalta que não houve qualquer agressão verbal ou física.

Danilo diz que está com medo porque foi jurado de morte caso abra o bico. Depois de refletir muito, ele falou com o UOL Esporte e fez o seguinte relato.

A abordagem 

Quando eu cheguei na metade, antes de entrar no estádio, na rampa, meu primo falou: Eles (PMs) tão atrás de você. Tinha dois, aí um me cercou de um lado e, outro, do outro. 'Você vem com a gente', disseram. Respondi: Não vou não. Eu não fiz nada para vocês. Vou entrar e assistir o jogo.

Na hora que eu falei e dei dois passos, aí apareceram mais cinco policiais. Eles me prensaram na grade e falei que não ia ir porque não tava fazendo nada. Eu meio que resisti em ir. Aí veio um por trás e começou a me dar vários golpes com o cassetete nas minhas costas. Nisso, me pegaram pelo braço, tipo bonequinho mesmo. Me levantaram do chão.

No caminho, eles já começaram a me agredir com as palavras, falando que eu não deveria estar ali e tal, que um estádio não era lugar para mim. E ficaram me batendo, Dava soco, chute no tornozelo, tá ligado? Eles acusaram: Você é usuário de droga, é traficante. O que você faz da vida? Não deve fazer nada. Pode falar que tem passagem, nós já sabe.

Falei, 'não tenho passagem, sou trabalhador e estudante também. E cada vez que rebatia com eles, vinham e me batiam de novo. Aí ele e meu um soco na barriga, disse fala a verdade e perguntou meu nome. "Meu nome é Danilo'. Pediram um documento.

Neste dia eu tava só com o bilhete do estudante (Danilo não anda com a carteira de identidade, que tem o nome de batismo dele. No bilhete, consta o nome social). Quando eu saio, levo só o celular e o bilhete. 

Chegou lá embaixo, me trancaram numa salinha. Voltaram a dizer que eu tava com droga e eu neguei: Não. Só porque sou negro eu vou ter droga? Ele falou 'é de suspeitar'. Perguntei: Por quê? Você acha que vou vir para um estádio vender droga? Ele falou: É só olhar para sua cara.

Quando ele foi puxar (a ficha policial) lá falou: Este nome não existe. Contei que era meu nome social e perguntaram o que era isso. Expliquei que sou homem transexual. "Que porra é essa?", ele falou

Aí foi quando ele passou (um rádio) para o comandante, que disse para levantarem minha camiseta. Na hora eu olhei e pensei: 'Agora ferrou. Vou apanhar o dobro.' Dito e feito. Ele veio e levantou minha camiseta e falou.

"Ó comandante, tá usando nome falso. É mulher essa porra aqui."

Começou a me bater, me dar soco. Como eu tava com a faixa na parte do peito, ele começou a me dar vários socos no peito. Acho que eles perceberam que machucava e vinham e diziam. 

"É menino ou menina?"

E (eu) não respondia. Foi quando eles pegaram meu punho e começaram a apertar para baixo. Falou que se eu não falasse meu nome, iam me bater até eu morrer. Falei meu nome de batismo e ele xingou: Agora você tem nome filha da puta?

Apareceu lá (no sistema) que eu não devia nada. Nem assim parei de apanhar: Eles disseram "vamos deixar esse menino, menina um pouco. Deixa eu dar umas coças nele, nela, sei lá o que a gente pode falar. Parece uma aberração mesmo isso aí. Depois a gente solta, põe pro lado de fora do estádio e vai embora. E se a gente trombar na rua, a gente pega de novo."

Enquanto batiam, um falou: Você acha que vai ficar com alguma marca? Você vai ficar com marca nenhuma porque a gente sabe bater. Então pode ficar sossegado, se você denunciar a gente você não vai ter prova.

Raiva e ódio 

Eu senti maior raiva, queria matar eles ali. Eu tava pensando em tentar tomar o revólver deles, matar eles e me matar. Porque é uma sensação muito humilhante alguém ficar levantando a sua roupa. Onde já se viu isso? Perguntou se eu era da torcida (organizada) e depois ficou (falando): Lixo, aberração, menino ou menina. E rachavam o bico, todos eles.

Eles continuaram me batendo até a hora que minha prima começou a conversar com outro policial. Ela tava desesperada, começou a chorar. Esse policial passou o rádio para o comandante de onde eu tava. Nisso me pegaram e resolveram me soltar.

Na hora, ele me puxou e falou: A gente anotou todos os seus dados e se você denunciar, a gente vai até sua casa e vai te matar. Respondi: Tá bom, vou fazer o quê? E saí andando.

Certeza que apanhei mais porque era homem trans. Eles olham e já falam, é negro. Se fala que é trans, vixe, fode tudo! Vem a raiva deles. Acho que o machismo toma conta. Enquanto, para eles eu supostamente era homem cis, eles não me bateram tanto.

Pior é que olhava para eles e via o ódio no coração dos caras. Uma coisa impressionante. Você fala, como pode um ser humano que tá ali para defender, tá fazendo tudo ao contrário? Acho que durou uns 20 minutos.

Fiquei com uma raiva, uma semana. Fiquei uma semana dentro de casa. Tive pesadelo uns três dias direto. E você fica pensando “por que eu existo então?”. Se for para ficar assim é melhor eu nem viver, nem existir. 

O pessoal falando você tem que denunciar. Você tem que ir na corregedoria, não sei aonde. Fiquei naquela, denuncio, não denuncio. Falei com uma advogada e falou para eu ir no Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância), que é uma delegacia especial contra crime de homofobia e transfobia.

Agora essa semana que tô mais tranquilo, falei se ela me acompanha e vamos fazer esse BO que é mais seguro para mim. [Danilo vai registrar o boletim de ocorrência na próxima semana]. 

O que diz a Polícia Militar

A Polícia Militar enviou a nota abaixo. A corporação identificou o nome de batismo e o nome social, mas o UOL Esporte atendeu ao pedido do entrevistado e retirou o nome. Abaixo, o posicionamento da PM:

"A Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), representada pelo 2º Batalhão de Polícia de Choque, realizou o policiamento em 16 de abril de 2017, no Estádio do Morumbi (Cícero Pompeu de Toledo), por ocasião da semifinal do Campeonato Paulista de Futebol, entre as equipes de São Paulo x Corinthians.

Conforme registrado no relatório do evento da PMESP (anexo H) alguns torcedores foram conduzidos ao Posto de Comando (PC) por questões de segurança e ordem pública para medidas administrativas, segundo legislação em vigor.

Uma delas foi conduzida ao PC, por atitude inconveniente no Estádio, qualificado, orientado e liberado às 19h10min. Importante mencionar as circunstâncias que motivaram a condução, quais sejam, encontrava-se sem ingresso, na rampa “E”, de acesso ao portão “G”, fumando, parado e atrapalhando o fluxo de pessoas no balizamento de entrada à praça desportiva.

Foi orientado pelo policiamento, por duas vezes a deixar o local e na última delas subiu a rampa, xingando e criticando os policiais militares, o que ensejou a abordagem policial. A fim de não ser abordado, ele correu e se infiltrou na massa, entretanto os policiais conseguiram alcança-lo. Para dificultar a ação policial provocou tumulto junto ao público, declarando que não se tratava de homem e sim mulher. Estava vestido com trajes masculinos (bermuda e camiseta).

Diante das circunstâncias e por não possuir ingresso, foi conduzido ao PC. No Posto de Comando, solicitada a documentação de identificação, portava apenas uma “carteirinha de uma entidade onde é orientador sócio educativo” onde constava nome masculino e cartões de banco, com nome feminino.
 
No PC, não houve qualquer agressão verbal ou física e ao ser liberado, já na via pública, o torcedor encontrou uma pessoa que entregou ingresso da partida. Assim, o interessado acessou normalmente o estádio e assistiu ao jogo.

Insta destacar que após pesquisa nos Banco de Dados Criminais, verificou-se que possuía antecedentes pelo Crime de Roubo, condenação a 3 anos e 8 meses [ele nega], situação atual egresso desde 2008".


* Nome fictício