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"Sofri mais que ele", diz ex-jogador que quase acabou com carreira de Zico

Márcio Nunes, ex-jogador do Bangu, curte uma praia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Marcello De Vico e Vanderlei Lima

Do UOL, em Santos e São Paulo

29/08/2017 04h00

29 de agosto de 1985. Duas pessoas certamente jamais se esqueceram desta data: Zico e Márcio Nunes. Bangu e Flamengo se enfrentavam no Maracanã pelo Campeonato Carioca. O camisa 10 do clube da Gávea arrancou no meio-campo e viu o jogador do Bangu entrar de carrinho, de forma desleal, em suas duas pernas. Zico por pouco não precisou encerrar a carreira, mas passou por cirurgia e voltou aos gramados no começo do ano seguinte. Sofreu muito, assim como Márcio, que 32 anos depois diz ter sofrido até mais que Zico com tudo que aconteceu.

“Eu falo de coração: eu sofri muito mais que ele; eu sofri muito, mas muito mesmo, você nem imagina o quanto eu sofri”, declara Márcio Nunes em entrevista exclusiva ao UOL Esporte. De coração aberto, o ex-jogador que teve apenas o Bangu e o Bonsucesso como equipes na curta carreira conta que ainda tem Zico como ídolo: “Com certeza. Mesmo antes do ocorrido. Eu era da torcida Flamallet, bairro Mallet, onde eu moro, e o Zico era o meu ídolo. Tipo assim: você casa com a mulher dizendo: ‘eu te amo, você é tudo pra mim’, mas na vida acontece de tudo, você pode magoar aquela pessoa que tu ama, não é verdade? Então você não vai querer magoar a pessoa que tu ama. Então, pô, com certeza eu magoei muito o Zico”.

Com certeza eu magoei muito o Zico

Márcio Nunes na época em que defendia o Bangu - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução
“Aquilo foi um acidente, uma dividida... Aconteceu. Não foi assim: ‘ah, quando aquele cara passar aqui eu vou pegar ele’. Não, não existiu isso”, acrescenta. “Eu não aceito isso, falar que eu quebrei o cara. Se o Zico nunca mais jogasse depois daquele lance, aí seria verdade”, diz o ex-jogador, que por um tempo precisou conviver com os gritos de ‘assassino’ de outros torcedores: “Eu nunca matei ninguém. Agora vou falar uma coisa para você, é por Deus: Não foi fácil não conviver com isso”.

Aquilo foi um acidente, uma dividida. Eu não aceito isso, falar que eu quebrei o cara

Depois de jogar duas partidas de pré-temporada pelo Flamengo, Zico teve uma volta triunfal na primeira rodada da Taça Guanabara de 1986, em clássico contra o Fluminense, que buscava o tetracampeonato carioca. Após ouvir gritos de ‘bichado’ da torcida adversária, o camisa 10 respondeu dentro de campo com três gols (dois de falta) e comandou o Rubro-negro não só na goleada por 4 a 1 nesta partida, mas também na campanha que resultou no título estadual.

“Zico poderia ter quebrado a minha perna”

Hoje com 53 anos, Márcio Nunes evita julgar se merecia ou não ser expulso – ele até recebeu o vermelho, mas, segundo ele, por ter ido para cima de Mozer. E vai além. Acredita que Zico também entrou duro e poderia ter quebrado a sua perna do mesmo jeito que aconteceu com ele.

“Quem tem que julgar é o juiz. Como ele se machucou, o Zico poderia ter quebrado a minha perna em cinco pedaços. É isso que eu quero dizer. Foi uma dividida. Hoje eu vejo jogadores que vão por trás e pegam mesmo, e eu nunca fiz isso na minha vida, nunca fui mau caráter, não. Você pode falar com todo mundo, pode perguntar para o Neto falar de mim, o Carpegiani me ama, Jorge Vieira [treinador falecido], Zagallo me amava, o Parreira gostava de mim...”, conta o ex-jogador, que diz ter recebido um pisão de Mozer após a entrada em Zico - por isso foi expulso.

Como ele se machucou, o Zico poderia ter quebrado a minha perna em cinco pedaços. Ele levantou a perna todinha

“O árbitro [Luis Carlos Félix] não me expulsou. Eu não fui expulso por aquele lance com o Zico, eu fui expulso porque o Mozer deu um pisão na minha mão e eu parti para cima do Mozer. Aí o Luís Carlos Félix expulsou eu e o Mozer. Não foi por causa do lance com o Zico. Depois eu vi o lance no replay, muito tempo depois, e pô, o Zico vindo no lance levantou a perna todinha, mas enfim, é uma coisa que já passou, o importante é que o Zico até hoje fala comigo. O meu desejo era ter jogado no Flamengo. Quando eu ia assistir aos jogos no Maracanã, eu ia ver o Zico, Andrade, Adílio, Junior, e depois joguei contra eles. Pô, isso é incrível”, recorda.

As versões para o reencontro e a carta que nunca chegou

Zico e Márcio Nunes voltaram a se encontrar dentro de campo em 1987, em mais um Flamengo x Bangu, dois anos após o ocorrido. O reencontro mais marcante, porém, foi em 2013, armado pela jornalista Marluci Martins, que na época trabalhava no jornal O Dia. Porém, os dois ex-jogadores têm versões diferentes para o que realmente aconteceu neste dia, na Gávea.

“Deu aquele friozinho na barriga, foi muito emocionante. As pessoas que estavam ao lado ficaram emocionadas pelo meu gesto, foi um dia extraordinário para mim. Aquilo foi tudo para mim. Ele disse: ‘eu te perdoo’. Me abraçou. Ele me conhecia. O Zico é verdadeiro, ele fala a verdade, foi sincero comigo”, declarou Márcio Nunes.

Em nenhum momento ele [Márcio Nunes] falou ou pediu desculpas. Acabou não sendo nada daquilo que ela esperava

Zico, por sua vez, negou que Márcio Nunes o tenha feito um pedido de desculpas por tudo que aconteceu. “Em nenhum momento falou ou pediu desculpas. Você pode confirmar isso com a Marluci Martins, do Dia, hoje ela está no Extra. Ela me chamou para uma coisa e acabou não sendo nada daquilo que ela esperava”, diz Zico em entrevista ao UOL Esporte.

Outro ponto de discordância entre os dois foi uma carta que Márcio Nunes diz ter enviado a Zico com um pedido de perdão. “Ficou um clima chato um tempo, mas depois tudo foi retomando; eu escrevi uma carta, o Zico recebeu e, depois do dia que eu escrevi a carta, nos reencontramos na Gávea. Tudo foi maravilha, tirou aquele peso da minha cabeça e o Zico me perdoou. Ele sabe e conhece o meu caráter, que eu era um jogador leal. Nunca fui desleal com ninguém”, afirma.

Quem sou eu para perdoar. Só Deus tem esse poder

Segundo o Galinho, porém, ele não recebeu a carta. “Eu não recebi carta nenhuma. Estive com ele na Gávea, sim, mas era uma matéria para O Dia [jornal] e ele apenas falou que queria que eu visse um DVD de um garoto para tentar ajudá-lo, mas não teve nada disso. Essa carta se extraviou, infelizmente eu não recebi nenhuma carta dessa coisa de perdão”, acrescenta Zico, que evita falar em perdão: “Quem sou eu para perdoar. Só Deus tem esse poder”.

Márcio Nunes leva entrada parecida, e encerra carreira aos 24 anos

Parecia castigo. Pouco menos de três anos depois do episódio com Zico, Márcio Nunes provou do mesmo veneno: levou uma dura entrada do zagueiro Fernando, do Vasco, e teve constatada uma grave lesão no joelho direito (vídeo acima). Sofreu o mesmo ou até mais que Zico, já que precisou pendurar as chuteiras ainda aos 24 anos. Márcio, porém, não culpa seu adversário e, assim como o que aconteceu em 1985, encarou a situação como natural – de jogo.

“Eu estava exercendo o meu trabalho, então corria o risco de me acidentar. Quem me acertou foi o Fernando, zagueiro; eu fui cruzar, ele foi cortar a bola e a perna dele entrou no meu joelho direito. Aí eu vou falar que o Fernando foi assassino por causa disso? Pô, o cara estava disputando a bola. Tive que fazer cirurgia e fiquei muitos anos parado. Nunca mais joguei futebol. Encerrei a carreira depois desse lance, aos 24 anos. Ia fazer 25 em novembro de 88, estava no auge da minha carreira, eu iria para a seleção e tudo”, lamenta Márcio, que diz ter até entrado em depressão depois que precisou parar de jogar futebol tão precocemente.

Chega o médico e fala assim: ‘ó, o futebol, para você, acabou’. Pô, caiu o mundo. Eu entrei em depressão

“Eu passei muito mal, senti muita tristeza. Desde o início de carreira você lutando e lutando e vai e acontece isso - chega o médico e fala assim: ‘ó, o futebol, para você, acabou’. Pô, caiu o mundo. Eu entrei em depressão, fiquei malzão”, recorda o ex-atleta, que hoje gerencia a carreira de alguns jogadores e fez cursos para um dia se tornar técnico de futebol.

VEJA OUTROS TRECHOS DA ENTREVISTA

Técnico não pediu para chegar forte em Zico

“Você conheceu o Moises como jogador, mas você não conheceu ele como treinador. Eu conheci o Moisés como treinador. Um grande homem, um grande treinador, e jamais o Moisés falou essas coisas, jamais. Moisés foi um grande treinador e, quando a gente jogava, o Moises não ficava na beira de campo igual esses treinadores ficam, não. O Moises ficava com as pernas cruzadas fumando o cigarrinho dele, ele não falava nada. O nosso time era muito bom, ele não se estressava com o nosso time, e da parte do Moisés, nunca ele falou isso, para pegar o Zico”.

Foi cercado por torcida do Flamengo

“Eu lembro que teve um jogo Bangu x Flamengo de novo e eu estava no pátio do Maracanã, e na época eu era noivo e a torcida do Flamengo me cercou todinha. Eu fiquei em volta deles, eu e minha noiva, e falei para ela: ‘segura em mim e vamos ver o que vai dar’. Aí eu fiquei parado, mas para qualquer coisa ruim acontece uma coisa boa também: um torcedor da organizada, um cara black power, cabeludão, falou: ‘Márcio Nunes’! Aí eu virei para ele e ele disse assim: ‘Olha só, eu quero dizer para você: nós conhecemos você desde os juniores aqui no Maracanã e você é um grande jogador, e um dia eu quero ver você jogar no meu time’. Olha, eu estou até emocionado agora. Chorei uma semana direto”.

Disse para filho não contar que ele era seu pai na escola

“O negócio foi estreito, hein? Eu acho que outra pessoa não aguentaria, não. O negócio foi muito forte. O meu filho estudava num colégio e eu falava para ele: ‘não fala que tu é meu filho, não’. E o meu filho falava: ‘tá bom, pai’, isso para ele não ter problemas na escola”.

Família (e ele) até pararam de torcer pelo Flamengo

“Claro que não pensei em fazer besteiras, não, foi mais tristeza mesmo. Eu nunca nem fumei. A minha família sofreu muito, as minhas irmãs... Meu Deus do céu. Aqui em casa era todo mundo Flamengo e, depois do que aconteceu, ninguém mais quis ser Flamengo. Hoje eu voltei a torcer para o Flamengo, no ano passado. Não dá para explicar até porque o clube não tem nada a ver, né, isso aí é do tempo mesmo”.

Bangu não o ajudou após encerrar a carreira

“O Bangu não me apoiou. Clube de futebol é assim, só te dá valor enquanto você está sendo útil para o clube. Qualquer um, até jogador que não se machuca. O cara se mata pelo clube e, quando o jogador mais precisa, o clube vem e dá um chute na bunda dele”.