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Do lixão ao Barradão. Como Vitória mudou história de um bairro em Salvador

Barradão compõe o complexo do Vitória construído sobre o antigo aterro sanitário  - Edgar Vix/skyscrapercity/ArenaRubroNegra
Barradão compõe o complexo do Vitória construído sobre o antigo aterro sanitário Imagem: Edgar Vix/skyscrapercity/ArenaRubroNegra

Roberto Oliveira

Colaboração para o UOL, em Salvador

11/11/2017 04h00

Quando torcedores do Bahia já não encontram argumentos para irritar um rival rubro-negro, alguns dizem: “Vá jogar no seu lixão!” O que para tricolores é motivo de gozação, no Vitória é fonte de orgulho. Por trás desta provocação barata, tão comum nas resenhas clubistas de Salvador, existe a história de como o Leão baiano renasceu sobre o aterro sanitário da cidade. Com isso, acabou reescrevendo a história de um bairro que, a partir de um lixão, fez surgir o Barradão, que completa 31 anos neste sábado (11).

Tuca e Farofa viveram para contar. “Alcancei o tempo aqui no Barradão dos carros de lixo passando para o aterro. Do estádio dava para ver os morros de lixo. Era muito lixo, tinha bastante urubu, muita mosca, incomodava o cheiro, era muito forte. Ainda mais quando chovia, o carro do lixo vinha e era aquela salmoura do lixo que caía pelo asfalto, era muito mau cheiro mesmo. Os moradores catavam lixo, faziam reciclagem de tudo, alumínio, ferro, papelão, garrafas…”, lembra Tuca, que completou 30 anos como funcionário do Vitória em agosto.

Farofa era um desses moradores de Canabrava, bairro periférico construído a partir da década de 1970 por assentamentos de famílias desapropriadas. Ainda criança, ele começou a trabalhar no lixão. Não teve escolha: “Comecei com 13 anos. Minha mãe foi acidentada no lixão, o trator passou por cima do pé dela. Quando vi minha mãe em cima de uma cama, tive de tomar uma providência e saí para trabalhar no lixão. O carro do lixo vinha, a gente pongava em cima, pegava o que tinha de pegar e descia no lixão para fazer a reciclagem. Não tive infância nenhuma, nem para estudar, minha vida sempre foi essa”.

Hoje com 41 anos, estatura média, cabelo e barba grisalhos, Farofa viu sua vida mudar a partir da construção do Barradão. Em 11 de novembro de 1986, ainda sem arquibancadas atrás dos gols, com torcedores pilhados sobres barrancos de terra, Vitória e Santos empataram por 1 a 1 na primeira partida no estádio Manoel Barradas. O baiano Dinho, atacante do Peixe revelado pelo rival Bahia, marcou o primeiro gol da casa própria rubro-negra. Foi apenas o começo. 

“Aqui embaixo ainda é tudo lixo, lixo!”, diz Farofa ao UOL Esporte, num passeio pelas redondezas do Barradão. “Isso aqui era tudo mata, lixo, entulho, aí começaram a construir o estádio. Canabrava mudou bastante depois do Barradão. Tinha muito assalto, hoje é mais tranquilo. Tem muita gente que trabalhava no lixão e hoje trabalha vendendo churrasquinho, cerveja, de ambulante... Eu mesmo trabalho no lava-jato.”

O Barradão, hoje, é apenas uma parte do complexo esportivo Benedito Dourado Luz. Há duas chácaras para hospedagem (profissional e base), restaurante, departamento médico, fisiológico e estatístico. Além de tudo isso, está lá o velho terrão onde são feitas as “peneiras” do clube e o desenvolvimento de projetos sociais para crianças em situação vulnerável, como era o Farofa quando tinha 13 anos, décadas atrás. É o CT Flávio Tanajura: a Toca do Leão. No seu entorno, cresceram outros bairros, surgiram vias asfaltadas e avançou a urbanização.

Barradão 1 - Reprodução/ArenaRubroNegra - Reprodução/ArenaRubroNegra
Antes: Visão aérea do CT Toca do Leão apenas com o Barradão
Imagem: Reprodução/ArenaRubroNegra

Barradão 2 - Reprodução/ArenaRubroNegra - Reprodução/ArenaRubroNegra
Depois: Complexo Barradão com administração, parte hoteleira e campos de treino
Imagem: Reprodução/ArenaRubroNegra

“Canabrava cresceu, fizeram condomínios. Está vindo essa pista nova [em construção, de acesso ao estádio] que vai mudar muito ainda. Agradeço muito ao Barradão. Se não fosse o Barradão, ia ter isso? Tanto lugar de botar o estádio, e olha onde escolheram, botaram dentro do lixão. Eles falam: ‘o Barradão é dentro do lixo’. Sabe o que significa ser dentro do lixo?”, indaga Farofa em retórica, emocionado, olhos lacrimejando. 

“Eu não tenho estudo, mas significa humildade. Ele escolheu a região das classes mais humildes, que estavam precisando. Não escolheu Barra, Ondina [zona sul de Salvador], não. Olha onde veio escolher... É um lugar bom, também graças ao Vitória”, ele mesmo responde.     

Edmilton Pedreira, o Tuca, foi uma dessas pessoas que decidiu investir em Canabrava e comprou um apartamento próximo ao Barradão. Em seus 30 anos no Vitória, ele também viveu as transformações na região.

“No início ninguém queria morar aqui, era região de desova. Hoje fica arrodiado de prédios, condomínios. Quando o Vitória botou o estádio para funcionar, começou a acreditar na região, começou a urbanizar direitinho. A comunidade agradece ao Vitória. Até os torcedores do Bahia ganham dinheiro com o Vitória”, diz, sem tom de provocação.

“Vendem churrasquinho, acarajé, cerveja no isopor, os bares ficam cheios, tem estacionamento, então as pessoas são gratas ao Vitória. Conheço torcedor do Bahia que tem simpatia pelo Vitória, passaram a ser gratos. O Vitória dá renda a muita gente aqui”, garante Tuca.

‘Danone’ no lixão com Alex Alves e a primeira vez no Barradão

Farofa - RobertoOliveira/UOL - RobertoOliveira/UOL
Natural de Canabrava, ex-catador Farofa nunca tinha entrado no Barradão
Imagem: RobertoOliveira/UOL

Se Tuca passou a maior parte da vida no Barradão, Farofa nunca havia pisado no estádio em torno do qual morou a vida quase toda. Ele vai frequentemente ao clube para buscar os carros que limpa no lava-jato onde trabalha, a cerca de 50 m da bilheteria. Mas até o fim de semana passado nunca tinha sentado no cimento construído sobre os barrancos que remetem à sua infância. Sua primeira vez, estádio vazio, apenas o vento forte soprando o canto dos pássaros, foi com a reportagem. “Nunca assisti a um jogo aqui. Nunca tive a oportunidade, dinheiro.”

Apesar disso, Farofa conheceu de perto um personagem revelado na base do Vitória, que construiu carreira de sucesso no futebol brasileiro e ficou marcado por suas comemorações com ginga e chutes de capoeira: Alex Alves.

“Como antigamente isso aqui era um fedor, os jogadores não aguentavam. Tinha jogador que se sentia mal com o mau cheiro. Diferente mesmo era o Alex Alves, um cara bom, tomou muito ‘danone’ com a gente ali no lixão. Era uma pessoa humilde, brincalhão, brincava muito”, relembra Farofa, sobre o atacante falecido em 2012.

“Quando a gente não tinha dinheiro, ele dava um agrado para tomar uma [cachaça] 51 com ‘danone’. Era o único jogador, os outros passavam, cumprimentavam, mas para parar, descer na boca do lixo e tomar um ‘danone’ junto da gente só mesmo Alex Alves”, narra Farofa, que parou de beber e entrou para a Assembleia de Deus, com suspiro nostálgico.

Da arquibancada no morrão, a tarde começa a cair em Salvador, o bate-papo se aproxima do fim. Antes disso, encucado com o fato de Farofa nunca ter assistido a um jogo no Barradão, pergunto:

- Mas se tiver oportunidade, tem vontade de vir para um jogo do Vitória?

- Sou torcedor do Vitória, se me derem um dia eu venho – responde.

Uma terceira voz nos interrompe. É o assessor do Vitória que acompanhou nossa visita ao Barradão:

- Farofa, qual o seu telefone?

O ex-badameiro, como se chama quem trabalha catando e separando lixo para reciclagem, estica sobre o peito a camisa do lava-jato onde trabalha. Dois números telefônicos acompanham seu nome; o assessor bate a foto. Partimos escadaria acima. Edmilson dos Santos, que herdou o apelido de Farofa de sua comida favorita nos tempos de lixão, sobe rindo, pensando se seu telefone irá tocar...

A reinvenção do Vitória

Barradão 3 - Reprodução/ArenaRubroNegra - Reprodução/ArenaRubroNegra
Imagem antiga do Barradão mostra a topografia da região onde ficava antigo lixão
Imagem: Reprodução/ArenaRubroNegra

A inauguração do Barradão também transformou, tanto esportiva como socialmente, o Vitória. Para se ter noção da importância do alçapão, o clube centenário, fundado em 1899, havia conquistado apenas 12 títulos do Campeonato Baiano até 1991, quando passou a mandar partidas oficiais no estádio.

Desde então, são 17 conquistas do Estadual, com predominância recente sobre o rival Bahia, maior campeão baiano com 46 conquistas. Além disso, são quatro títulos da Copa do Nordeste, sendo o clube mais vencedor do torneio, e dois vice-campeonatos nacionais – do Brasileirão de 1993 e da Copa do Brasil em 2010.

Fundado pela aristocracia baiana no Corredor da Vitória, tradicional circuito carnavalesco de Salvador situado no bairro homônimo, na cidade alta, o clube se reinventou no lixão, segundo o pesquisador Paulo Fernandes. Ele qualifica o caso como um “case mundial”.

“Dificilmente você vai encontrar uma reinvenção com essa densidade. Porque o Vitória nasce na aristocracia e vai se reinventar no lixo. É um caso muito inusitado, tão inusitado que mundialmente você não encontra um clube com esse perfil identitário, é uma case mundial”, diz Fernandes à reportagem.

Ele estudou a transformação do Vitória a partir da construção do Barradão em seu projeto de doutorado em cultura e sociedade pela UFBA, que originou o livro Ba-Vi: da assistência à torcida. A metamorfose nas páginas esportivas.

“Nascido na alta burguesia, o clube um dia afastou-se do convívio dos afrodescendentes, mas foi buscar junto ao depósito de lixo da cidade a sua reinvenção, nos anos 1990. A torcida, até então sofredora, por conta da escassez de títulos, redescobriu-se, feliz, graças à construção de seu estádio, o Manoel Barradas, situado no bairro de Canabrava, reduto de trabalhadores de baixa renda e ambulantes do mercado informal.”