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Oito coisas que os EUA aprenderam sobre América Latina devido ao "Fifagate"

Depoimentos de Alejandro Burzaco têm revelado "abismo cultural" - JOHN TAGGART / Reuters
Depoimentos de Alejandro Burzaco têm revelado "abismo cultural" Imagem: JOHN TAGGART / Reuters

James Cimino

Colaboração para o UOL, em Nova York (EUA)

17/11/2017 08h37

Há dez dias a Suprema Corte Brooklyn, em Nova York, virou palco de um julgamento sobre um dos maiores escândalos de pagamentos de propinas para cartolas do futebol, cujo objetivo era negociar transmissões televisivas de diversos campeonatos. O caso envolve o ex-presidente da CBF José Maria Marin, que está sentado no banco dos réus, e até a TV Globo, acusada por um dos delatores de ter pago US$ 15 milhões para estender seus direitos de transmissão da Copa do Mundo até 2026. A emissora nega.

Um das figuras centrais do caso, que já ficou conhecido como "Fifagate", é o empresário argentino Alejandro Burzaco, 63. Testemunha chave do governo americano, que é quem move a ação, ele era proprietário de uma empresa chamada Torneos y Competencias, que tinha o controle das copas Libertadores e Sul-americana e negociava os direitos desses dois eventos.

Seus depoimentos, no entanto, têm demonstrado um verdadeiro choque de culturas ao colocar réus latino-americanos diante de um júri norte-americano. Embora o caso seja sério e já tenha levado um dos delatados por Burzaco ao suicídio, segundo informações da polícia argentina, as longas audiências das últimas quarta e quinta-feiras renderam alguns momentos inusitados e outros hilários, que a reportagem do UOL Esporte listou abaixo:

WhatsApp

O promotor do caso, Sam Nidze, está usando como prova das negociatas páginas e páginas de conversas de WhatsApp entre Burzaco e um dos réus, Juan Ángel Napout, ex-presidente da Conmebol. Como o júri do caso é popular, foi necessário explicar aos americanos o que é WhatsApp, já que no EUA os planos telefônicos oferecem ligações e SMS gratuitos, e o aplicativo é pouco utilizado pela população. As companhias telefônicas negociam apenas pacotes de dados.

Ingressos VIP

Durante o depoimento ao promotor, outra peculiaridade sul-americana teve de ser explicada ao júri: o ingresso VIP. A doação ou revenda de ingressos VIP para a Copa do Mundo de 2014 para autoridades como o presidente do Paraguai, Horacio Cartes, além de outras pessoas ligadas a Napout, foram objeto de exposição durante a audiência de quarta como parte de uma constante troca de favores entre dirigentes.

Nos Estados Unidos existem ingressos baratos e ingressos caros. Também existem os VIPs, mas eles não pedem ingressos VIP. São convidados e têm seus nomes em listas na porta dos eventos ou, então, recebem seus ingressos em casa. Aqui quem é VIP de verdade não precisa pedir. E quem não é, compra.

A Argentina teve dois papas

Na quinta-feira começou a acareação do depoimento de Alejandro Burzaco com os advogados de defesa dos réus. O primeiro deles, John Papparelo, tentava demonstrar ao júri a intimidade entre Burzaco e o ex-vice presidente da Fifa Julio Grondona, que comandou por muitos anos a Associação de Futebol Argentino (AFA) e tornou-se conhecido no meio futebolístico como o papa.

O delator então explicou que quando o cardeal Jorge Bergoglio foi eleito papa Francisco, a piada entre os cartolas é que agora a Argentina tinha dois papas.

FBI mais humilde

Durante a acareação, a defesa de Napout tentou minar os termos da delação premiada de Burzaco, tentando demonstrar que ele é muito mais poderoso e rico do que declarou à Justiça americana (em caso de perjúrio, a delação é anulada). Por isso o advogado John Papparelo fez Burzaco confirmar que seu irmão Eugenio é Secretário de Segurança da Argentina (o equivalente ao ministro da Defesa no Brasil).

Com isso, queria provar que o delator teria acesso privilegiado a informações sobre o caso. Ao ser questionado se seu irmão chefiava o equivalente ao FBI na Argentina, Burzaco respondeu: "Eu diria que é uma versão mais humilde do FBI".

Quem é Lionel Messi?

John Papparelo fez uma acareação que deixou a plateia presente à corte perplexa, especialmente os jornalistas latino-americanos, pois suas perguntas demonstravam totalmente desconhecimento sobre quaisquer aspectos da cultura argentina.

Depois de perguntar quem era Mauricio Macri (atual presidente da Argentina, que ele parecia acreditar ainda ser presidente do Boca Juniors), fez a pergunta que mexeu com os brios nacionais: "Quem é Lionel Messi?", ao que Burzaco respondeu: "É o melhor jogador do mundo".

Em seguida, Papparelo questionou se ele havia pago US$ 200 mil ao jogador argentino, ao que Alejandro Burzaco afirmou que sim. "Não só a ele como a outros jogadores para que participassem de torneios amistosos." Ficou muito feio para a defesa, porque esse dinheiro não é propina. Mas aí alguém teria que lhe explicar, e ao júri, o que é presença VIP, outra instituição latino-americana.

Qual primavera?

Na tentativa de desqualificar o depoimento de Burzaco, Papparelo tentou confundir a testemunha, perguntando se ele havia participado de uma reunião com a Conmebol na primavera de 2015. O empresário argentino disse que isso seria impossível, porque na primavera de 2015 ele estava em prisão domiciliar nos Estados Unidos.

O advogado insistiu na pergunta, ao que Burzaco respondeu: "Qual primavera? De que ano? Porque, por exemplo, se você falar novembro de 2014 ou de 2013, eu posso responder que sim, já que é primavera na Argentina." O americano ficou totalmente perdido, já que a primavera nos EUA ocorre entre março e junho, enquanto na Argentina (assim como no Brasil) ela é entre setembro e dezembro.

Dermatite

Um julgamento envolvendo brasileiros, peruanos, paraguaios e argentinos não poderia deixar de ter sua dose de drama. Por isso, ao fim do depoimento de Burzaco na quarta-feira, outro dos réus, o peruano Manuel Burga aproveitou a dispensa do júri e a dispersão dos advogados para fazer uma ameaça ao delator argentino.

Segundo os promotores, Burga teria feito duas vezes um gesto com o dedo indicador ao longo de seu pescoço, insinuando que iria cortar o pescoço do delator. A promotoria então pediu à juíza Pamela Chen, que preside a corte, que colocasse Burga na prisão até o fim do julgamento. A defesa de Burga ameaçou entrar com pedido para anular o julgamento caso isso acontecesse e disse que o gesto de seu cliente foi apenas "uma coceira no pescoço devido a uma dermatite".

A juíza, que tem por hábito parar as sessões para que todos os presentes se alonguem de tempos em tempos, respondeu que esta era a versão dele dos fatos e intensificou a prisão domiciliar de Burga, deixando-o incomunicável, sem poder telefonar para ninguém, o que inclui desde seu advogado até sua mulher. No fim da quinta-feira, ela autorizou que Burga fizesse uma ligação para a mulher, mas do telefone do advogado, o que deixou o peruano indignado.

O mais influente

E quando se fala em futebol, Brasil e Argentina não se pode deixar de falar de rivalidade. Ainda na tentativa de convencer o júri que Burzaco não era apenas um dos atores do esquema de propina, mas um dos chefões, John Papparelo começou tentar contextualizar os três assuntos para o júri. Mais uma vez demonstrou total ignorância.

Primeiro disse que o futebol era a maior força política da América do Sul. Depois questionou se o Brasil era a maior potência local ao que Burzaco respondeu: "Argentina e Brasil, se for em futebol. Se for em economia o Brasil é muitas vezes maior".

Por fim, ao falar de Julio Grondona, ex-vice presidente da Fifa e um dos que participava do esquema junto a Burzaco, questionou quem era a pessoa mais influente da América do Sul. O delator não soube responder. Então um jornalista da plateia ironizou: "Lula?"