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"Rei egípcio" vira xodó do Liverpool pós-Coutinho e ganha tributo religioso

Caio Carrieri

Colaboração para o UOL, em Manchester (ING)

02/03/2018 04h00

No noroeste da Inglaterra, o líder da monarquia nasceu no Egito, tem barba, cabelo encaracolado, corre 100 metros em 10 segundos e recebe até apoio religioso. Pelo menos dos apaixonados torcedores do Liverpool.

Mohamed Salah, 25, não deu tempo para os Reds sentirem saudades de Philippe Coutinho, xodó vendido ao Barcelona em janeiro, e virou o “rei egípcio” do Kop, setor do coração da torcida no estádio de Anfield, um dos mais vibrantes do futebol inglês.

A devoção é tanta que os aficionados até compuseram uma música especial em referência à religião do atacante muçulmano. A cada gol marcado, ele faz o rito de se ajoelhar, repousar a cabeça no gramado e logo em seguida apontar os dedos indicadores para o céu. Inspirada na canção “Good Enough” (Bom o bastante) de 1996 da banda britânica Dodgy, os versos da homenagem ecoam da seguinte forma pelos estádios da Premier League: 

“Se ele é bom o suficiente para você / Ele é bom o bastante para mim Se ele fizer mais alguns gols / Então eu serei muçulmano também / Ele está sentado em uma mesquita / É lá que eu quero estar”.

Mohamed Salah - Julian Finney/Getty Images - Julian Finney/Getty Images
Imagem: Julian Finney/Getty Images

Na melhor temporada da carreira após insucesso no Chelsea e ressurgimento na Fiorentina e na Roma, Salah soma 31 gols em 37 partidas pelo Liverpool, terceiro colocado do Campeonato Inglês. A vaga para as quartas de final da Liga dos Campeões também está muito bem encaminhada após a goleada por 5 a 0 sobre Porto na partida de ida, em Portugal, com a marca deixada uma vez pela nova sensação da equipe. O embate de volta é na próxima terça-feira (6), em Liverpool.

“Nossa cidade tem essência multicultural”, enfatiza ao UOL Esporte Peter Carney, 58, membro do Spirit of Shankly, organização independente mais influente na mobilização de torcedores do clube. “Essa manifestação inclusiva é típica da nossa comunidade, e fazemos isso porque sabemos que a religião tem um grande significado para Moh”.

“O nosso melhor jogador é muçulmano e o que importa é ele vencer jogos para nós. Por isso agradecemos com sinceridade e carinho tudo o que ele tem nos proporcionado”, acrescenta, com entusiasmo, em tempos de intolerância religiosa. “As músicas normalmente surgem no ritual da ida aos estádios, onde os amigos se encontram, e a conversa sobre o time se transforma em cantoria”.

Ellis Cashmore, sociólogo, professor da Aston University em Birmingham e referência em estudos sobre etnias no futebol do Reino Unido, tem uma visão contrastante e menos romântica do comportamento dos fãs.

“Provavelmente não é uma elaboração intelectual de mostrar para o mundo que os torcedores do Liverpool não são racistas e, por isso, abraçam todos os grupos étnicos e religiões”, avalia. “Acredito que apenas identificaram um aspecto do próprio jogador para incentivá-lo. Inserido na cultura do futebol, é até uma manifestação bem-humorada, e a torcida do Liverpool é famosa por ações inteligentes ao longo da história”.

“O mesmo vale para demonstrações no sentido inverso. Os torcedores identificam um aspecto da personalidade do adversário e concentram insultos sobre isso na tentativa de desestabilizá-lo. Essa estratégia de enfraquecer o rival é erroneamente classificada como ato de ódio. A maioria dos torcedores não é motivada por preconceito ou racismo”.

Nos braços e na boca dos Reds, Mohamed Salah também é a principal referência do Egito na Copa da Rússia. Herói nacional ao classificar o país com gol nos acréscimos diante do Congo, em outubro, ele garantiu a volta do país a um Mundial depois de 28 anos. No grupo A, o desafio será diante dos anfitriões do torneio, do Uruguai e da Arábia Saudita. Como os apaixonados pelo Liverpool garantem, o rei egípcio já se mostrou bom o bastante para fazer uma torcida sonhar.