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Proibido de jogar cinzas do pai em campo, filho dribla presidente de clube

Ney Pacheco com a neta Rafaella - Arquivo pessoal
Ney Pacheco com a neta Rafaella Imagem: Arquivo pessoal

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

20/03/2018 04h00

A história que você vai ler é segredo de um grupo de amigos. Ela se passou em 2011 e 2012. Fala sobre amor de pai e filho, amizade, futebol e cartolagem...

Ian Pacheco não estava em paz quando voltou das férias em janeiro de 2012. O pai morrera no final do ano anterior. Era mais que saudade: havia uma missão a cumprir. Ney Pacheco, conhecido em toda Florianópolis como devoto torcedor do Figueirense, queria ter parte das cinzas jogadas no campo do time do coração.

Acontece que o clube negou um minuto de silêncio antes de um jogo, imagine algo tão íntimo. Ian preferiu terceirizar o pedido. Tinha certeza da negativa e temia uma “discussão baixa” depois da resposta. Confiou a missão a amigos e logo soube que estava certo.

Era a confirmação de uma espécie de traição. Ian foi programado para amar o Figueirense. Desde o berço seguiu a paixão do pai. Nascido em Itu (SP), Ney chegou a Florianópolis ainda bebê. Foi iniciado no futebol aos seis anos, quando acompanhou um parente ao estádio Orlando Scarpelli. Foi amor à primeira vista.

O avô de Ian, que nem ligava para o futebol de Santa Catarina, se obrigou a frequentar os jogos para não se ver privado de dividir uma parte importante da vida do filho. Quando Ian nasceu, o estádio virou ponto de encontro de três gerações da família.

Em 2001, o Figueirense estruturou o programa sócio-torcedor. Eles compraram as cadeiras 31, 32 e 33. Dividiram alegrias e tristezas naqueles bancos de plástico, mas sempre foram felizes.

A ligação afetiva com o estádio foi citada em um churrasco na praia. Era um destes papos que ninguém não gosta de ouvir. Ney pediu a Ian que “se algo acontecesse um dia” queria metade das cinzas jogadas naquela praia e o restante no campo do Figueirense.

Ney Pacheco - Reprodução Facebook - Reprodução Facebook
Ney Pacheco de azul com a mulher e os filhos
Imagem: Reprodução Facebook

A proibição

A ironia maior é que o presidente do Figueirense que negou o último desejo de Ney chegou ao cargo com a ajuda dele. Além de torcedor, Ney era jornalista. Mantinha o site Meu Figueira, o blog mais lido e comentado sobre o time.

Agora vamos para 2009, época em que o clube era dirigido por um ex-secretário de Estado. O político era o homem forte do Figueirense havia mais de uma década. Com ele, a equipe subiu para a série A e passou o rival Avaí em números de títulos estaduais.

Méritos inegáveis, mas que não convenciam Ney a concordar com os planos do cartola. Ele queria carta branca para administrar o Figueira por 10 anos. Outro dirigente pediu o apoio de Ney para derrubar a proposta. Acenou que no comando da equipe mudaria a forma de escolha dos conselheiros da equipe.

Esta era uma bandeira de Ney. Ele fazia campanha com o blogueiro do Globo Esporte para uma alteração no estatuto do Figueirense. A dupla reclamava que apenas sócios beneméritos podiam concorrer.

Era um clubinho fechado de gente que herdou ou comprou títulos, que eram caros. Boa parte dos integrantes era gente rica e a média de idade era de 60 anos. A reforma queria arejar o clube permitindo que qualquer pessoa associada por oito anos ininterruptos pudesse concorrer.

Com o apoio de Ney, o ex-secretário foi afastado do clube. O jornalista continuou na dele e, quando considerava pertinente, criticava as ações do novo presidente, eleito com seu apoio. Assim, acumulou a antipatia do mandatário.

Tanto que a morte de Ney gerou uma enxurrada de homenagens de torcedores do Figueirense e até de blogs avaianos. Também foi assunto da Rádio CBN e do Globo Esporte. Da direção do clube do coração, apenas silêncio.

Se não houve manifestação da instituição Figueirense, funcionários do clube foram ao velório e entregaram uma bandeira do time. Foi nela que Ian enrolou a urna com as cinzas do pai.

Figueirense impediu que cinzas de Ney Pacheco fossem jogadas no estádio - Reprodução Facebook - Reprodução Facebook
Ney e o filho, dois figueirenses de carteirinha
Imagem: Reprodução Facebook

Os amigos

Ney foi o principal nome de um site chamado Meu Figueira. O veículo distribuía 3 mil jornais de graça por partida na porta do estádio. A identificação da marca com Ney era tão forte que não interessava qual dos 12 colaboradores assinava a reportagem, se dava repercussão, os leitores escreviam “boa, Ney” nos comentários.

Os envolvidos na empreitada forjaram amizade em madrugadas discutindo o conteúdo das matérias. Tainha era o blogueiro do Globo Esporte e remava junto. Economista, ele morava no interior de Goiás em novembro de 2011.

Nesta época, Ney fez uma cirurgia de redução de estômago. Houve severas complicações. Durante os 25 dias de coma do pós-operatório, Tainha se livrava do trabalho e subia um morro para ter sinal de celular. Um dia a infecção generalizada aliviava, no outro piorava. Na segunda-feira seguinte a última rodada do Brasileirão, não teve jeito.

“Quando eu recebi a informação da morte fiquei muito impotente porque não podia sair de lá na época. Foi doloroso estar longe. Fiquei sentado no escuro a noite inteira, muito vendido.”

Foram as pessoas do Meu Figueira que continuaram o esforço nos bastidores diante da negativa do presidente do clube em permitir jogar as cinzas no gramado.

De camisa listrada, Ney em churrasco com os amigos do Meu Figueira - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
De camisa listrada, Ney observa os amigos num churrasco do Meu Figueira
Imagem: Arquivo pessoal

A boa nova

A autorização surgiu do nada e na surdina. “Um dia apareceu uma mensagem no celular dizendo: na terça-feira à tarde o portão de entrada do estádio pela capela estará destrancado. E lá dentro (alambrado) também”, conta Ian. Ele dividiu as cinzas em dois tupperware e foi cheio de esperanças.

Os amigos do Meu Figueira foram juntos. O advogado Níkolas Bottós morava em Brasília e viajou a Florianópolis apenas para este momento. O grupo chegou ao lugar indicado e tinha missa na capela.

Enquanto esperava, Ian percebeu um cadeado na porta. A dúvida se estaria aberto martelava. Quando pôde se aproximar, a confirmação - estava aberto. Dentro do estádio, procurou uma passagem para o gramado. Bingo. Os amigos respeitaram o momento e ficaram na arquibancada olhando Ian.

“Incrivelmente nenhum segurança apareceu. Procurei fazer tudo rápido. Falei com ele (Ney), me despedi e chorei um pouco. Foram muitas lembranças. Gols, a perda da Copa do Brasil em casa, títulos. E pensei: missão cumprida. Mas também deu saudade, não queria me livrar daquelas cinzas.”

Ian explica que parentes de pessoas enterradas têm um túmulo para visitar. Com cinzas, isto não existe. A missão foi cumprida, mas a morte mudou as coisas. O avô não quis mais saber de estádio. Ian continua fiel. Até foi eleito conselheiro graças à mudança que o pai tanto lutou.

Ele sonha que os filhos, que ainda não tem, voltem a ocupar as cadeiras 31, 32 e 33. E houve um fato inesperado que conforta o coração. Ian descobriu na primeira vez que voltou ao Scarpelli.

“Vou ao estádio assistir jogo e visitar ele. Percebei que o túmulo dele é ali. O pai faz parte do time pela eternidade”.

Contraponto

O Figueirense informou que a diretoria era outra e que a atual gestão respeita a história de cada torcedor. Acrescentou que hoje o tratamento ao caso seria outro.

Na época, o presidente do clube era Nestor Lodetti. Ele afirmou que não houve nenhum pedido formal, ofício ou documento solicitando que as cinzas fossem jogadas no gramado do estádio. Relatou ainda que não se lembra de nenhum pedido informal, mas ressaltou que um clube com administração profissional tem seus processos. Lodetti argumentou que a área competente iria examinar a situação e repassar o encaminhamento.