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Último passe: por que essa expressão virou desculpa no futebol brasileiro?

Termo não faz parte do universo da tática, mas tem sido repetido nos últimos tempos - Nelson Almeida/AFP
Termo não faz parte do universo da tática, mas tem sido repetido nos últimos tempos Imagem: Nelson Almeida/AFP

Gabriel Carneiro

Do UOL, em São Paulo

07/01/2019 04h00

"Nosso time pecou no último passe."

Quem gosta de acompanhar as declarações de jogadores e treinadores de futebol depois dos jogos provavelmente já ouviu essa frase ou alguma coisa parecida, na linha "temos que acertar o último passe", "hoje o último passe não entrou" ou "nós jogamos bem, mas faltou o último passe". A expressão "último passe" está na boca dos boleiros e virou uma justificativa comum quando o time falha, perde, é mal escalado ou simplesmente não consegue ser superior ao seu adversário. Funciona como um bode expiatório, um discurso pronto para ser repetido. Uma desculpa.

Popularizado nos últimos anos, especialmente após a adoção de termos táticos no vocabulário esportivo, o "último passe" não faz parte nem sequer deste grupo de palavras. Ele é um conceito abstrato, de vários sentidos e interpretações possíveis. Quem diz é Rodrigo Leitão, instrutor em cursos de formação de treinadores da CBF, ao UOL Esporte. "Mesmo se o último passe for assim chamado por questão temporal, como último evento de uma sequência ofensiva antes da perda da bola, é necessário que a expressão carregue o que ela pode representar, que é a efetividade. A partir de movimentações, sincronismos e precisão no passe, conseguimos que as equipes transitem da fase de criação para a de desfecho gerando situações de finalização", explica.

Dudu, do Palmeiras - Daniel Vorley/AGIF - Daniel Vorley/AGIF
Atacante do Palmeiras foi o líder de assistências do Brasileirão em 2018
Imagem: Daniel Vorley/AGIF

"Algumas vezes a perda da bola se dá por um passe que em vez de desequilibrar o adversário acaba por entregar a bola para ele. Outras porque a sequência ofensiva que pedia um passe mais açucarado, rompendo linhas, desestabilizando a marcação e deixando o companheiro em condições mais próximas de um arremate acaba se enchendo de passes para o lado ou colocando a bola em disputas que trazem pouco ou nenhum benefício para a equipe. A ideia de "último passe" expressa muito do que vemos em alguns jogos, que é a dificuldade real de transformar em produção ofensiva as jogadas que alcançam o campo de ataque", relata o especialista.

Na última edição do Campeonato Brasileiro teve um jogador que brilhou no "último passe". É Dudu, atacante do Palmeiras, que deu 14 assistências em 31 jogos ao longo da campanha vencedora. Ele acha que não tem segredo para acertar o último passe, "é trabalho", mas admite a complexidade do lance no futebol atual. "Falar é fácil, né? Mas esse último passe é o mais complicado no futebol. É o passe que a defesa adversária está mais atenta e fará de tudo pra não deixar acontecer. Os passes ali no meio de campo são mais fáceis porque, muitas vezes, a marcação está mais passiva. Quanto mais perto do gol adversário, menos espaços você tem pra achar esse último passe. É normal que erre mais porque é um passe que precisa ser diferente", diz o campeão brasileiro.

Coisa de camisa 10?

"Isso aí é pela falta de qualidade dos meias. Não tem mais meia. Hoje em dia tem três volantes, três atacantes, a preocupação não é criar. Em termos de armação tem poucos jogadores que dão esse último passe. Aí o jogador não tem o que falar na imprensa e fica dizendo isso, sendo que o certo era fazer." 

O diagnóstico é de Rivellino, um dos maiores meias da história do futebol brasileiro. Para ele, o uso excessivo do discurso de "pecamos no último passe" é porque falta virtude técnica no jogador atual para transformar as jogadas de ataque em chances de gol. Mais exatamente, falta qualidade no nosso camisa 10, aquele meia clássico que está em extinção. No Brasileiro de 2018, por exemplo, o camisa 10 que mais fez gols foi Gabriel, do Santos, que não é meia. Os que mais deram assistências foram Cazares, do Atlético-MG, e Arrascaeta, do Cruzeiro, com apenas seis passes decisivos. Veja abaixo um raio-x do camisa 10 brasileiro na última temporada:

Nem sempre dá certo

Dudu foi líder de assistências do Brasileiro e quinto colocado na lista de jogadores com mais passes para finalização - ou seja, também "pecou no último passe". Jadson, do Corinthians, com cinco assistências, deu 52 destes passes, cinco a menos que Dudu e, portanto, sétimo da lista liderada por Éverton Ribeiro, do Flamengo. De acordo com o 10 corintiano, o desafio do "último passe" é saber antecipar a jogada.

Jadson, do Corinthians - Agência Corinthians - Agência Corinthians
Aos 35 anos, Jadson é um dos jogadores definidos como "10 clássico" no Brasil
Imagem: Agência Corinthians

"Você precisa estar muito atento aos movimentos do sistema defensivo adversário e dos seus companheiros. Precisa conhecer os zagueiros rivais e os jogadores do seu time. Você precisa saber o que fazer com a bola antes de ela chegar, é fundamental antever a jogada antes de a bola chegar no seu pé. Hoje em dia o futebol é muito intenso e não temos mais tanto tempo para pensar. Você precisa ser muito rápido e realizar a jogada o quanto antes. Eu sempre treinei para aperfeiçoar esse último passe", conta o jogador de 35 anos.

Último passe se treina?

Sim! Na Conafut (Conferência Nacional de Futebol) de 2017 uma das rodas discussão foi sobre o futuro dos treinamentos no futebol brasileiro. A conclusão foi que o próximo passo em termos de ideia de jogo no país deveria ser o investimento nos conteúdos de ataque. Já há defesas bem treinadas e que ganham campeonatos, mas os setores ofensivos ainda são uma dificuldade para muitos clubes e a maioria não tem ideia clara ou gosto pela bola. Assim, seria necessário potencializar a criatividade a partir de uma maior organização ofensiva.

"Deixamos as soluções ofensivas a cargo do brilho criativo de alguns jogadores. Mas por que não potencializamos o talento criativo? Por que não buscamos contribuir para qualificação do repertório técnico e tático dos jogadores, construindo alternativas para que ofensivamente possam manifestar toda sua criatividade, mais e melhor?", reflete Rodrigo Leitão.

O último passe é um elemento dentro de um grande universo de possibilidades, assim como é o drible, como é a ginga, o domínio direcionado, o arremate... O importante é treinar como atacar bem, aproveitando o que cada jogador apresenta de melhor na sua relação com a bola, garantindo que ele possa entender os atalhos do campo e o como a ação e movimentação vai afetar companheiros e adversários na ocupação dos espaços do campo de jogo", reconhece.

Rodrigo Leitão - Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Divulgação - Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Divulgação
Rodrigo Leitão foi técnico do time sub-20 do Santos até outubro de 2018
Imagem: Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Divulgação