Topo

No meio do caminho tinha uma Argentina. E Drummond torceu por ela

Divulgação
Imagem: Divulgação

Bruno Grossi

Do UOL, em São Paulo

02/07/2019 12h00

Em Minas Gerais, Brasil e Argentina se enfrentam hoje em uma suntuosa semifinal de Copa América, marcada para as 21h30, no Mineirão. Em Minas Gerais, em 1902, Carlos Drummond de Andrade nasceu para ser uma das mentes brasileiras mais brilhantes e apaixonadas pela seleção. Mas que, um dia, encontrou a Argentina no meio do caminho. E resolveu abraçá-la.

O poeta teve apenas uma filha, Maria Julieta, que se apaixonou por um argentino chamado Manuel Graña Etcheverry e foi morar em Buenos Aires. Na capital portenha, nasceram os netos de Drummond e o carinho por uma seleção que o escritor tinha o hábito de torcer contra.

A confissão do que é uma heresia para os mais fervorosos está no livro "Quando é dia de futebol", uma coletânea das crônicas sobre futebol feitas por Drummond. Ali está uma carta endereçada a Luis Maurício, um dos netos nascidos na Argentina, logo após Diego Maradona ser protagonista do bicampeonato mundial, conquistado em 1986, no México.

"Viva Maradona! Mas viva, sobretudo, o futebol argentino, que demonstrou mais uma vez sua força de conjunto, numa partida que coroou brilhantemente o longo esforço ao longo da Copa do Mundo. Foi uma vitória merecida, que nós aqui em casa acompanhamos reunidos, na maior torcida pela seleção de vocês, depois que se desvaneceram as esperanças no time brasileiro", diz a carta.

A seleção brasileira havia sido eliminada pela França, para extrema tristeza de Drummond, que sempre reservou sua maior paixão futebolística ao time canarinho. Nunca foi um fanático por clubes, embora admitisse torcida por Cruzeiro e Vasco da Gama, mas bastava um gol adversário contra a seleção para que o poeta se entristecesse.

Maradona faz golaço histórico contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986 - France Presse- AFP - France Presse- AFP
Maradona faz golaço histórico contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986
Imagem: France Presse- AFP

Esses laços do escritor com o futebol foram retratados por um documentário exibido pelo programa "Grandes Momentos do Esporte", da TV Cultura, em 2002, para celebrar o centenário de Drummond. O especial foi reprisado diversas vezes nos últimos anos e coloca os ídolos Reinaldo, do Atlético-MG, e Tostão, do Cruzeiro, como grandes seguidores do poeta.

Ele era o máximo da qualidade de um poeta. Sempre gostei de poesia e era fanático por Drummond
Tostão, à TV Cultura

Qualquer palavra do Drummond é muito rica, fixa no seu pensamento. É poesia. É toda leveza da alma
Reinaldo, à TV Cultura

Seleção brasileira Copa do Mundo de 1970 - CBF/Divulgação - CBF/Divulgação
Seleção brasileira de 1970 conquistou a Copa do Mundo e encantava Drummond
Imagem: CBF/Divulgação

Os dois eram frequentemente exaltados nas crônicas de Drummond. Mané Garrincha era outro personagem que habitava essas palavras saborosas sobre futebol. Mas ninguém foi tão exaltado como Pelé. E o próprio Rei, ciente e orgulhoso disso, se disponibilizou a escrever o prefácio da coletânea "Quando é dia de futebol". No documentário da TV Cultura, Pelé ainda leu trechos de poemas para ajudar na locução do especial.

Ele brincava com as letras como o Pelé controlava a bola
Pelé, à TV Cultura

Também em 2002, no ano das celebrações do centenário de Drummond, a revista IstoÉ falou com outro neto argentino do escritor. Pedro Graña Drummond contou mais um episódio de relação da família com a Argentina e o futebol. Em 1978, precisou servir o exército argentino e encontrou algumas vezes com um célebre colega que já contava com privilégios devido ao talento com a bola no pé.

"O comandante era sócio do time (Argentinos Juniors) e sempre liberava o Maradona. Ele foi ao quartel umas três vezes, mas juramos a bandeira argentina lado a lado", lembrou Pedro na entrevista que completará 17 anos em outubro.

Carlos Drummond de Andrade - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Pedro também aparece no documentário da TV Cultura e diz que o carinho do pai pelo Vasco se deve ao fato de ter sido o primeiro clube brasileiro a aceitar a presença de negros na equipe. Essa decisão evidencia uma característica importante da obra de Drummond no futebol: tratar o esporte como algo sério e essencial para a construção de uma visão crítica.

Suas crônicas sempre foram politizadas. Ora de forma acintosa, ora de forma sutil, irônica. Quando o Brasil foi bicampeão mundial em 1962, por exemplo, sugeriu que a seleção passasse a governar o país, já que "os políticos procuram um rumo para a nação e não o encontram, ou procuram fora do lugar. Modestamente vos proponho a equipe ideal, a equipe detentora da Taça Jules Rimet".

Em 1970, já com o Brasil tomado pela regime militar, cansou de ironizar a forma como os governantes tentavam se apossar das glórias do tri, conquistado no México. Oito anos mais tarde, lamentou o fracasso da seleção na Copa disputada na Argentina, mas comemorou o fato de que, enfim, os brasileiros poderiam pensar em lutar contra a opressão da ditadura.

Pelé levanta taça da Copa do Mundo de 1970 ao lado do presidente Médici - Roberto Stuckert/Folhapress - Roberto Stuckert/Folhapress
Pelé levanta taça da Copa do Mundo de 1970 ao lado do presidente Médici
Imagem: Roberto Stuckert/Folhapress

"Foi-se a Copa? Não faz mal. Adeus chutes e sistemas. A gente pode, afinal, cuidar de nossos problemas. Faltou inflação de pontos? Perdura a inflação de fato. Deixaremos de ser tontos se chutarmos no alvo exato. O povo, noutro torneio, havendo tenacidade, ganhará, rijo, e de cheio, a Copa da Liberdade", diz o poema.

No mesmo período, chegou a sugerir que o ex-jogador Coutinho sucedesse o presidente da época, Ernesto Geisel. E que Reinaldo fosse ministro da Justiça, com Zico, Rivellino e Toninho Cerezo em outras pastas.

Sócrates Copa 1982 - REUTERS/Herbert Knosowski/Landov - REUTERS/Herbert Knosowski/Landov
Sócrates era um dos símbolos da seleção que deu show, mas perdeu a Copa de 1982
Imagem: REUTERS/Herbert Knosowski/Landov

Drummond morreu em 1987, dois anos após o fim da ditadura, ainda apaixonado por futebol e pela seleção brasileira - e como sofreu por ela com a derrota na Copa de 1982. Ali, ensinou que "perder implica remoção de detritos: começar de novo". Algo que o Brasil tenta fazer nesta Copa América. Reconquistar a paixão dos brasileiros, voltar a vencer...

Mas tem uma Argentina no meio do caminho. E agora, Tite?

FICHA TÉCNICA:
BRASIL X ARGENTINA

Local: Mineirão, em Belo Horizonte (MG)
Data/Hora: 2 de julho de 2019, às 21h30
Árbitro: Roddy Zambrano (Equador)
Assistentes: Christian Lescano e Byron Romero (ambos do Equador)
VAR: Leodán González (Uruguai)

BRASIL: Alisson, Daniel Alves, Marquinhos, Thiago Silva e Filipe Luís (Alex Sandro); Casemiro, Arthur e Philippe Coutinho; Gabriel Jesus, Everton e Roberto Firmino. Técnico: Tite.

ARGENTINA: Franco Armani, Juan Foyth, Germán Pezzella, Nicolás Otamendi e Nico Tagliafico; Leandro Paredes, Rodrigo de Paul e Marcos Acuña; Lionel Messi, Sergio Agüero e Lautaro Martínez. Técnico: Lionel Scaloni.