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"Riscar o 1º fósforo": como as organizadas saíram em defesa da democracia

Torcedores de diferentes torcidas realizaram manifestação na Avenida Paulista neste domingo (31)  - Roberto Casimiro/Estadão Conteúdo
Torcedores de diferentes torcidas realizaram manifestação na Avenida Paulista neste domingo (31) Imagem: Roberto Casimiro/Estadão Conteúdo

Gabriela Sá Pessoa e José Edgar de Matos

Do UOL, em São Paulo*

01/06/2020 00h00

Torcedores de diversos grupos organizados dos quatro clubes paulistas mais tradicionais —Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo — ocuparam parte da avenida Paulista durante a tarde deste domingo (31). Membros de torcidas mais conhecidas e braços antifascistas se uniram em marcha pela defesa da democracia. Estima-se que havia entre 2 mil e 4 mil no movimento.

O ato reuniu membros da Gaviões da Fiel, Mancha Alviverde, Independente, Torcida Jovem do Santos, Palmeiras Antifascista, Democracia Corintiana, e Porcomunas, além de outros grupos. A manifestação, que levantava bandeiras democráticas e também assimilou pautas contra o Governo Federal, terminou por volta das 14h, quando a Polícia Militar de São Paulo disparou bombas de efeito moral e balas de borracha.

"A gente nota na torcida que a paciência esgotou. Causa revolta ver o presidente falar de 'gripezinha' e de 'cloroquina'. Não é uma posição oficial da Gaviões, mas grande parte da torcida está revoltada. Foram 12 sócios mortos por Covid-19... Não é só com nota oficial que se pode reagir a esse ataque diário contra a democracia", comentou Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões de Fiel e presente na manifestação.

"Nossa ideia agora é ser um 'gatilho de pólvora'. É riscar o primeiro fósforo, já que os partidos de oposição e movimentos populares não se manifestam. Entendemos que tem pandemia, mas chega uma hora que temos que mostrar que o povo quer democracia. Nós somos 70%. Não é possível que 30% vão impor vontade de ditadura militar. A Gaviões foi fundada na ditadura, sabemos o que é isso", acrescentou.

O grupo responsável pelo protesto reúne diversas lideranças e membros de movimentos organizados do futebol — sem barreiras por suas preferências clubísticas. Em tempos de pandemia por novo coronavírus, o diálogo é realizado por intermédio das redes sociais e quer abranger o máximo possível de torcedores.

"Para a gente era uma questão de autoafirmação. Pensamos que precisávamos ir, e surgiu a ideia entre os grupos. Alguns já estavam falando com pessoal da Democracia Corintiana de fazer este protesto e alinharam. A ala da Gaviões sabia que iríamos. Tinha data e horário, quando chegamos lá tinham umas 3 mil pessoas", relatou Gabriel Santoro, palmeirense presente no ato deste domingo.

Há relatos de movimentos em 14 estados, segundo informou Alex Sandro Gomes, o Minduín, presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil), em conversa com o UOL Esporte.

"Algumas coisas provocaram as torcidas organizadas, como o fato da agressão aos funcionários públicos em Brasília e em Porto Alegre por parte destes movimentos ultraconservadores. Terceiro fato foi o posicionamento do movimento '300' sobre o Superior Tribunal Federal e não respeitando o Congresso. Foi o estopim do estopim", afirmou.

"Querem impor à força uma agenda sem nenhum debate. Então hoje foi uma resposta a este tipo de movimento, uma maneira de dizer para eles que no país o que tem que valer é o debate e o processo democrático. Também reclamar o descaso dos governos nacional, estadual e municipal para com a pandemia, com a despreocupação em auxiliar sobretudo o cidadão de baixa renda para ficar em casa durante a quarentena, acrescentou Minduín.

Para o presidente do grupo, que reúne 214 torcidas organizadas, o ato de ontem (31) ratifica a importância de se discutir política no esporte. Minduín ratifica a ideia de que a passeata deste domingo sirva como ponto de partida para um crescente movimento.

"Não é um movimento de esquerda, centro ou direita, como querem colocar. É movimento contra a crescente do movimento fascista do país. É movimento contra os ultradireitistas. Hoje ficou muito clara a presença maciça de ultraconservadores no meio dos manifestantes bolsonaristas, com até bandeira neonazista ucraniana. Aqui no Brasil é crime usar bandeira com a suástica, então só substituíram", argumenta.

Ato de domingo

Segundo Chico Malfitani e outros torcedores ouvidos pelo UOL, o grupo dos organizados permaneceu na Paulista até pouco antes da ação de dispersão da PM com bombas de efeito moral. A confusão, segundo apuração inicial da própria corporação, começou com pessoas que portavam bandeiras neonazistas.

"A informação que tenho do Comando da Polícia Militar do Estado de São Paulo é que um grupo de neonazistas com bandeiras que foi o estopim desta manifestação, mas não saberia dizer neste momento e isso será apurado durante a semana sobre o que de fato aconteceu", declarou o secretário-executivo da Polícia Militar de São Paulo, coronel Álvaro Batista Camilo, à CNN.

A confusão foi deflagrada depois do encerramento do ato. Danilo Pássaro, um dos organizadores do movimento Somos Democracia, ecoou a versão da Polícia Militar sobre o início do lançamento das bombas de efeito moral. Boa parte dos torcedores que ajudaram na articulação do movimento já havia deixado o local, assegura.

"Quando começou a confusão com a polícia a gente já tinha ido embora, já tinha até conversado com o coronel, fiz um discurso de encerramento e a gente falou que dispersaria", afirmou, em conversa com a reportagem.

"Oposição não se movimenta"

A manifestação que reuniu milhares de torcedores organizados teve a primeira faísca há algumas semanas, quando um grupo de aproximadamente 60 torcedores do Corinthians compareceu à avenida Paulista como oposição a um grupo de apoiadores do presidente da república.

A explosão no número de casos e mortes pela Covid-19, os planos para reabertura econômica neste momento e as pautas antidemocráticas de manifestantes nas ruas do país também serviram de estopim para o ato de ontem (31).

"Parece que só existem estes loucos que querem abrir o comércio para o povão se contaminar no ônibus e no mercado. Quem vai morrer é o povão que pega trem lotado para trabalhar. Isso gerou uma revolta dentro da Gaviões e essa vontade de marcar posição pela democracia", comentou Chico Malfitani. "Se a oposição não se movimenta, nós iremos nos movimentar."

Quebrar a quarentena é considerado um ato de reação necessária para esses grupos, reitera Danilo Pássaro, que assumiu uma função de liderança na manifestação de domingo. "Assumimos esse risco e soltamos recomendação para que as pessoas fossem ao ato de máscara, álcool em gel. Assim que a gente chegou, fiz um discurso dizendo que preferia estar em casa cuidando da minha família e da saúde. Hoje o Brasil tem quase 30 mil pessoas mortas na pandemia. E isso é uma das coisas que tem nos incentivado a manifestar", sentenciou.

Dois momentos de tensão

A tarde de domingo terminou com cenas de violência entre a Polícia Militar e participantes do ato organizado por torcidas organizadas. Houve o encontro de antifascistas com apoiadores do governo de Jair Bolsonaro, que também se manifestaram neste domingo na Avenida Paulista.

Ocorreram dois momentos de tensão com a PM usando bombas de gás e usando spray de pimenta para conter o lado da manifestação dos torcedores. O tumulto durou cerca de três horas e deixou ao menos um ferido.

*Colaboraram Adriano Wilkson e Aiuri Rebello