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'Eu sei que no Brasil vocês têm o mesmo problema'

09/12/2016 08h00

Andy Woodward, 43 anos, virou o futebol britânico do avesso. O ex-zagueiro discreto, com passagens por pequenos clubes ingleses, detonou uma crise institucional ao ser o primeiro a admitir ter sofrido abuso sexual quando era criança, nas categorias de base.

A partir das declarações para o jornal "The Guardian", outras vítimas tomaram coragem para acusar ex-treinadores. As denúncias já chegaram a times de primeira divisão, como Manchester City, Chelsea e Southampton.

- Contar é muito difícil, mas quando fiz, senti alívio grande e recebi uma onda de apoio que não esperava. Sei que é um processo que pode ajudar muitas pessoas a superar esse trauma. Conheço outras que sofreram abusos e hoje têm coragem para seguir adiante com a vida - disse Woodward, em entrevista ao LANCE! por telefone.

O técnico que cometeu o abuso, Barry Bennell, está preso como agressor sexual em outros casos. No parlamento, chegou a discussão sobre como os clubes não fiscalizam o comportamento dos funcionários que lidam com crianças.

Woodward tem certeza que não se trata de um problema local. Acredita que em outros países também é jogado para debaixo do tapete. Exatamente como a Inglaterra fazia até ele aparecer para denunciar.

- É fenômeno global, que atinge muitos países. As crianças que jogam futebol são desprotegidas há quem se aproveite dos sonhos que elas carregam. Sei que no Brasil vocês têm o mesmo problema - completa o também ex-policial.

'Woodward foi descoberto por Bennell quando tinha 11 anos. Quando os abusos começaram, o técnico utilizou o medo como arma. Se o jogador o aborrecia de alguma forma, era sacado do time.

- Seu sonho acabou - ameaçava.

Woodward não teve uma adolescência comum por causa disso. Tornou-se introvertido. Sempre desconfiado das pessoas. O desejo de se tornar profissional e o que veio após isso o atormentaram por 30 anos.

Até que resolveu contar tudo o que sofreu.

- Seja aqui, no Brasil ou em qualquer lugar, o primeiro passo é falar. Tem de haver pessoas com coragem para fazer isso. Falar foi a coisa mais difícil que fiz na vida. Foi brutal. Contei com a ajuda da minha noiva, da minha família, dos amigos. Sem isso, seria ainda mais difícil. Quem é atormentado com isso tem de saber que existe a possibilidade de se recuperar e ser feliz - completa.

A cada dia, novos casos aparecem. Woodward jogava no Crewe Alexandra, atualmente na Terceira Divisão. Mas Bennell prestou serviços a outras equipes onde também cometeu os mesmos crimes. Entre estas, o Manchester City.

O Chelsea tem sido criticado porque recebeu denúncia e, em vez de apresentá-la à polícia, fez acordo com a vítima e pagou indenização de 50 mil libras (cerca de R$ 240 mil) a proibindo de falar publicamente sobre o assunto.

O abuso sexual no futebol se tornou uma avalanche por causa do ex-zagueiro. Algo que ele acredita poder acontecer em outros países. Só é preciso a primeira denúncia.

- O tamanho da repercussão me faz ter certeza que as pessoas no Reino Unido e em outros lugares precisam de ajuda. Não posso mudar o meu passado, mas espero que o futebol, o melhor esporte do mundo, possa ter consciência do que acontece, auxiliar as vítimas e prevenir para que não aconteça mais - finaliza Woodward.

CUNHADO

A parte mais difícil para Woodward foi manter o segredo por tanto tempo. Especialmente porque Bennell, anos depois, se tornou seu cunhado. O treinador casou com a irmã do jogador que agrediu sexualmente.

- Ninguém sabia e eu queria morrer. Tinha de encontrá-lo domingo, na casa dos meus pais, almoçando como se nada tivesse acontecido - explica o ex-defensor.

Ele passou a ter ataques de pânico e crises de ansiedade. Ainda sofre com isso e toma remédios.

- Depois de tantos anos, acho que consigo deixar isso para trás, com a ajuda de terapia. Durante muito tempo, lutei para não pensar no assunto. Hoje em dia tem sido mais difícil, mas creio que é minha missão dizer que o futebol precisa erradicar esse problema - confessa, ao L!.

Na próxima semana, Woodward vai viajar para Nova York com a noiva, Zelda. Quer sair por alguns dias do olho do furacão. Vai em busca do sossego que desapareceu de sua vida por causa do escândalo.

- Estou um pouco cansado de tudo. Preciso de um tempo.

BATE-BOLA COM ANDY WOODWARD

1. Que sentimentos você tem hoje em dia por Barry Bennell?

Isso é algo que muita gente me pergunta. Com sinceridade, eu faço tudo o que posso para não pensar nele porque é uma pessoa que afetou de forma muito ruim a minha vida.

2. Os grandes clubes ingleses estão apavorados com o que pode vir à tona?

Estão. A proporção que o problema tomou no futebol britânico é muito grande. Ninguém esperava. Nem eu. Não esperava que o meu depoimento ganhasse tal magnitude, apesar de eu saber de outros casos, de gente que teve o mesmo trauma que eu tive. Há grandes clubes com medo das revelações. Porque o poder que os treinadores têm é muito grande, assim como o poder dos clubes é muito grande. Eles têm nas mãos o futuro de um garoto que só pensa em ser jogador. Controlam grande parte da vida dos garoto, que têm medo desses poderosos.

3. Você pensou em algum momento em continuar em silêncio, não contar para ninguém?

Pensei. Mas eu sabia no meu coração que tinha de contar porque é um problema global. Eu poderia ajudar muitas pessoas. Quem passa por isso, não tem coragem de falar. Hoje em dia, sabemos que 50 clubes na Inglaterra registraram casos de abusos. E antes? Ninguém dizia nada. Para qualquer um que jogou futebol, é difícil admitir publicamente ter sido vítima. As pessoas costumam levar coisas assim para o túmulo, principalmente em um ambiente como o do futebol.

4. Se não tivesse acontecido com você, onde poderia ter chegado no futebol?

Isso me irrita. Não sei onde poderia ter chegado e passei muito tempo imaginando. Ninguém tem a resposta para isso. Atuei com jogadores muito bons. Nossa equipe do Crewe era forte e costumávamos vencer clubes como o Manchester United. É triste que isso tenha acontecido.

5. O que planeja para o futuro? Quer voltar ao futebol?

Não sei se vai acontecer, mas gostaria. Quero trabalhar com crianças. Claro que o que aconteceu comigo influencia, mas quero orientá-las. Sou apaixonado por ajudar e desejo protegê-las, não deixar que sofram. Foi em parte por isso que entrei para a polícia quando abandonei a carreira de jogador.

6. Está nos seus planos escrever um livro e contar sua história?

Algumas pessoas me procuraram para escrever um livro. Se eu puder essa mensagem e fazer com que todos entendam, pode ser. Posso contar o que é passar por isso, carregar essa dor. Pode servir como educação. É algo que penso de vez em quando, mas não tenho nada definido até agora. Talvez no futuro possa fazer algo.