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Nos Emirados, jiu-jítsu é regra no Exército. Quem ensina são os brasileiros

Mohammed al Nahayan, xeque de Abu Dhabi e comandante das Forças Armadas, fez jiu-jitsu virar obrigatório no Exército - AFP PHOTO/KARIM SAHIB
Mohammed al Nahayan, xeque de Abu Dhabi e comandante das Forças Armadas, fez jiu-jitsu virar obrigatório no Exército Imagem: AFP PHOTO/KARIM SAHIB

Luiza Oliveira

Do UOL, em Al Ain (EAU)

11/12/2017 04h00

Em um tatame improvisado na garagem de um prédio residencial em uma cidade do interior, cerca de 20 lutadores se reúnem todos os dias à noite para treinarem jiu-jítsu. Na escada que dá acesso ao local, já dá para perceber o esforço de cada um pelo cheiro de suor. Ali, eles vivem como uma família e se ajudam como podem. Racham o custo do ar condicionado para aliviar o calor de quase 50ºC que faz no verão e cada um fornece um pedaço do tatame que já está gasto.

Todos eles deixaram famílias e as comodidades do Brasil para trás pelo sonho de viver do esporte que amam. Hoje, trabalham dando aulas para o Exército, escolas e para a Família Real dos Emirados Árabes. No país que vai sediar o Mundial de Clubes e pode consagrar o Grêmio como bicampeão, é o jiu-jítsu que ocupa o posto de esporte nacional.

A arte marcial milenar pode salvar vidas. Vai muito além de um esporte de alto rendimento. Os militares usam os golpes para se defenderem e atacar em situações de emergência. Há relatos de soldados que usaram a prática em conflitos da guerra civil no Iêmen, que acontece desde 2015, para imobilizar inimigos quando não tiveram acesso a armas de fogo.

Lutadores brasileiros ensinam jiu jitsu nos Emirados Árabes - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
“O jiu-jítsu na prática funciona em uma luta corpo a corpo, que vai ser usado em uma situação terrestre ou em uma situação em que cai uma aeronave e o cara tem que entrar em um combate corpo a corpo. Ele vai usar o jiu-jítsu, vai se sentir confortável em qualquer situação no chão. A gente acha que se eles precisarem de uma situação real, vão saber usar da melhor maneira possível”, conta Antônio César*, que dá aulas dá aula para catetes, serviço militar e oficiais do Exército em Al Ain.

Lutadores brasileiro de jiu-jitsu trabalham como coaches nos EAU - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
O brasileiro Marcos Fontenelle* trabalha com as Forças Armadas e vê na prática sua eficiência. “É um país muito tranquilo e que não tem inimigos. Eu trabalho dando aula na guarda costeira, fazendo a segurança da costa dos Emirados Árabes. Vira e mexe entram pessoas de outros países, fugindo, e os oficiais relatam para mim que usaram o jiu-jítsu para imobilizar, prender. É muito legal ver que estamos mudando a realidade. O jiu-jítsu é uma arte marcial em que socos não precisam ser usados. Dá para usar mais a parte de imobilização, chave e estrangulamento. Só o fato de dominar o adversário sem machucá-lo já é bom”.

Nos Emirados Árabes, a modalidade se tornou obrigatória em todos os níveis do Exército e nas escolas públicas. É tão levada a sério que os militares só podem subir de patente se passarem no teste do jiu-jítsu. Eles realizam um número mínimo de aulas e exames. Se aprovados, dão entrada na documentação para ascender ao cargo. Para isso, têm um ginásio com instalações modernas e seguem um plano rígido de aulas todos os dias com horário de podem variar de 5h, logo depois da primeira oração do dia, até o fim da tarde. 

Influência do xeque na popularização da luta

Xeque Mohamed bin Zayed Al Nahyan, um dos príncipes de Abu Dhabi, visita o circuito de Yas Marina, onde acontece o GP de Fórmula 1 - REUTERS/Hamad I Mohammed  - REUTERS/Hamad I Mohammed
Xeque é entusiasta dos esportes e está ligado à ida da Fórmula 1 aos Emirados
Imagem: REUTERS/Hamad I Mohammed

Quem trouxe o jiu-jítsu para o país foi o xeque Tahnoon bin Zayed Al Nahyan. Ele conheceu a luta agarrada no início dos anos 1990, quando foi para os Estados Unidos estudar e se apaixonou. Mas foi o irmão mais velho, Mohammed bin Zayed Al Nahyan, quem popularizou o esporte e o fez virar nacional. Seu filho, um adolescente fechado e tímido, começou a lutar e se transformou em um garoto confiante e feliz.

Não à toa, uma frase virou lema no país e é disseminada por todos os lugares: “Se o jiu-jítsu foi bom para o meu filho, vai ser bom para a nação”. Mohammed então impôs que a modalidade fosse obrigatória nas escolas públicas, nas Forças Armadas e na Polícia. Desde então, o país recruta brasileiros para darem aulas.

No Emirado de Ras al-Khaimah, o esporte é bem desenvolvido. Nilo Guerrero é ex-atleta profissional de MMA no Rio com títulos importantes no currículo como Campeonato Brasileiro e Mundial. Hoje, é instrutor de jiu-jítsu e defesa pessoal do Exército, mas já trabalhou por um ano e meio para a "President Special Guard", dando aulas para a guarda do xeque local ministrando aulas de jiu-jítsu, defesa pessoal e close combat.

Brasileiros são recrutados para serem coaches nos Emirados Árabes - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

“O treinamento ajuda muito em situação de combate e defesa corpo a corpo. Com certeza é um grande benefício ter militares preparados e formados no jiu-jítsu para uma melhor segurança da família real”, diz ele. “O benefício é fantástico. A pessoa que aprende está apta a fazer qualquer tipo de treinamento, pois no jiu-jítsu você trabalha raciocínio, força, aprende a conhecer seus limites e muito mais. Com isso eu falo que um bom aluno de jiu-jítsu pode fazer qualquer outra coisa que vai se sobressair muito bem”, conta.

Lá também são obrigatórios os treinamentos diários. Ao fim de cada etapa, eles são sujeitos a uma avaliação para saber se estão aptos a passarem para um nível mais avançado de treinamento. Depois de graduados, são avaliados pelo serviço militar em outras funções para subirem de patente.

Centenas de brasileiros ensinando lutas

Abu Dhabi é uma referência do jiu-jitsu e tem um dos principais torneios do mundo  - Francois Nel/Getty Images - Francois Nel/Getty Images
Abu Dhabi é uma referência do jiu-jitsu e tem um dos principais torneios do mundo
Imagem: Francois Nel/Getty Images

Os brasileiros têm a total confiança dos xeque para passar os ensinamentos milenares nos Emirados. Já são cerca de 600 coaches que trabalham como professores no país, todos contratados por uma empresa que presta serviços ao governo. Muitos deles saíram de comunidades cariocas e de regiões mais pobres do Nordeste. Agora, se sentem realizados por conseguirem viver do esporte e ter acesso ao que no Brasil seria quase impossível. 

“Quando fiquei sabendo do projeto eu me interessei muito. Como todo cidadão brasileiro, era um sonho muito distante para mim. Você tem uma qualidade de vida aqui que não tem no Brasil. E o salário dá para viver melhor aqui. Moro em um lugar bom, consigo ter um bom carro, guardar dinheiro. As cidades têm praias lindíssimas, resorts. Aqui você tem acesso, lá não”, conta Marcos Fontenelle.

Mas é bom que ninguém se iluda. No Brasil, há a ideia de que os coaches que se mudaram para a Arábia ganham rios de dinheiros e levam vida de xeques. A realidade é bem diferente. "Dá para ter um bom carro, viajar para a praia e ir no mercado comprar o que quiser sem se preocupar com dinheiro. Mas estamos muito longe de estarmos ricos", conta o carioca André Rocha*.  

Existe ainda um grande ônus de conviver com a falta de liberdade em uma monarquia. Todos eles têm muito medo de se identificar por serem proibidos de darem informações sobre o treinamento das Forças Armadas. A pena é pesada e eles podem até ser deportados do país. Muitos já presenciaram amigos que foram chamados para se apresentar por motivos chulos, como a perda de um equipamento de trabalho. Horas depois, foram obrigados a deixar os EAU.

* Foram usados nomes fictícios a pedido dos personagens